sábado, 13 de junho de 2020

BUF002.01 Uma mulher soberba

Denny Mallard entrou como uma tromba na saleta onde sua irmã se encontrava e, apoiando ambas as mãos sobre a mesa, olhou-a colérico, sem que a indignação o permitisse falar. Ela, com desprezo, dura, disse:
— Não voltes a entrar dessa maneira onde eu estiver.
— Georgina!
— Se o voltas a fazer ordenarei que te ponham fora.
— Serias capaz?!
— Não o duvides. Domina os teus nervos, esses nervos que só se descontrolam para falar comigo: adota uma atitude correta e dize o que aqui te traz.
— Ainda me perguntas com essa tranquilidade! Venho do notário, que me chamou para me comunicar que me retiraste todos os meus poderes.
— Avisei-te de que o faria.
— Como outras tantas vezes; mas pensei que se tratava de uma nova ameaça.
— Já viste que não.
— Mas... sabes a transcendência que tem essa tua atitude?
— Sim. E não grites. Ouço muito bem. Foi a medida mais suave que pude tomar. A fazer aquilo que mereces, estarias na prisão.
— Rapariga! Georgina ergueu-se lenta, majestosamente, mostrando em todo o seu esplendor a maravilha da sua figura escultural. Os seus olhos negros brilhavam como se estivessem iluminados por fogueiras interiores.
— És um miserável! — disse, mordendo as palavras —. Um ladrão!

— Cala-te!
— Ninguém nos ouve. Sou a primeira interessada em que isto não transcenda. Estimo muito o nosso nome. Se assim não fosse, julgas que não te teria denunciado?
— Estás louca!
Avançou para ele, olhando-o com desprezo.
— Tens a certeza?
Denny desviou o olhar, limpando o suor e apoiando-se a um. móvel próximo. Era o protótipo do degenerado. O seu rosto, pálido, repleto de rugas apesar da sua juventude, tinha as marcas de todos os vícios.
— Tens a certeza de que estou louca? — insistiu Georgina —. As tuas trapaças saíram à luz. Um bom contabilista examinou os livros; gente de confiança investigou as tuas ações. Levavas--me à ruína, mas ainda estou a tempo de me defender.
— Enganaram-te, irmã. Alguém que me quer mal te convenceu com as suas mentiras...
A jovem riu, sarcástica!
— Alguém que te quer mal!... Mas se és tu o teu pior inimigo! Desbarataste em poucos anos a parte que te correspondeu na herança dos nossos pais. As tuas promessas de regeneração convenceram-me e estendi-te a mão. Eis aqui o fruto: mentiras, aborrecimentos, infâmias... Um pouco mais de descuido da minha parte e estaria já na miséria. Não, Denny, não. Está tudo acabado. Tomarei eu conta da administração. Sei fazê-lo. E tu o sabes.
— Estás obcecada, Georgina. Admito que tenha feito alguns negócios desafortunados; quem se vê livre de reveses? Mas daí às coisas que supões vai muita diferença. Eu...
— Não te esforces. Quando adoto uma resolução é irrevogável.
Denny estremeceu. Conhecia bem a sua irmã. Era a personificação da energia, da soberba, do orgulho. Os termos com que se ia exprimindo não davam lugar a dúvidas. E o grave, o terrivelmente grave para ele era que naqueles dias, precisamente naqueles dias, se encontrava num grande aperto económico; situação que teria resolvido se não se tivesse produzido a rutura que Georgina lhe apresentava.
Apelou para todos os argumentos, passando das ameaças às súplicas. Tarefa inútil. A altiva rapariga manteve-se firme na sua bem meditada decisão. Esgotados todos os recursos, Denny dispôs-se a retirar-se:
— Isto é uma infâmia, sabes? Escorraças-me como a um cão sarnento, depois de todos os sacrifícios feitos em defender os teus interesses.
Georgina vibrou como a corda de um arco índio:
— Fora!
— Pensa bem, irmã. Atende aos factos. Admitirei que me despeças se insistes no teu propósito: mas só depois de analisarmos as coisas, de te fazer ver os meus erros e os meus triunfos. Por outro lado, não acharás justo que assim fique da noite para o dia. Uma prova da minha honradez é esta: estou sem dinheiro. O meu capital não chega a cinquenta dólares e tenho compromissos inadiáveis. Ou parece-te bem que teu irmão passe fome e...
— Fora da minha vista!
O aspeto da jovem era imponente. Denny, mordendo os lábios, dirigiu-se para a porta, depois de envolver a sua interlocutora num olhar alucinado. Encontrou-se com uma criada e afastou-a com um empurrão, quase a derrubando. Naqueles momentos seria capaz das maiores atrocidades.
Georgina, dando provas da sua firmeza, voltou a sentar-se e a examinar vários papéis. A ira embargava-a, mas sabia sobrepor-se-lhe. Várias vezes consultou o relógio. Chegava a hora em que as outras obrigações a reclamavam.
Deu ordem para que lhe preparassem o carro e foi mudar de roupa. Tardou pouco a descer, elegantemente vestida. À porta aguardava-a uma carruagem ligeira, puxada por dois magníficos cavalos, que escarvavam o solo, nervosamente. Ela subiu, agarrou as rédeas e fez estalar o fino chicote. Os animais empreenderam uma veloz carreira, as pessoas afastavam-se apressadas, fazendo comentários:
— Vai com pressa!
— É Georgina Mallard...
— Tão bonita como insuportável.
— Julga-se superior a todo o mundo.
Ela não dava ouvidos aos pedaços de frases que por vezes lhe chegavam. Na verdade, desprezava a gente humilde e pouco lhe importava que a apelidassem de soberba. Ao desembocar em certa rua estreita esteve a ponto de deitar os cavalos sobre um transeunte. Era um homem moreno de atlética figura; olhos negros, grandes e um pouco profundos.
— Afasta-te, mulato! — gritou, furiosa, sem dar importância ao qualificativo, e sem notar se havia sido ou não aplicado com propriedade.
Dissera mulato como poderia ter dito imbecil ou qualquer outra palavra que lhe parecesse ofensiva. O homem deu um salto prodigioso ao mesmo tempo que arrebatava as rédeas à mulher e, correndo de costas, puxou tão fortemente que torceu o pescoço aos cavalos, pouco faltando para que o carro se voltasse.
Georgina ficou atónita. Ele, abrasando-a com o fogo do seu olhar, disse:
— Vá para o inferno, branca!
Atirou-lhe com as rédeas, atingindo-a no rosto. E sacudiu as mãos como se quisesse limpar a sujidade que pudesse ter ficado entre os seus dedos. Georgina apressou-se a governar os cavalos, prestes a tomarem o freio nos dentes. Quando pôde considerar-se senhora da situação, o desconhecido encontrava-se na esquina e mostrava-lhe os dentes numa espécie de careta.
— De boa se livrou, amigo — disse ao jovem um sujeito já entrado em anos que a curta distância havia presenciado o episódio —. Pareceu--me vê-lo entre as patas dos animais.
Outro espectador interveio:
— De boa se livrou, diz? De boa se livrou ela! Que força, companheiro! Julguei que ia quebrar as cabeças dos cavalos como se fossem biscoitos!
O rapaz converteu em suave sorriso o ricto que desfigurava a sua boca.
— Quem é essa mulher: Conhecem-na?
— Claro! É Georgina Mallard.
— Ah! Sim?... Parece-me já ter ouvido falar nesse nome...
A testemunha mais idosa, mostrou-se amável:
— Quer tomar um copo, rapaz? Suponho que lhe cairá bem, depois do susto...
— De que susto?
— Homem!... Você não irá dizer que lhe serviu de distração o «exercício» que acaba de levar a cabo.
— Sim, claro. É natural que se me tenha alterado os nervos. Aceito o convite desde que, depois admitam o meu,
E abarcou com o olhar não só os seus dois interlocutores, como também os outros curiosos que se iam aproximando. Entraram numa taberna próxima, onde, passados uns minutos apenas, apareceu um tipo gigantesco, de amplas costas e ombros quadrados, o qual se podia permitir ao luxo de olhar a todos comodamente de cima abaixo, dado o elevado da sua estatura. O recém-chegado dirigiu-se ao grupo, encarando o protagonista do incidente:
— Patrão, que sucedeu?
— Olá, Keyes. Nada de particular.
— Entrei, como já sabe, para comprar tabaco e ao sair disseram-me...
— Não te preocupes. Tudo se reduziu a um simples encontro pouco amistoso com determinada senhora. Bebe o que quiseres.
Os reunidos olharam com uma certa admiração o chamado Keyes. O mais velho gracejou:
— Quando você, que parece um homem normal, demonstrou a força que vimos, que não teria feito em idênticas circunstâncias este pobre menino famélico?
Riram todos. As bebidas correram abundantemente, se bem que tanto Keyes como o seu chefe apenas se limitassem a ingerir o indispensável para não destoarem. As línguas desataram-se em torno de Georgina, a sua situação económica, e sobretudo, Denny Mallard. Os forasteiros escutavam com ar distraído, mas, na realidade, sem perderem detalhe. Por fim, desculpando-se com os seus afazeres, despediram-se dos desocupados linguareiros.
— Segundo esses homens — comentou, já na rua, o jovem de olhos negros e profundos — eu devia ter-me assustado.
— Creio que quem tem verdadeiros motivos para estar assustada, embora não o esteja, naturalmente, por ignorar o que lhe vai cair em cima, é Georgina Mallard.
— Também o creio.

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