quinta-feira, 21 de maio de 2020

KNS039.07. Apanhado

O juiz Phillip Neil achava-se ocupado na sua distração favorita: a leitura. Também tinha outra que vencia a sua vontade: a bebida. Phillip Neil adorava beber «whisky». Começava por beber um copo e depois já não era possível parar; continuava esvaziando copos com rara facilidade, pois mantinha-se de pé quase sem esforço, denotando somente o nariz o abuso do álcool.
Teria sido um grande juiz, se não fosse aquele vício que o dominava. Algumas vezes tentou lutar contra o vício de beber, mas não foi possível vencer. A sua resistência durava um par de horas, mas decorrido esse espaço de tempo, decidia-se a beber um copo, afirmando a si mesmo que seria o único, mas já não era possível parar.
Este vício obrigara-o a aceitar dinheiro de Art Kearney, dobrando-se aos seus desejos e cometendo várias injustiças. Ao encontrar-se sóbrio, arrependia-se da sua vil conduta, mas o «whisky» não tardava a fazer-lhe esquecer os seus escrúpulos.
Vivia sozinha numa casa sórdida. Esta fora-lhe cedida por Kearney e era outro fator pelo qual não se podia negar aos seus desejos.
Ouviu bater à porta e levantou-se, não sem ter lançado uma maldição contra o importuno visitante. Achou-se em presença dum alto vaqueiro. Não o conhecia e perguntou-lhe em tom colérico:
— Que quer o senhor?
— Desejo falar consigo, juiz Neil.

Este ia a responder mal-humorado, quando fitou, surpreso, a insígnia de comissário presa ao peito do visitante.
— Há quanto tempo é comissário? — perguntou, admirado.
— Tive ontem a honra de ser nomeado peio xerife Carroll.
— Isso é um insulto — respondeu irritado. — Porque não me avisaram?
— Talvez o xerife não o quisesse incomodar.
— É possível, é possível — assentiu o juiz, como se a resposta do visitante fosse satisfatória.
— Posso entrar? — perguntou David ao ver que Neil continuava imóvel em frente dele.
— Sim, faça favor de passar.
O jovem sentou-se, ficando em frente do juiz. Examinou-o com atenção, franzindo o cenho. Tratava-se de um desses defensores da Lei que já conhecia e que, por desgraça, tanto abundavam naquelas povoações, onde vigorava a lei do mais forte e não faziam o menor esforço para impor a Justiça.
— Que deseja, jovem? — perguntou Neil, lançando uma nuvem de fumo.
Apesar do seu desmedido amor ao «whisky», aos cinquenta anos ainda se conservava vigoroso e forte.
— Falar sobre a morte de James Taft.
Os pequenos olhos de Phillip Neil semicerraram-se, mirando com receio o visitante.
— Para quê? — disse com desprezo. — Trata-se de um caso resolvido.
— Ainda não, pois o julgamento foi adiado.
— Então, o que deseja saber?
— Quem foi o assassino?
-- Publicaram já os jornais o seu nome: Jimmy Derek.
— O senhor sabe que Jimmy Derek está inocente. Quem matou Taft?
Neil pôs-se em pé. A sua cara estava rubra de furor.
— O senhor está louco! — vociferou, iracundo. — Saia imediatamente!
— Não, não sairei. Primeiro deve dizer-me porque aceitou a culpabilidade de Jimmy Derek.
A firmeza de David impôs-se. O juiz deixou-se cair na cadeira; o seu olhar estava posto com receio no seu interlocutor. Com voz trémula, perguntou:
— Quem é o senhor?
— David Murray; já deve ter ouvido falar em mim.
— E o advogado de Topeka?
— Exato. Diga-me a verdade.
— Derek é o assassino! Derek é o criminoso! Que quer saber mais?
David apanhou-lhe uma das mãos e torceu-lha com força.
— Quero a verdade, toda a verdade! A sua conduta é repugnante.
Phillip Neil estremeceu como se tivesse apanhado uma bofetada. Endireitou-se, com os olhos desmedidamente abertos.
— Sim, sou um miserável, um canalha. Mereço a morte. É verdade, Jimmy Derek está inocente, o assassino é...
Estremeceu. Pela janela aberta viu surgiu um revólver e antes que ele fizesse fogo, lançou-se sobre David deitando-o ao chão. Naquele momento, o oculto agressor disparou e Phillip Neil, atingido no peito, torceu-se um pouco e deixou escapar um gemido.
David, colhido desprevenido pelo vigoroso empurrão do juiz, caiu no chão. Quando se recompôs, já tinha soado o tiro que alojara uma bala no peito do magistrado. O seu olhar correu para a janela e viu um homem que tentava disparar de novo.
Deu uma volta sobre si mesmo e, puxando pelo «Colt», premiu o gatilho. Disparara quase sem fazer pontaria, no entanto, o misterioso atacante soltou a arma e levou as mãos à sua destroçada cabeça, caindo pesadamente no solo.
Como que impulsionado por uma mola, David pôs-se de pé e em duas rápidas passadas, chegou à janela. O atacante estava inerte e não viu nas proximidades mais nenhum inimigo. Tornou a ouvir outro gemido e, dando meia volta, fixou o olhar no juiz. Este, apoiado à mesa, olhava-o tendo no rosto a expressão do sofrimento.
— Obrigado, Neil... Salvou-me a vida.
— Não tem importância... rapaz. Sou um... miserável.
David fê-lo sentar numa cadeira e examinou-lhe a ferida. Verificou imediatamente que esta era mortal.
—É inútil... rapaz. Isto...
Deixou cair a cabeça sobre o peito.
— Posso fazer alguma coisa pelo senhor?
Esforçadamente levantou o dedo, indicando a garrafa de «whisky» e murmurou:
— Um... trago.
David encheu um copo apressadamente e aproximou-o dos lábios do moribundo. Este pareceu reanimar-se e o seu olhar teve um fulgor momentâneo.
– Quem matou Taft? — perguntou David.
A pergunta era inoportuna. Aquele homem estava a morrer, mas estava em jogo a vida dum inocente. O seu dever era perguntar. Neil olhou-o e respondeu com inesperada firmeza:
— Jimmy Derek está inocente; no entanto, ignoro quem matou Taft. Kearney pagou-me para que não aprofundasse a questão e Jimmy foi levado para Topeka. tudo o que sei, se...
Neil interrompeu-se bruscamente e a sua cabeça caiu sobre o peito; estava morto. David apertou os punhos com violência, exasperado pelo facto de a morte arrebatar-lhe aquela testemunha decisiva. Era certo que ignorava o nome do assassino, porém, com a sua declaração, podia prender Art Kearney, demonstrando a inocência de Jimmy.
Ouviu ruídos fora de casa. Apesar de estar pendente das palavras de Phillip Neil, nem por isso descuidara o barulho que pudesse vir do exterior. Endireitou-se. A casa achava-se situada à saída da povoação. Apesar disso, os tiros deviam ter-se ouvido nas residências próximas, pelo que estranhava não terem aparecido curiosos para saber o que se passava.
Aproximou-se da janela com cuidado e, instintivamente, baixou-se, ao mesmo tempo que um projétil passava a escassas polegadas da sua cabeça. Era atacado de novo. Compreendeu então o motivo por que os curiosos não se aproximavam. Tinham dado pela presença dos bandidos e com ajuizada prudência mantinham-se à margem dos acontecimentos.
Várias balas entraram pela janela aberta, mostrando a David que se encontrava cercado. Seria muito perigoso chegar à janela. Tinha de actuar com rapidez e decisão de: contrário ver-se-ia numa situação crítica, da qual não escaparia com vida. Da janela não podia repelir os tiros dos seus inimigos e saiu a correr do compartimento, depois de dirigir ume olhar ao cadáver do infeliz juiz.
Subiu ao sótão. Com uma pancada da coronha partiu o vidro da claraboia e disparou contra um homem agachado atrás duma árvore, que se mantinha atento com a vista na janela, para alvejar David Murray assim que este se mostrasse.
Ao ouvir o barulho do vidro partido levantou rapidamente a cabeça, mas não lhe foi possível fugir ao tiro, que lhe atingiu os olhos, fazendo-o ca ir de costas. David disparou rápido.
Dois homens fugiam assustados, tratando de pôr-se fora do alcance da sua terrível pontaria. Um deles tropeçou e caiu de bruços; o tiro acertara-lhe num rim. Vários tiros partiram os vidros da claraboia. Mas David podia defender-se melhor.
De súbito, viu que dois homens montavam a cavalo e se afastavam a galope. Disparou outra vez para precipitar a fuga. Apesar de estar convencido de que os seus inimigos tinham fugido não se precipitou; continuou imóvel, até que ouviu a voz potente do xerife:
— Quem está aí?
— Sou eu, xerife — respondeu, levantando a voz.
— Ah, é você, Wallace. Que diabo está a fazer casa do juiz Neil?
— Já desço, xerife. Espera-o uma desagradável surpresa.
Enquanto descia para o compartimento inferior, ouviu o xerife falar para vários homens que se tinham aproximado. Em frente de David apareceu o xerife e um comissário.
— Isto foi uma verdadeira batalha campal, Wallace. Aí fora há três cadáveres —disse o xerife, entrando em casa.
Deteve-se no meio da sala ao ver o corpo inanimado do juiz.
— Meu Deus, mataram Phillip Neil!
—É verdade. Esses homens dispararam de improviso. O juiz foi atingido no peito. Não pude fazer nada para o evitar, pois, na realidade, salvou-me a vida ao empurrar-me.
—É fantástico! Não compreendo porque dispararam contra o juiz. Não acredito que tivesse inimigos.
 —Talvez alguém que ele tivesse condenado.
— Não julgo provável. Há muito tempo que o juiz não dava nenhuma sentença importante; as causas eram todas de pouca monta. E o senhor, que fazia nesta casa?
— Entrei para falar com o juiz. Talvez fosse eu, quem esses homens procuravam.
—É o mais provável — concordou Carroll. — Wallace, você ainda não me explicou o motivo que esses homens têm para o querer matar.
—Talvez tenham um motivo muito poderoso! —contestou David, com ironia.
— Já umas poucas de vezes que conseguiu escapar da morte, mas a sua sorte pode falhar e cair morto num novo ataque. Aconselho-o a que se vá embora, apesar da sua ajuda ser muito valiosa para mim.
— Não vou, Carroll. Tenho curiosidade de conhecer quem é o organizador destes fogos de artifício.
—Corno queira, Wallace. O senhor é muito obstinado.
— Sempre tenho julgado ser essa a minha melhor qualidade. Conhece esses homens?
Dirigiram-se os dois até junto dos cadáveres dos bandidos. Carroll examinou-os, com frieza, como se se tratasse de cumprir o seu dever, sem denotar emoção alguma.
— Sim, vi-os algumas vezes em Bristol, mas isso não quer dizer nada. Indivíduos como eles há muitos na povoação.
— Estamos como no princípio — respondeu David encolhendo os ombros.
Os curiosos tinham-se aproximado e examinavam com mórbida curiosidade os cadáveres. Alguns pronunciaram os seus nomes, demonstrando que eram conhecidos, e foi então que souberam da morte do juiz.
A notícia circulou com rapidez. Na realidade, ninguém lamentava a morte de Phillit Neil. Tratava-se dum canalha, que abusando do privilégio do seu cargo, levava uma existência imoral, embriagando -se continuamente.
— Dá a impressão de ter-se desencadeado uma violenta tempestade em Bristol — comentou o xerife, coçando o rosto. — Não sei como vou pôr fim a este temporal.
David sorriu, deu uma palmada amigável no ombro do xerife e disse:
— Talvez se resolva da forma mais inesperada.
— É muito possível — concordou Carroll, encolhendo os ombros.
E fez um gesto como se deixasse à sorte a resolução daquele intrincado assunto.
92 —
David, no entanto, permaneceu ao seu lado algum tempo, enquanto ele ordenava a remoção dos cadáveres para o cemitério, com exceção do corpo do juiz que seria enterrado noutro sítio.
Poucas pessoas foram atrás do ataúde. Phillip Neil contava com poucas simpatias. David arrojou um punhado de terra sobre a sua tumba, ao mesmo tempo que os seus lábios murmuravam urna prece para o descanso eterno daquele pecador. O seu último gesto fora nobre e salvara--lhe a vida. Tudo isto foi feito com grande rapidez; em Kansas ninguém gostava de perder tempo com cerimónias fúnebres. O carpinteiro tinha sempre um par de caixões preparados, pois, nos últimos tempos, o seu trabalho aumentara de uma forma considerável.
Quando David chegou à pensão, Mac Gregor veio ao seu encontro, dizendo-lhe em voz baixa:
— Um vaqueiro trouxe isto para o senhor.
E entregou-lhe uma carta. David dirigiu-lhe um rápido olhar.
— O senhor conhece esse vaqueiro?
— Não, mas ele disse que trabalhava no rancho do «misse Derek.
— Obrigado, Mac Gregor.
Entrou no seu quarto. Antes de rasgar o envelope examinou-o detidamente. Não descobriu nada de particular. A sua natural desconfiança procurava alguma coisa que lhe parecesse suspeita; mas o envelope, um pouco sujo, parecia impenetrável. Desdobrou o papel e leu rapidamente as escassas palavras escritas em letra desigual.
Murray: Espero-o às oito no mesmo sítio de ontem. Tenho um assunto importante a comunicar-lhe. Weeks.»
Tirou o chapéu de cima da cama e deixou-se cair nela. Que teria descoberto Weeks? Devia ser muito importante como frisava a carta, para a enviar por intermédio dum vaqueiro. Tornou a ler demoradamente as escassas linhas e convenceu-se de que não era vítima dum engano.
Uma circunstância induzia-o a pensar assim. Tinha a certeza que a entrevista que tivera com o capataz não fora observada pelos seus inimigos; esta era a base mais sólida para acreditar na veracidade da carta. Só uma coisa o surpreendia. Como sabia Weeks onde estava hospedado?
Mas sorriu: ele tinha-se convertido num homem célebre, e numa povoação como Bristol, não devia ser difícil, ao vaqueiro que levara a mensagem, descobrir a sua residência.
*
David olhou para o relógio; faltava uns cinco minutos para as oito; encaminhou-se para o local da entrevista. Sempre fora pontual, procurara chegar em todas as ocasiões à hora marcada. Por isso desagradava-lhe imenso quando o faziam esperar. Chegou junto ao muro.
Verificou a ausência de Weeks e franziu o cenho. Olhou para o relógio, verificando que faltava um minuto para a hora fixada. Encostou-se à parede, para evitar ser visto por qualquer transeunte, pois podia converter-se numa fácil presa para os seus inimigos, que poderiam tentar esconder-se naquele sítio tão solitário.
Aquelas duas casas estavam situadas na parte extrema da povoação. Entre elas existia um carreiro e estavam muito próximos os muros dos respetivos quintais.
As casas mais próximas estavam a umas centenas de metros, o que as tornava inacessíveis a qualquer socorro. David começou a impacientar-se; já tinham passado cinco minutos. Se se tratasse dum caso vulgar, não teria hesitado em empreender o regresso ao centro da povoação, mas tratava-se de qualquer coisa muito mais importante e decidiu esperar, embora fosse necessário permanecer meia hora naquela desagradável situação.
Alguma coisa devia ter acontecido a Weeks, pois tinha a certeza de que o capataz era homem de palavra. Escolheu os ombros. Viu com prazer que já começava a anoitecer, pois esta circunstância dava-lhe maior segurança para evitar ser descoberto.
Passaram lentamente três minutos. David impacientava-se. A demora crispava-lhe os nervos, e pareceu-lho ouvir um ruído suspeito, mas não ligou importância, compreendendo que não devia deixar-se dominar pelo mau humor. Ouviu um ruído sobre a sua cabeça. Aquela voz não era ilusão. Voltou-se e ficou surpreendido ao ver sobre o muro um homem que lhe apontava um revólver.
—Lamento bastante tê-lo feito esperar, Murray.
— Quem é o senhor? — perguntou David, sem perder a calma.
— Isso não interessa. Não faça o mais pequeno movimento, senão disparo.
— Não se preocupe, tenho as mãos levantadas.
Ouviu passos que se acercavam, e por um momento, teve a esperança de que fosse Weeks, mas perdeu as ilusões ao verificar que eram dois homens que se aproximavam. Confiara demasiado, embora confessasse a si mesmo que a armadilha estava bem preparada; de nenhuma maneira podia suspeitar do acontecido.
Encolheu os ombros, resignando-se com a derrota. Não pôde evitar um gesto de contrariedade ao reconhecer Art Kearney num dos homens que se aproximavam. Um sorriso de triunfo aparecia no delgado rosto do rancheiro.
— Alegra-me imenso este agradável encontro, Murray— disse à guisa de cumprimento.
— Parece-me que está enganado, Kearney. O meu nome é Wallace, Wallace Smith.
O rancheiro lançou uma gargalhada. Aproximou-se a passos largos do jovem e tirou-lhe o revólver.
— Não tente enganar-me, Murray. Sei perfeitamente quem é o senhor; se ainda tivesse alguma dúvida, a sua presença aqui dissipá-la-ia.
— Muitas patetices tem dito o senhor. Quem é esse Murray?
— Dentro de alguns minutos poderemos dizer que já não existe. Enganou-se ao vir para Bristol. Isto aqui não é Topeka; aqui ninguém o protegerá. Encontra-se à minha mercê e vou matá-lo.
— Julgo-o capaz de tudo, Kearney.
O rancheiro sorriu largamente, pondo a descoberto os seus grandes e brancos dentes.
— Pode ter a certeza que não se engana. Em todas as suas ações anteriores nunca esteve tão dentro da verdade, como agora.
Interveio então o companheiro de Kearney. David reconheceu-o imediatamente. Andrew Strond tinha-se mantido afastado.
— Disparemos sobre ele de uma vez, Kearney.
— Não tenhas pressa, Strond — respondeu Kearney, sorrindo cruelmente. — És muito impulsivo. Antes de matá-lo quero inteirar-me de algumas coisas; David Murray vai explicá-las detalhadamente.
Apoiou o cano do revólver nas costas de David e empurrou-o para a frente.
— Siga adiante e entre nessa casa. Cuidado com o mais pequeno movimento suspeito; matá-lo-ei como um cão! David obedeceu e não tardou a entrar na casa. A porta fechou-se atrás deles.


Sem comentários:

Enviar um comentário