terça-feira, 16 de junho de 2020

BUF002.04 Atentado falhado

Charles Jory pôs-se de pé, embora ainda não tivesse a cabeça muito firme, e olhou rancoroso para a sua noiva:
— Basta, Georgina. Magoas-me com esses gracejos. Reconheço que a minha atitude na frente de Jerrigan me colocou em ridículo se se comparar com o resultado: mas o fator surpresa jogou uma boa vaza no assunto. Não esperava um soco tão veloz e contundente.
Ela riu.
— Supunhas que depois do teu insulto te renderia homenagem?
— Não, mas tampouco que atuasse como o fez. Enfim, a coisa não tem arranjo. Socou-me de uma maneira fulminante, completando o efeito ao atirar-me pela janela. Grande proeza! Qualquer no meu lugar se sentiria pouco menos que desonrado para sempre. Eu, não. Eu, não... porque o jogo pode dizer-se que acaba de principiar, e tenho o propósito de que a cartada de hoje marque poucos pontos.
— Vais desafiá-lo?
— Reservo-me sobre o que penso fazer. Digo--te, unicamente, que Jerrigan não estará muito tempo celebrando a sua «heroicidade» de hoje.
A firmeza de que Jory fazia gala agradou à moça, induzindo-a a modificar a sua atitude, mostrando-se carinhosa:
— Anda com cuidado, Charles. Ernest Ryan acertou: esse mulato é muito perigoso.
— Rio-me dele. Adeus, Georgina.

Saiu fazendo esforços para se manter firme. Não sabia o que ia fazer. A sua ânsia era a vingança, mas, que classe de vingança? Como levá-la a efeito? Quinze minutos mais tarde entrava na residência de Theodore, o qual o recebeu com marcada frieza.
— Venho — disse — para que nos ponhamos de acordo numa ação imediata contra o nosso amigo comum.
—De momento — respondeu Levinson com rudeza — de quem se mostrou inimigo a fundo foi de você e da sua noiva. Mostrou, ante tudo, uma questão pessoal. Resolva-a você, se quiser.
Charles ficou pasmado.
— Devo entender que se descarta?
— Entenda o que quiser. Estou de mau humor, sabe?... De muito mau humor. A questão talvez se tivesse resolvido satisfatoriamente sem o despotismo de Georgina, aumentado pela sua intemperança. Pode ser que outro dia me apreste para a defesa, hoje não quero saber nada de nada.
Jory não insistiu. A atitude de Theodore era sumamente desagradável. Sem dissimular o desgosto que lhe produzia, saiu, pensando na possível colaboração de Huberd, mas deteve-se a meio do caminho.
O mais provável seria que Gus lhe desse uma resposta análoga à que acabava de receber. Não tinha o direito de pretender o concurso de ninguém desde que para isso precisasse de curvar humilhantemente a espinha. O problema era árduo. Desafiar Jerrigan?... Seria o mais airoso, mas...
A ideia arrepiou-o. Enfrentar um adversário da categoria de Buck era coisa superior à sua valentia. Um nome lhe surgiu: Midkey Zuquer. Mickey pertencia à imundície da sociedade. Desconhecia os escrúpulos e, com dinheiro na sua frente, encontrava-se sempre disposto a tudo. Jory havia-o empregado várias vezes em trabalhos pouco limpos, ficando sempre satisfeito com o resultado. Claro que agora tratava-se de uma coisa muito mais grave: mas... aumentando a quantia...
*
Midkey Zuquer depois de discretas investigações, conseguiu indagar quais eram as dependências alugadas por Buck, tomando uma habitação contígua às mesmas. Tinha chegado a acordo com Jory e dispunha--se a actuar quanto antes. Não conhecia a sua presumível vítima, nem nunca até então tivera qualquer referência sobre ela. Mas era-lhe indiferente. Para ele, aquele ser humano que devia fazer desaparecer significava meter na algibeira uma respeitável quantia em ouro. Tudo o mais não interessava.
Após algum tempo de expectativa, viu sair das habitações, objeto da sua observação, um homem. Desceu as escadas atrás dele, mantendo-se a prudente distância, e perguntou a um dos criados:
— Quem é esse forasteiro?
— Chama-se Buck Jerrigan. Ë a única coisa que lhe posso dizer.
Era o suficiente. Apenas quisera certificar-se para não incorrer em possíveis confusões. Seguiu-o, procurando passar inadvertido. Se o «sentenciado» se afastasse da povoação e se lembrasse de seguir por algum caminho a propósito, realizaria a tarefa empregando o revólver; a não ser assim, tentá-lo-ia no hotel, silenciosamente, quando todos dormissem. O primeiro plano falhou-lhe.
Buck realizou determinado número de afazeres no centro da cidade e regressou ao seu alojamento antes que a noite caísse, dirigindo-se à sala de jantar, onde foi imediatamente servido.
Zuquer pensou que devia aproveitar a circunstância para se orientar bem sobre os passos que deveria dar mais tarde. Subiu a escada, procedendo como se se dirigisse ao seu quarto; ao observar que não havia ninguém nas imediações deteve-se ante a porta de Jerrigan e, fingindo-se embriagado, forçou o fecho. Se fosse descoberto diria que se tinha enganado. O sigilo e a perícia de que deu mostras eram provas bem evidentes de que muitas vezes entrava em domicílios alheios contra a vontade dos seus proprietários.
Um ligeiro estalido e a porta, dócil, abriu-se lentamente. Zuquer entrou, rápido; fechando-a atrás de si. O seu olhar experimentado permitiu-lhe estudar imediatamente a colocação dos móveis. Ao fundo havia outra porta entreaberta. Entrou.
Era um pequeno gabinete de trabalho. Prestou atenção a tudo, gravando-o na sua memória. Outra porta mais, à direita, conduzia à alcova. Examinou-a também, sem que lhe escapasse detalhe. A primeira parte do trabalho estava concluída. Quando chegasse o momento de se empregar a fundo, sabia onde colocar os pés.
Voltou ao corredor, fechando novamente a porta, e meteu-se no seu quarto, deixando uma fresta que lhe permitisse observar. Buck não tardou muito a subir e a recolher-se.
As horas passaram. Zuquer esperou, no entanto, bastante tempo. Por muito que lhe interessasse resolver o assunto rapidamente, sentia aversão às precipitações. Finalmente, decidiu-se. Nas pontas dos pés chegou à porta de Buck, e, com a segurança que que dá a prática, repetiu a operação anterior. O estalido da fechadura foi desta vez mais impercetível ainda. Zuquer, já dentro da habitação, ficou escutando, posta nos ouvidos toda a essência do seu ser. Nada... Tudo estava calmo. O «inquilino» não havia despertado.
Zuquer recordava, como se o visse à luz do dia, a distribuição de quanto existia nas habitações. Isto permitiu-lhe avançar sem tropeços, embora muito devagar e com as mãos estendidas tateando na obscuridade.
Tão depressa deixou atrás de si o pequeno gabinete, chegou até aos seus ouvidos uma respiração compassada, rítmica. Os lábios do miserável contraíram-se numa careta feroz. Tudo corria bem. A vítima dormia, feliz. Dento de breves instantes passaria ao sono eterno.
Continuou o lento avanço. Já estava na alcova. Apenas o separariam do leito um par de jardas. Levantando o afiado punhal que levava na mão direita foi encurtando, com aterradora calma a distância entre ele e Buck Jerrigan,
Subitamente...
Ouviu-se um horrível grito de dor, imediatamente sufocado. Seguidamente, várias pancadas secas... Jerrigan ergueu-se, acendendo a luz ao mesmo tempo que empunhava o revólver.
Uma voz bem sua conhecida apressou-se a dizer:
—Tranquilize-se, patrão!
—Keyes!
—Eu mesmo.
Buck saiu da cama, e à luz do candelabro que acabava de acender, contemplou a cena: um desconhecido jazia no solo, imóvel com o rosto convertido numa massa sanguinolenta e o braço direito partido, fora do seu lugar. Jerrigan dirigiu uma muda pergunta ao seu subordinado que respondeu:
— Quando saiu antes de jantar, este tipo seguiu-o. Tão preocupado ia em não o perder de vista que não reparou que eu caminhava a curta distância. Chamou-me a atenção e decidi vigiá-lo. Regressou ao hotel quase atrás de si e, então desapareceu.
— Devias ter-me avisado.
—Preferi não o inquietar e ocupar-me do assunto. Tive o pressentimento de que alguma coisa se iria passar, e ao retirar-se você, deixei entreaberta a porta do meu quarto. O resto explica tudo. Viu-o entrar aqui... ... — inclinou-se sobre Zuquer, —. Já não fará mal a ninguém.
— Está morto? De todo. Dei-lhe demasiado forte na cabeça depois de lhe ter partido o braço. Vou atirá-lo fora. O espetáculo da morte é sempre desagradável. Além disso, embora tenha afogado imediatamente o seu grito, não seria de estranhar que alguém o tivesse ouvido e quisesse saber donde partiu.
—Revista-o primeiro.
Keyes obedeceu encontrando-lhe algum dinheiro, gazuas, tabaco e documentos em nome de Mickey Zuquer. Deixa tudo.
— Sim, é melhor. Estas porcarias mancham.
Assomou à janela que dava para a rua totalmente deserta e envolta na escuridão.
— Por aqui?
Buck encolheu os ombros. Henry, então, agarrou no cadáver e, após um ligeiro balanço, atirou-o como se se tratasse de um saco. Ouviu-se o ruído do corpo ao chocar contra as pedras. Henry fechou a janela e voltou-se para o seu chefe:
— Vou limpar o sangue do chão lavar as mãos... e assunto arrumado.
Jerrigan concordou, enquanto escutava atento. Não acorria ninguém. O breve grito de Zuquer, se chegara a algum hóspede, não tivera força para o decidir a entrar em averiguações.
—De quem crê que partiu a ideia de o assassinar? Porque não parece que se trate de uma questão pessoal entre esse Zuquer e você.
—Nunca o havia visto na minha vida.
— Cheira-me que esse crime germinou na cabeça de algum dos ganadeiros com quem esteve hoje.
— Também a mim, mas não quero. aventurar juízos. Tenho inimigos em muitas partes. Não nos preocupemos. Graças ao teu cuidado, o resultado da aventura dará muito que pensar aos que desejam a minha morte obrigando-os a medir o terreno que pisam.
— Então... Não pensa averiguar?
— Basta-me julgá-los a todos capazes do assassinato e estar mais em guarda do que nunca,
— Você saberá o que faz. Bom, isto já está. Não se vê nem uma manchinha vermelha.
— Então, toca a dormir!
Henry saiu. Buck tornou a meter-se entre os lençóis. O seu pensamento voava rápido; mas na sua ida e vinda de uma pessoa a outra, detinha--se sempre em Georgina Mallard, a soberba criatura que de tão ostensiva maneira fizera patente o seu desprezo.
Contra o seu costume fez ranger os dentes. Pôs o ouvido à escuta. Do exterior começou a chegar-lhe um rumor que o fez voltar à realidade do momento: alguém devia ter tropeçado com o cadáver e dava a voz de alarme. Buck deu meia volta, tardando pouco a adormecer. Despertou a meio da manhã e pediu o pequeno almoço. O criado que entrou para o atender, julgou-se no dever de comentar:
— Aconteceu um caso desagradável esta noite, perto daqui.
— Sim? — perguntou Jerrigan displicente, como se a coisa não lhe interessasse —. Que foi?
—A pouca distância da porta do hotel encontraram o cadáver de um homem caído sobre as pedras.
— Algum louco suicida...
— Parece que não. Segundo dizem, o médico que fez a autópsia afirma que o corpo apresenta sinais de luta forte.
— Pois bem... que aclarem o assunto!
— Não é de esperar. As nossas autoridades pouca importância concedem a um morto a mais ou a menos. Por outro lado, segundo rumores, era um tipo indesejável.
Buck bocejou dando a entender que a questão não lhe interessava, e o criado retirou-se. Uma hora depois, Reyes reunia-se ao seu chefe.
— Sabe?... Estava aborrecido, saí a dar uma volta e inteirei-me de certas coisas. Uma delas pode ter certo interesse.
— De que se trata, curioso Henry?
— Talvez uma simples coincidência curiosa: Mickey Zuquer foi visto ontem, num bar dos arredores, falando com Charles Jory.
—Ah!
— Interessante, não é verdade?
— Bastante.
-- Autoriza-me a ter uma «entrevista» com esse elegante cavalheiro?
Buck sorriu negando:
— Deixa-o tranquilo. As tuas «entrevistas» são demasiadamente contundentes. Prefiro entender-me com ele... e com os outros, à minha maneira, sem pressas, recreando-me com os efeitos. Anda, almoça e vai preparando as coisas. Hoje mesmo regressaremos a Anglers inn.

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