sexta-feira, 19 de junho de 2020

BUF002.07 Encenação de morte

A ideia do crime vivia no cérebro de Gus Huberd há algum tempo. As suas alusões ao mesmo eram como sondas lançadas aos seus amigos. O facto de que estes não respondessem como teria desejado fazia-o conter-se; mas nem por isso renunciava. Pelo contrário, dava-lhe voltas e mais voltas, afirmando-se no propósito de o levar a cabo.
Sobretudo desde que estava em Anglers inn e as vitórias de Jerrigan se iam tornando cada vez maiores, pensou que não poderia descansar até dar ao problema a única solução que tinha, em seu entender. Com essa finalidade, iniciou habilidosas tentativas.
Necessitava de encontrar a pessoa adequada que lhe servisse de instrumento. Havia-lhe ocorrido o mesmo plano que a Charles, em Phoenix: valer-se de um assassino profissional. E dedicava horas inteiras a deambular por Sugarloaf e Rio Verde, visitando os tugúrios e interessando-se, discretamente, pelas vidas s sujeitos de má catadura que descobria.
De entre todos, houve um que despertou a sua preferência. Chamava-se Leslie Mc Guffley, era de meia idade, alto, musculoso, forte; usava o revólver à maneira dos pistoleiros profissionais e a sua presença era acolhida sempre com demonstrações de temor.

Gus fez perguntas dissimuladas e ouviu respostas satisfatórias: «É um «gun-man» perigoso» ... «tem muitas mortes na consciência» ... «Sofre da febre do ouro» ...
Começou a pensar que aquele era o seu homem. Mas não devia precipitar-se. Eram necessários pés de chumbo. Fez-se encontrado em diversas ocasiões com o sujeito em questão, travou diálogos «casuais», convidou-o a beber... Procurava, naturalmente, que tais mostras de amizade passassem inadvertidas -aos olhos de toda a gente.
Leslie McGuffley aceitava os convites sem se mostrar agradecido como se tudo fosse merecido pelas suas «virtudes». Notava-se orgulhoso cia sua personalidade, e pouco era preciso para que falasse com deleite das suas proezas, medindo-se com outros pistoleiros que haviam querido fazer--lhe sombra.
Mesmo assim, Huberd não acabava por se decidir. Reconhecia que um passo em falso poderia trazer-lhe catastróficas consequências. Certa noite meteu na conversa o nome de Buck Jerrigan. Mc Guffley, após um gesto desdenhoso, respondeu:
— Tenho verdadeira antipatia a esse mulato. Julga-se o senhor do Arizona. Claro que isso ocorre porque nunca encontrou ninguém que lhe fizesse curvar a espinha.
Gus deu ao seu gesto uma expressão de assombro e dúvida.
— Como? Você era capaz de se atrever a sós com ele? — Naturalmente! Porque não?
As coisas ficaram assim. Huberd retirou-se pensando que o seu plano iria ter pronta realização. Nos dias sucessivos persistiu no tema, comprovando que Leslie não dava marcha atrás; mas se mostrava cada vez mais seguro de si próprio e proclamava a antipatia e inclusivamente, os ciúmes «profissionais» que Buck lhe inspirava. Até que, julgando chegada a hora, Huberd, a sós com o «bravo», expôs o assunto:
— Sei de uma pessoa que odeia Jerrigan e que estaria disposta a pagar bem a quem o fizesse desaparecer do número dos vivos.
Mc Guffley não concedeu importância à pouco velada insinuação:
— Oral... Todos nós, os homens que alcançámos a celebridade por alguma coisa, temos inimigos aos montões; inimigos que gostariam de nos ver a cor das tripas; mas daí a que se atrevam a fazer-nos frente, vai um grande abismo.
Gus fez uma careta de contrariedade:
— Você não me entendeu... ou não me quis entender.
Leslie franziu o sobrolho:
— Oiça... insinua que quero mudar de assunto porque o mulato me inspira medo?
— Não insinuo nada; limito-me a comentar o facto. E para lhe dizer a verdade, alegra-me que reaja sempre. Teria sido uma deceção que lhe doesse o estômago ante a perspetiva de se haver com esse homem.
Continuaram ocupando-se amplamente do assunto. Huberd, vendo o terreno fácil, renunciou aos atalhos. Não tinha testemunhas e se o «gun-man» se arrependesse à última hora, nada poderia provar. Mas este manifestou-se mais interessado à medida que a questão ia tomando foros de «negócio» concreto, falando abertamente sobre o capítulo remuneração. Após um repugnante regateio, combinaram cinco mil dólares.
— Admito — declarou Mc Guffley — que a quantia é elevada; mas deve encontrar-se em relação com o «trabalho» e não me negará que o meu está rodeado de dificuldades. Ë quase impossível encontrar Jerrigan só. Sempre tem perto dele algum cão de guarda, o que equivale a dizer que não será apenas ele a cair.
— Mas se você o desafiar de homem para homem não haverá quem se atreva a intervir.
Leslie fez um gesto significativo:
— Isso é o que você pensa. Se sabem que sou eu quem desafia Buck, surgirá gente de todos os lados disposta a fazer-me em papas.
— Você alardeou querer entender-se com ele.
— Às vezes, um homem solta a língua...
— Então?
— A você o que lhe interessa é que o encha de chumbo, não? Pois... não se interesse com o processo que eu possa usar.
Huberd teria preferido que a luta entre Mc Guffley e Buck se caracterizasse pelo espetacular, já que assim ninguém o poderia misturar no assunto, mas concordou que o pistoleiro tinha razão. Por outro lado, não estava muito seguro de que, em igualdade de circunstâncias, este resultasse vencedor. Como atinadamente lhe dissera, para ele o que lhe interessava era a morte do seu inimigo. O processo era-lhe indiferente.
— Quanto ao recebimento... — disse Leslie. — Assim que o trabalho estiver concluído.
O outro fez estalar a língua:
— Nada disso. Não lhe vou exigir pagamento adiantado, mas sim certa quantia. Tenho de fazer alguns gastos preliminares, quero dizer, valer-me de alguém para que me ajude.
Huberd não estava disposto a ser burlado. Assaltou-o o temor de que Mc Guffley desaparecesse levando-lhe o dinheiro e sem haver feito nada para o servir. Resistiu, pois, obstinadamente, e não largou mais de quinhentos dólares por conta.
— Está bem — resignou-se o «gun-man» — No meio de tudo não temo que você jogue uma má cartada negando-se a pagar-me. Se o tentasse sequer, enviava-o imediatamente para o mesmo sítio do mulato.
— Pode estar tranquilo sobre isso. Cumpra você que eu também cumprirei. Separaram-se, apertando as mãos corno dois bons amigos.
*
As nuvens baixas e escuras, amontoavam-se como uma manada de gigantescos animais que se quisessem desfazer entre si. No ar o cheiro a terra molhada e o trinar solto de algum pássaro que, pressentindo a tormenta, procurava o seu ninho.
Ao passo lento do seu cavalo, Buck dirigia-se para o rancho «Fortaleza». Subitamente, rasgando a calma, ouviram-se dois tiros de revólver quase simultâneos. Jerrigan levou ambas as mãos ao peito e caiu do cavalo.
Ouviram-se vozes em diferentes direções enquanto, sem que ninguém o visse, Leslie Mc Guffley, autor dos tiros se afastava ao galope rápido da sua montada.

*

No rancho de Huberd, como em todos os arredores, a agitação era extraordinária. Não se falava noutra coisa: Jerrigan morrera. Havia sido assassinado por um desconhecido. Poucas notícias se propagaram na comarca com a mesma rapidez daquela.
Charles e Theodore apressaram-se a procurar o seu amigo encontrando-se à entrada:
— Já sabe?
— Claro que sim?
Penetraram na casa de Gus corno furacões. Este acolheu-os com um sorriso de triunfo. Naqueles momentos considerava-se um herói. Fechou a porta e, com gestos largos, convidou-os a sentarem-se.
— Acabou-se o pesadelo! — exclamou.
— Foi você?
Antes de responder, Huberd serviu-se de um copo de «whisky».
— Como o adivinharam, amigos?
— Não é necessário ser um génio — respondeu Jory —. A coisa constituía a sua obcecação. Falou disso muitas vezes.
— E... lamentam o resultado?
Como resposta, Charles e Theodore estenderam as mãos a Gus.
— Magnífico! Esplêndido! Celebro que seja essa a vossa opinião, pois isso os induzirá a que não pesem exclusivamente sobre a minha bolsa os gastos da empresa. Compreenderão que não atuei pessoalmente. Seria uma loucura.
— Claro.
— Absolutamente.
— O trabalho custou cinco mil dólares. Não é muito dinheiro comparando-se com o resultado obtido.
Concordaram em dividir igualmente o importe do crime, e para celebrar este beberam copo após copo. Charles recomendou:
— Georgina não deve inteirar-se da verdade.
— De maneira alguma — concordou Theodore.
Huberd hesitou ligeiramente:
— Se assim o desejam... Na realidade, beneficia tanto como nós da morte de Jerrigan...
— Apesar disso; — insistiu Jory —. Se é necessário eu pagarei também a parte que a ela corresponda.
Estavam discutindo o assunto quando bateram à porta. Concedida a autorização, entrou um «cow-boy» anunciando que Leslie Mc Guffley desejava falar-lhe. Huberd conseguiu dominar o efeito que a notícia lhe produzia e, compreendendo a conveniência de dissimular perante o vaqueiro, murmurou:
— Leslie Mc Guffley? Não sei quem é.
— Diz que se trata de um assunto urgente — insistiu o vaqueiro.
— Disse-lhe que estava com visitas?
— Não. Eu não sabia... Bem, que espere. Eu vou já.
O «cow-boy» saiu e Huberd voltou-se para Jory e Levinson:
— É o nosso homem. Vem receber. Esperem--me um momento. Foi ao gabinete, onde, metido na parede, tinha o cofre, tirou o dinheiro combinado e dirigiu-se ao encontro de Leslie que, com ar de indiferença, o aguardava no pátio.
— É você Mc Guffley? — perguntou elevando a voz e fazendo-lhe um sinal significativo.
— Exatamente. Não me conhece?
— Pois... creio já ter visto a sua cara, mas não sei onde... — tornou a piscar-lhe o olho, enquanto acrescentava: — Bem, entre, entre.
Conduziu-o a uma pequena sala e apenas se encontraram dentro, exclamou iracundo, embora baixando muito a voz:
— Você é um insensato! Como lhe ocorreu vir ao meu próprio rancho?
— Tem alguma coisa de particular?
— Você não recebe visitas de muita gente?
— De qualquer maneira... Vamos, vamos, deixe-se de tolices e largue o dinheiro. Não creio que tenha queixas da precisão e rapidez com que desempenhei o encargo.
Gus renunciou a responder. Interessava-lhe ver-se quanto antes livre daquele homem.
— Aí o tem. Conte e retire-se.
Mc Guffley teve uma frase definitiva:
— Contá-la? Para quê? Entre cavalheiros!
Guardou as natas e dispôs-se a sair:
— Se alguma vez precisar de mim...
— Sim, sim...
— Os homens devem ajudar-se uns aos outros...
— Bem, não se preocupe. E, se por casualidade alguém lhe perguntar o objeto da sua visita, responda que me veio pedir emprego e que o recusei.
— Combinado.
Retirou-se repetindo a oferta dos seus serviços e Huberd voltou para junto de Theodore e Charles.
— Dá asco tratar com esta classe de sujeitos — comentou — mas não se pode negar que por vezes têm a sua utilidade. Levinson disse:
— Creio que devemos ir à «Fortaleza» —olharam-no incrédulos e ele acrescentou: — Não façam essas caras. Em primeiro lugar ser-nos-á agradável contemplar o cadáver de Jerrigan; segundo, será um bom modo de evitar suspeitas. Pensem que o assassino é desconhecido e que devem pensar em muitos nomes. Para ninguém é segredo a inimizade que tínhamos ao morto; a estas horas estarão desfilando por ali todos os vizinhos. A nossa ausência pode ser interpretada de maneira pouco favorável.
Com cruel mordacidade, Charles disse:
— A morte tudo apaga. Embora tenhamos sido inimigos, já lhe perdoamos e condoemo-nos da sua desgraça.
— Que bom é isto tudo! — riu Huberd.
Aceite a conveniência de visitarem o rancho de Buck, dispunham-se a isso quando entrou um «cow-boy» anunciando a visita de Georgina. Os três homens olharam-se com inquietação. Antes que Huberd respondesse ao vaqueiro, a jovem apareceu à porta.
— Desculpem se os interrompo.
— Retire-se — ordenou Gus ao «cow-boy».
Fechou a porta e voltou-se para Georgina que era cumprimentada por Jory e Levinson.
— Encantado com esta honra.
— Acabo de saber o que aconteceu. Foi você, Gus?
O interrogado fez um gesto de protesto:
— Que coisas lhe ocorrem! Grande defeito ter a língua comprida e pecar por impulsivo. Lancei estúpidas ameaças e esta é a consequência, já o seu noivo e Theodore também pensaram o mesmo. Há meia hora que chegaram para me fazerem idêntica pergunta. Não, minha senhora, não fui eu. Jerrigan tinha, pelos vistos, inimigos a montões e qualquer deles, não o podendo aguentar mais, tirou-o deste mundo.
A rapariga continuou com ar duvidoso e Huberd acrescentou:
— Pelo que mais queira, não exponha esse pensamento a ninguém. Seria bonito se me tornassem responsável por essa morte!
— Precisamente — interveio Jory — vamos agora à «Fortaleza», para demonstrar aos olhos de todos que, não obstante a tensão havida entre Jerrigan e nós, condenamos o crime. Seria conveniente que nos acompanhasses.
A jovem recusou, estremecendo, como se lhe tivessem aplicado uma corrente elétrica.
— Acompanhá-los?
— Por que não?
— Impossível. Repugna-me a ideia. Afigura-se-me um escárnio.
— Não exagere, Georgina. Trata-se de cumprir uma fórmula social.
— Vão vocês, se assim pensam. Eu volto para o «Cruzes de Ouro».
Não houve maneira de a persuadirem. Saíram juntos, mas tomaram diferentes direções: ela, para o seu rancho, e eles, a caminho do «Fortaleza». No meio da escuridão, faiscavam de vez em quando os relâmpagos mostrando paisagens que imediatamente voltavam a desaparecer nas sombras.
— Maldita noite! — resmungou Levinson.
E Charles gracejando:
— Uma noite de fantasmas!
Sem saber porquê, Huberd teve um calafrio, permanecendo calado. Quando se encontravam próximos do seu destino, começou a trovejar e caíram grossas bátegas.
— Ao galope! — propôs Jory.
Assim fizeram, pois, a chuva converteu-se num dilúvio.
— Isto está resultando divertido! — comentou Charles, rindo-se.
— Cale-se! — ordenou Huberd, tomado de indefinível nervosismo.
O vento arrastava as palavras e Jory, que ia adiante, não ouviu o protesto do seu companheiro. Chegaram finalmente ao pátio. A chuva torrencial produzia um ruído seco. A porta do edifício estava entreaberta e do exterior viam-se ténues sinais de luz. Charles empurrou-a. Havia muita gente, embora menos do que pensava encontrar. Quase todos os reunidos per-teciam ao rancho de Jerrigan, aparte um ou outro vizinho.
O capataz da «Fortaleza», um tipo forte, de olhar duro, aproximou-se:
— Que querem?
— Pois... — respondeu Levinson — soubemos da desgraça e viemos testemunhar as nossas condolências.
— Esperem.
Subiu a escada que conduzia ao andar superior. Jory murmurou:
— O acolhimento não foi muito carinhoso.
Sem lhes fazerem caso, Levinson e Huberd iniciaram conversa com as poucas pessoas conhecidas que se encontravam próximas. Viram aparecer Denny e chamaram-no à parte, formando, um grupo. Em surdos murmúrios, atropelaram as perguntas:
— Suspeita-se de quem possa ser o assassino?
— Veio muita gente?
— Que se diz por aqui?
— Pode-se ver o cadáver?
Antes que Mallard respondesse, apareceu Henry Keyes, que, seguido pelo capataz, dirigiu-se aos recém-chegados. Os seus gestos eram duros; o seu olhar feroz.
— Digam — murmurou secamente.
Theodore repetiu com ligeiras variações o que dissera antes, e Charles acrescentou:
— Acima de todas as questões que nos hajam separado de Jerrigan, ante o seu trágico final não pudemos deixar de aqui vir, impondo o dever a que a nossa vizinhança nos obriga.
— Já não haverá mais luta — murmurou Keyes —. Estão de parabéns.
— Um momento, amigo — atalhou Levinson. — Por esse preço não queríamos nunca que a luta cessasse.
Henry, após olhá-los de maneira indecifrável, murmurou:
— Venham comigo, se o querem ver. Subiram os três, precedidos pelo gigante. Atrás deles fizeram o mesmo os rancheiros curiosos que não haviam recebido tal convite.
Detiveram-se ante uma porta que se abria para o corredor, a uma jarda pouco mais ou menos onde a escada terminava. Henry empurrou-a suavemente e entrou, deixando a passagem livre para que os demais o imitassem.
Sobre o amplo leito, coberto dos pés à cabeça por um lençol, destacava-se o corpo de um homem. Os círios acesos aumentavam o efeito impressionante da sala mortuária.
Fora, a chuva batia nas vidraças e os trovões sucediam-se como se as alturas se estivessem despenhando. Keyes, com mão insegura, destapou um momento o rosto, voltando a cobri-lo majestosamente, com o lençol.
Sim, ali estava Jerrigan, pálido, cerrados os olhos de compridas e negras pestanas; os lábios contraídos num rictos de dor. A alcova foi-se enchendo de gente. Huberd, cada vez menos calmo, sentindo que as pernas lhe tremiam, reconhecendo-se cobarde ante o espetáculo da sua obra, foi ficando para trás. Experimentava o veemente desejo de se lançar a correr e fazia violentos esforços para se conter.
— Infeliz homem! — exclamou Charles cinicamente.
— Infeliz, sim — disse Theodore —. Como todos os grandes empresários, havia criado infinitas inimizades, e estas são as consequências.
Subitamente, produziu-se algo inesperado; algo que gelou o sangue nas veias dos poucos assistentes e arrancou gritos de espanto: o cadáver erguia-se lentamente! Caiu o lençol que o cobria, deixando-lhe o torso a descoberto, no qual se viam grandes manchas de sangue coagulado. Abriram-se as suas pálpebras, moveram-se os seus lábios...
— Assassino! — exclamou com voz de além--túmulo.
E o seu dedo rígido apontou para Gus Huberd. Da garganta deste escapou-se uma espécie de ruido; cobriu o rosto com as mãos e retrocedeu de costas, até empreender a fuga. Os que estavam na alcova, atónitos, perceberam o ruído de um corpo caído pela escada.
Henry Keyes, sorrindo, saiu também. Buck afastou completamente o lençol e pôs-se de pé. Estava vestido da cintura para baixo. O capataz aproximou-se solícito, levando um trapo empapado em álcool com o qual limpou as manchas de «sangue coagulado». Os assistentes não saíam do assombro.
O mulato, gozando com o efeito produzido, tinha pouca pressa em entrar em explicações. Reyes regressou dizendo:
— Gus Huberd fraturou o crânio ao cair pela escada.
Charles e Theodore, impondo-se ao medo que aterrava, fizeram gesto de saírem; mas detiveram-se ao ouvir a calma ordem de Jerrigan:
— Quietos, senhores Jory e Levinson! Quando o meu amigo Keyes diz que o vosso companheiro morreu, não há dúvida possível. A mesma notícia me deu em Phoenix a respeito de um tal Mickey Zuquer, não sei se ouviram falar dele. Disse-me: «Está morto de todo». E estava.
Charles ficou branco como a cal. Dir-se-ia que o seu sangue se tinha convertido em água. Buck, sem conceder aparente importância aquela denúncia, dirigiu-se a todos, enquanto começava a vestir-se:
— Não o posso remediar, amigos: divertem-me estas coisas, sobretudo se persigo um fim determinado. Escutem. Durante a minha última viagem a Phoenix, certa pessoa... contratou os serviços de um miserável para que me assassinasse. A coisa não saiu bem. O tal assassino teve um mau encontro e estatelou-se contra as pedras da rua. Acusar a quem lhe pagou não estava ao meu alcance porque carecia de provas; podia destrui--lo com as minhas próprias mãos, mas não as queria manchar e além disso todo este divertimento teria acabado rapidamente. Deixei-o vivo, retirando-me para Anglers inn; com a certeza de que não tardaria a seguir-me. Assim sucedeu. Pensei, então, que repetiria a tentativa e ocorreu--me desmascará-lo em público e rir-me à sua custa. O inimigo em questão precisaria procurar outra mão executora. Seria preciso orientar-se antes de se decidir, e criei vários «malfeitores» que se alardeavam de o serem. Tudo se foi desenrolado como eu previa, com a diferença de que não foi o meu primeiro inimigo de Phoenix quem decidiu liquidar-me, mas sim Gus Huberd, esse outro pobre diabo que acaba de encontrar a morte no final da escada. Escolheu Leslie Mc Guffley, grande ator, o rapaz! e combinaram o crime. Fez uma pausa. Os ouvintes guardavam completo silêncio.
O semblante de Jory havia-se transfigurado. Após acender um cigarro e lançar fora o fumo, continuou Buck, levantando a voz:
— Entra, Leslie, talvez algum destes cavalheiros te queira aplaudir. Da habitação contígua saiu Mc Guffley, que, sorrindo, foi para junto do seu chefe.
— Resultou que este infalível «gun-man» se esqueceu de me apontar bem e as balas cravaram-se no tronco de uma árvore. Depois, seguindo as minhas instruções, enquanto eu me deixava cair, para o caso de haver alguém a observar, acudiam homens do «Fortaleza» a recolher o meu cadáver e Leslie correu a cobrar o preço do seu «crime». Quis recompensá-lo e nada mais lógico que o fizesse à custa de quem decretara a minha morte. Trouxeram-me para aqui e colocámos um vulto sob o lençol enquanto eu, nessa sala aí ao lado, fumava e bebia. Confiava, como assim sucedeu, que Gus Huberd não resistiria à tentação de vir comprovar o meu falecimento. Ao receber, há pouco, a notícia da sua chegada, juntamente com outros dois senhores, ocupei o lugar do volume... e já vimos o final. Interessante história, não acham? Podem retirar-se, se quiserem. Sinto-me cansado e vou dormir. Levem o cadáver do vosso camarada, senhores Levinson e Jory; levem-no e enviem os meus pêsames à família.
Os interpelados não puderam mover-se. Parecia que lhes tinham colocado grilhetas nos pés. Buck mostrou-se aborrecido:
— Não me ouviram?
— Sim, claro... — tartamudeou Charles, fazendo frenéticas chamadas à sua vontade para conseguir dominar os nervos.
Buck acrescentou sem se dirigir concretamente a ninguém:
— Espero que isto tenha servido de lição a todos e, especialmente, a quem gastou debalde o seu dinheiro, contratando Mickey Zuquer. Boas noites senhores. Desejo que sonhem com os anjinhos.
Foram saindo. Denny, destacando-se do último grupo, exclamou com sincero entusiasmo:
— É um homem excecional!
— Deveras me crê assim... ou precisa de algumas notas?
— Juro pela minha honra... — o sorriso de Buck obrigou-o a tartamudear —. Juro pela honra que um dia tive, que estou maravilhado!
Saiu sem esperar resposta. Fazendo um desvio, afastou-se do sítio onde Levinson e Charles, mau grado seu, recolhiam o corpo ensanguentado de Huberd e, chegando ao pátio, partiu a todo o galope sem dar importância à chuva pausada, forte.
Experimentava o desejo irreprimível de ter uma troca de impressões com Georgina. Era como se de entre o lodo do seu espírito tentasse elevar--se um jorro de água cristalina que lavasse os seus sujos sentimentos.
Bateu à porta do «Cruzes de Ouro». Jess, saindo do pavilhão próximo, perguntou, empunhando o revólver:
— Quem é?
— Sou eu, Wolf. Minha irmã já se deitou?
— Suponho que não. Pelo menos há luz no seu quarto. Repare.
No momento em que elevava a vista para a parte do edifício onde estavam situados os aposentos de Georgina, esta apareceu a uma das janelas.
— Abre — pediu Denny —. Tenho uma coisa importante a dizer-te.
— Já é tarde...
Finalmente, a jovem decidiu-se:
— Não importa. Quero que falemos esta noite.
— Está bem. Espera.
Jess, perto de Mallard, perguntou curioso:
— Alguma coisa grave?
E Denny gozou ao dar a notícia que depressa havia de se propagar:
— Grave, não; interessante, sim. Buck Jerrigan não morreu.
O capataz abriu desmedidamente os olhos:
— Não está morto?
— Aposto o que quiser em como é verdade o que afirmo. Ganharei.
A porta abriu-se e Georgina convidou-o a entrar.
— Que é que queres, — perguntou desabrida.
— Jerrigan está vivo! — A rapariga pestanejou nervosamente —. Gus Huberd, em troca, está morto. Caiu rolando pela escada quando viu erguer-se aquele que julgava sua vítima.
— Que história absurda é essa, Denny?
— Dá-me qualquer coisa para beber. Tenho a garganta seca e a roupa escorrendo. Não quis esperar pela manhã para te contar tudo.
A jovem, maquinalmente, colocou sobre a mesa uma garrafa de «whisky». Ele encheu um copo e, depois de tomar um trago, contou o acontecido sem omitir um pormenor. Georgina escutava-o trémula, sentindo que no fundo do seu ser se agitavam muito opostas reações, ira... angústia... admiração invencível pelo homem que de tal maneira jogava com os inimigos e os vencia em todos os terrenos...
Acabado o relato, acrescentou Denny:
— O que mais me preocupa e me impeliu a vir imediatamente foram as afirmações de Jerrigan acerca do atentado de que foi vítima em Phoenix. Não me cabe a menor dúvida de que acusava Charles, Theodore, ou os dois juntos. E senti terror ante a ideia de que seja verdade, visto que Charles é teu noivo. Põe-te em guarda, Georgina; não te deixes arrastar por nenhum deles àquilo que poderá ser a tua perdição!
A jovem sentiu-se ligeiramente impressionada. Há muito tempo que não via em Denny um tão sincero e nobre interesse.
— Não creio que Charles seja capaz...
— Tampouco eu julgava Huberd.
Georgina mordeu os lábios. Aquela mesma noite lhe havia afirmada aquele que nada tinha a ver com o que sucedera a Jerrigan e, no entanto... Sentiu repentinamente uma repulsa instintiva por Jory, embora a conseguisse dominar, pensando que não havia admitir tal baixeza e perversão de instintos no homem que estava destinado a converter-se no seu marido.
— Agradeço as tuas notícias, Denny.
— Farás o que te digo?
— Sim, embora creia não ser necessário. Charles é um cavalheiro.
— Também eu o fui... até que deixei de o ser um dia — serviu-se de outro copo e depois de o beber, dispôs-se a partir.
— Fica, se quiseres. Mandarei preparar uma cama para ti...
— Obrigado. Prefiro regressar à «Fortaleza». Nestas noites acidentadas é quando as coisas costumam correr melhor?
— Que coisas?
— As minhas. Eu sei o que digo.
Saiu após bater no ombro de Georgina. Esta ficou a olhá-lo, dominada pela emoção.
— Que pena ser como é — exclamou.
Lamentava-o com toda a sua alma, mas estava convencida de que aquilo não tinha remédio. Denny poderia, de quando em quando, ser tomado de reações generosas; mas, em definitivo, era um caso perdido.
A rapariga voltou ao seu quarto, desnudou-se lentamente e meteu-se na cama, desejando dormir. Não o conseguiu. Os últimos acontecimentos dançavam infernalmente na sua mente, num ritmo de loucura. E abrindo caminho entre todos os fantasmas que tomavam parte naquele desfile, Buck Jerrigan, o detestado mulato, sorria... sorria...

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