terça-feira, 12 de novembro de 2019

COL012.02 O enigma da diligência

Nunca em toda a sua vida, Zane Preston se havia encontrado em semelhante situação.
Um profundo desconcerto e inexplicável temor supersticioso, que estava acima do medo (físico, paralisava-o, enquanto o seu olhar se fixava nos infelizes viajantes daquela sinistra carruagem abandonada no meio do deserto.
Algo grunhiu nas alturas e Zane levantou os olhos para o céu azul com íntimo ódio. Sempre detestara aquelas malditas aves negras e horrendas, os abutres sedentos de cadáveres, que os adivinham a milhas de distância.
Voavam lentamente, repulsivos, sobre a diligência.
Zane tomou uma rápida resolução. Prendeu o seu cavalo atrás da diligência, pegou no homem caído no caminho e colocou-o entre os seus desditosos companheiros. Depois, fechou as portas sem dificuldade, devido à sua enorme força.
Feito isto, subiu para a boleia e animou os cavalos a empreenderem a marcha através do deserto. Preston, com as rédeas numa mão e o chicote de couro na outra, e com a espingarda em cima dos joelhos, ia inspecionando o terreno, à medida que se aproximavam de S. Domingo, a povoação mais próxima nesse momento.
Por muito que inspecionasse o terreno não deu com rasto de índios. As únicas marcas deixadas na terra, eram feitas por cavalos ferrados, e os índios apaches não montavam esta espécie de animais.
Sem querer, veio-lhe à mente o grupo de cavaleiros mascarados, e a dúvida começou a enraizar-se no seu pensamento. Custava-lhe a admiti-lo, mas, seria possível que seres brancos, indivíduos da mesma raça daqueles que viajavam na diligência, tivessem sido capazes de semelhante matança, levando a sua crueldade ao ponto de lhes arrancar as cabeleiras?
Este último facto era um indício acusador contra os índios. Quem iria duvidar de que não tivessem sido eles, em vista de tal circunstância?
Não havia bandido ou assaltante que fosse capaz de tal horror. Se não tivesse visto, casualmente, os cavaleiros, nem um só ser humano, não suspeitaria de ninguém que não fosse dos índios.
Zane sempre simpatizar com os «peles-vermelhas», pois a razão estava sempre pelo lado deles, nas lutas com os brancos. No entanto, também suspeitara da sua participação no massacre da diligência. Agora, existia a dúvida. Poderiam ter sido eles, mas também aquele grupo de mascarados, chefiados pela mulher loira, igualmente mascarada e totalmente vestida de negro. Mas uma mulher naquela matança cruel e desapiedada! Era por demais impressionável e monstruoso para o poder acreditar.
Talvez tivesse sido obra dos índios, depois de os mascarados terem assaltado a diligência. Mas, então, porque não ouviu gritos, tiros nem galope de cavalos, quando se aproximava do local da tragédia?
Deixou de pensar em tudo isto, porque se sentia enlouquecer, e concentrou o pensamento na condução da diligência até S. Domingo, onde sabia existir um pequeno destacamento militar sobre a chefia de um sargento, a fim de manter a ordem, devido ao elevado número de «pistoleiros», salteadores mexicanos e ianques e tribos apaches em pé de guerra, só possível pela rígida disciplina militar, à parte os destacamentos mais numerosos de Santa Fé, Socorro e Albuquerque, centros mais populosos.
Dentro da diligência, a cada solavanco do veículo sobre as suas molas, sentia-se o bater dos corpos contra as paredes do carro. Zane não podia evitar um arrepio de vez em quando, e ainda um piedoso sentimento por todos aqueles infortunados passageiros tão barbaramente assassinados. Mas para colaborar, para que aquela matança e os culpados fossem descobertos e castigados, tinha de acelerar o mais possível a marcha, para chegar a S. Domingo antes do anoitecer.
Forte S. Domingo, na verdade, era pouco digno desse nome. Ainda que num alarde de otimismo, os seus construtores, perto das ruínas da Missão franciscana, tivessem pintado uma grande tabuleta a negro com grandes letras — «Forte S. Domingo» —que o sol e o vento iam fazendo desaparecer com o tempo.
Os vinte soldados que compunham a guarnição tisnavam ao sol, passavam sede, calor e sofriam tormentos com os mosquitos, assim como andar sempre a mastigar areia trazida pelo vento, e tinham os seus uniformes azuis, todos desbotados, quase brancos, devido ao suar, sobretudo nas axilas, costas e peito. Os chapéus pareciam tudo menos os do regulamento.
Era natural que o sargento Edmond O'Hara, veterano de muitas batalhas com os índios e também da guerra civil, bebesse centos de vezes por dia, procurando afogar a areia que lhe entrava nos pulmões à força de genebra.
Era uma desgraça ser elegido chefe de um destacamento num lugar tão infernal como aquele, mas eram ordens e era preciso cumpri-las. Naquela tarde, quando o sol desaparecia no horizonte para Oeste, suspirando por cima do grosso copo meio cheio de forte genebra, murmurou entre lábios, gretados pelo calor e pelo vento da deserto:
—Califórnia... Tens sorte meu redondo amigo, em ires para lá. O que daria para seguir o teu caminha? — E, naturalmente, dirigia-se ao Sol, mas o astro-rei não o ouviu, porque desapareceu indiferente por detrás da vermelha linha do horizonte, sem parecer perturbá-lo as belezas da desejada Califórnia.
Edmond O'Hara suspirou, novamente, bebeu o resto da genebra e deu brilho aos amarelecidos galões da manga, e caminhou, preguiçosamente, até à paragem da diligência. Era estranho que esta ainda não tivesse chegado, como todas as semanas. Claro que uma vez chegou com quatro dias de atraso, de modo que tudo era possível.
—Eh, a diligência! — gritou alguém—aí chega! e só traz um cocheiro!
—Demónio! — exclamou outro, surpreendido, saindo a porta da estação da posta —e não é «Precoso» nem Harry.
O interesse aumentou pela inesperada troca no serviço de cocheiros. Isso não era costume. Até a eterna apatia do sargento O'Hara despertou um pouco e um momento depois unia-se a um grupo de três soldados e dos empregados da estação, à espera do tamborilante veículo que chegava em vertiginosa velocidade pela senda arenosa, que acabava na ampla e desigual Rua Maior de S. Domingo.
Quando a diligência parou, todos correram a rodeá-la, enquanto da boleia saltava para o chão Zane Preston, pálido e excitado, que evitando explicações abriu caminho até ao sargento, gritando:
—Não se aproximem, não toquem na diligência nem abram as portas! Esperem um momento!
Ofegante, deteve-se ante O'Hara, que o olhou, receoso, como olhava sempre todo o desconhecido com armas baixas e aspeto que podia ser de «pistoleiro», valdevinos ou salteador, com o mínimo de margem de possibilidades como homem honrado.
—Sargento, esta diligência vem cheia de cadáveres.
Ainda que a sua voz fosse baixa, embora clara, alguns ouviram-no e o rumor foi passando de uns para outros, enquanto o sargento O'Hara lutava contra os vapores do álcool, para ver com lucidez naquele assombroso caso, e todos se afastaram com supersticioso temor do fúnebre veículo.
— Disse cadáveres? — exclamou.
—Foi o que eu disse, sargento. Todos mortos.
—Primeiro de tudo, quem é você? E onde estão «Precoso» e Harry Handerson! —resmungou O’Hara, impacientando Zane com a sua pachorra.
— Chamou-me Zane Preston e vindo de Santa Fé — explicou, irritado, com a maior rapidez possível — ia apanhar a diligência em Mesa Encantada, quando me encontrei com este veículo cheio de mortos e todos eles escalpelados. E entre eles, também «Precoso» e Andersen. Também estão lá dentro. Tive de mudá-los para ser eu a conduzir até aqui.
—Escalpelados, eh?
O'Hara, com menos preguiça mas ainda com pouca atividade, abriu caminho até ao veículo e abriu a porta, dando uma olhadela para o interior. Quando voltou, estava mortalmente pálido e fazia esforços para não vomitar. Olhando com autoridade para os soldados postados junto do carro, ordenou-lhes:
—Vocês guardam a diligência para que ninguém se aproxime dela. — Sim senhor — respondeu um, perfilando-se militarmente.
—E quanto a você, Zane Preston... —os olhos azuis de O'Hara miravam com desconfiança o jovem, e indicando-lhe o forte próximo, ordenou-lhe: —venha comigo. Temos de falar sobre tudo isto...
—Estou à espera de fazê-lo há muito—disse secamente Zane. —Senão teria deixado a diligência no deserto, sem me preocupar em trazê-la até aqui.
O sargento não respondeu e juntos entraram no árido pátio do forte e encaminharam-se para uma habitação de madeira, a primeira de um grupo de três edifícios, uma das quais, larga e sólida, destinada à cavalariça.
Uma parte da maciça missão, a frente principal, mostrava umas caves húmidas, sem dúvida devia tratar-se da prisão militar de S. Domingo. No entanto tratava-se do gabinete e habitação de O'Hara. Os móveis, adornos e quadros eram tão velhos e desbotados como tudo o resto naquela casa, esquecido de mão que lhe desse um pouco de ordem e limpeza.
O'Hara sentou-se na sua secretária, e mandando Zane sentar-se na sua frente, perguntou secamente:
— Por que razão foi apanhar a diligência a Mesa Encantada, se vinha de Santa-Fé? Segundo julgo, ela parte precisamente dessa cidade.
— Bem, eu cá tinha as minhas razões...
— Que razões? —perguntou O'Hara, debruçando-se sobre a secretária, e aproximando-se de Zane.
—São de carácter particular, e sem qualquer relação com tudo isto manifestou altivamente Zane. —O que lhe quero explicar é...
—O que me vai explicar, Preston, é o que eu quero saber, e não o que você me queira contar. Pergunto, porque foi, às escondidas, apanhar a diligência longe de Santa Fé? Isso só explica uma coisa: fuga.
—De certo modo, sim. Fugia de uma mulher. E isso não tem qualquer relação com tudo isto.
—E eu repito, serei eu quem dirá se tem ou não relação. Há qualquer coisa em você de que não gosto. Se os índios fizessem o que fizeram, como estou quase certo, não me surpreenderia que um branco, renegado, que eles conhecessem bem, por ter sido seu guia sulista durante a guerra, os tenha ajudado, proporcionando-lhe dados e armas, em troca de... suponhamos, uma parte do assalto.
— Escute, sargento — disse Zane, azedo. — Em mim é possível que haja alguma coisa de que não goste, mas em si nada se aproveita. Que é que está pretendendo insinuar?
— Eu tenho ouvido falar de um tal Zane Preston que foi guia índio, guerrilheiro e amigo dos apaches — sorriu com escárnio O'Hara.
— Não será você? Acertei, amigo?
—E se o fosse? —Os lábios de Zane formaram uma linha dura sobre o seu quadrado maxilar.
—Senti-lo-ia por si, porque terei de prendê-lo como principal suspeito de cúmplice dos índios atacantes da diligência, enquanto não se desvendarem as coisas. Que para seu bem, espero que cheguem a resolverem-se favoravelmente para si, Preston.
—Está a acusar-me, a sério, dessas canalhices que acabou de dizer? — Zane elevou-se com a sua enorme figura ante O'Hara, fitando-o com os seus olhos frios como gelo.
—Sim, Preston. Não gosto de você, nem dos tipos como você, valdevinos, sulistas, renegados e amigos desses selvagens «peles-vermelhas», que tingem de sangue as nossas terras — silabou, roucamente, O'Hara, erguendo com ferocidade a cabeça. —E será para mim um prazer encerrá-lo, durante uma temporada. Não me engana com esse ar inocente e sacrificado de trazer a diligência até aqui e contar-me uma história...
—Retire o que disse, sargento, ou...
—Ou o- quê?
O'Hara franziu o rosto embrutecido pelo álcool, e levou a mão à desbotada cartucheira do regulamento. Mas não tomou no justo valor Zane, porque este sacou muito antes e disparou, arrancando-lhe a arma da mão. O militar soltou um grito, juntamente com o disparo, e Zane Prestou olhou o seu adversário ainda com o «Colt» empunhado, e exclamou com voz clara e dura:
— Repugnante sapo. Os apaches são mil vezes mais dignos de viver e de serem respeitados que os tipos como o senhor, que desonram o país e o uniforme que vestem. Apesar de ter sido militar sulista, sou mil vezes melhor que todos vós, e respeitaria muito mais esse uniforme que vestem pois a pátria também é minha!
—Isto custar-lhe-á caro, Preston — exclamou O'Hara, lívido, olhando para a mão vazia. —Hei-de mandá-lo fuzilar...
— Atreva-se...
Nesse momento chegou até ele, vindo do exterior o som de correrias precipitadas. Rapidamente guardou o «Colt», e continuou imóvel em frente de O'Hara.
—Vou deixar-te uma pequena recordação para que não te esqueças facilmente, cobarde.
Disparou inesperadamente o punho direito e logo a seguir o esquerdo. Ambas as mãos fechadas embateram como um par de cartuchos de dinamite no rosto do sargento, atirando-o contra a cadeira que ocupava momentos antes, que com o peso do embate se estilhaçou em inúmeros bocados.
O sargento rebolou cinicamente para o chão com os queixos amachucados devido ao contacto violento e inesperado dos punhos de Zane.
Naquele momento, abriu-se a porta e vários soldados armados entraram, encurralando Zane Preston. Este, sorridente, voltou-se para eles, sem tentar qualquer resistência, que agora seria um suicídio.
—Não disparem, rapazes, que já acabou a pequena discussão—sorriu com dureza.
—Rápido, prendam-no—exclamou, fazendo caretas, devido à boca dorida, o sargento O'Hara.
Cambaleando ainda, equilibrando-se milagrosamente, olhou furiosamente para o seu inimigo.
— Agrediu-me e disparou sabre mim. E mais: é o principal suspeito de colaborar com os índios no massacre da diligência. Ouviu-me, cabo Wilson?
— Ouvi, sim.
E o jovem subordinado franziu a sobrancelha, e mirou depois o imóvel e tranquilo Zane Preston.. Nos seus olhos refletiu-se certa estranheza, e mais se acentuou quando o aludido entregou a um soldado o seu cinturão, sem a mais leve resistência.
—Não foi o senhor que trouxe a diligência?
—Ê verdade, cabo—disse Zane. —O sargento O'Hara, cujo hálito cheira a álcool, e cujas palavras destilam veneno, estúpido e falto de inteligência, insultou-me. Atualmente sou civil, e defendi-me como creio ser justo. Isto é tudo quanto tenho a dizer-lhe, pois a sua expressão demonstra mais sentido das responsabilidades do que esse bêbado inconveniente e amargurado pelos fracassos de uma carreira obscura e infame.
—Preston, pode ir parar frente a um piquete de execução pelo que acaba de dizer! —rugiu, colérico, O'Hara, acercando-se dele de punhos levantados e olhos chamejantes.
—Tente-o, se tem valor para isso—desafiou-o Zane. —Mas não espere aproveitar bater-me impunemente por estar preso, pois enganar-se-á outra vez. Não me importa receber uma dúzia de balas, se em troca lhe esmurrar essa feia cara de cretino que a natureza lhe proporcionou.
O Cabo Wilson teve de fazer um grande esforço para não rir. As suas ideias coincidiam singularmente com as daquele alto e audaz forasteiro, mas tinha um dever a cumprir, por muito penoso e aborrecido que fosse, vindo de um fracassado amargurado como Edmond O'Hara.
—Acompanhe-me, senhor, e tenha em conta que tudo que diga contra o sargento, que é o atual comandante militar de S. Domingo, pode ser utilizado contra si.
— Obrigado pelo aviso, cabo—sorriu Zane duramente. —Mas se ele não me respeita como cidadão americano, livre e honrado, eu tão pouco posso respeitá-lo. Vamos...
Saíram. Zane ia entre quatro soldados armados e o cabo Wilson dirigia o grupo, ficando para trás O'Hara, murmurando frases rancorosas de ira contra o seu prisioneiro. Fechou com um violento golpe a porta, enquanto as sombras dos seis homens avançavam para o pátio do fortim. O azul da tarde descia rapidamente.
— Não devia ter feito isto, senhor —disse Wilson, voltando-se para o prisioneiro, sem parar a caminho da habitação de pedra destinada à prisão. Um brilho de regozijo bailava no fundo das suas pupilas. —O sargento O'Hara• tem os galões há dez ou doze anos. Uma vez esteve para ser promovido, e um erro estratégico custou-lhe essa promoção e outras na vidra. Ê um fracassado' como disse, mas os homens como ele não perdoam semelhantes verdades ditas cara a cara. Creio que passará um mau bocado se não resolver a situação de alguma forma.
—Não pude tolerar aquilo que disse—replicou Zane. —Fui tropa no sul, guia índio, e reconheço que os apaches são capazes de fazer mal, mas no fundo, nós próprios os obrigamos a isso, uma infinidade de vezes, e nada fizemos para evitar a guerra com os índios. Sem dúvida, embora sinta simpatia pelos «peles-vermelhas», nunca os chegaria a ajudar em semelhante matança, nem sequer a permanecer passivo. Defendo sempre os homens da minha raça, ainda que não tenham razão, e tenho-o feito um sem fim de vezes. Por isso os insultos daquele homem ofenderam-me e indignaram-me.
— Compreendo-o, acredite. Mas agora a sua vida e liberdade estão nas mãos dele, não o esqueça. Nós temos de obedecer a ordens, apesar de tudo...
Zane Preston concordou silenciosamente. A grossa porta de carvalho reforçada, fechou-se nas suas costas, ao ser introduzido numa ampla e obscura cela, de paredes húmidas, embora em pleno deserto.
Devia existir alguma corrente subterrânea ou algo parecido e o ambiente, fedorento, húmido, era dum tenebroso intolerável.
Sem se importar, Zane Preston acomodou-se com filosófica calma no duro banco de pedra, e olhou demoradamente para o catre de roupas andrajosas e sujas onde teria de dormir. Não pôde evitar de fazer uma promessa a si mesmo na quietude da cela:
—Se algum dia sair daqui, esse O'Hara vai passar um mau bocado.
*****
Eram oito da noite, aproximadamente, quando apareceu o cabo Wilson, com um soldado armado, levando um prato com comida e um jarro de barro com água. Deixou tudo isto a Zane, e falou em tom confidencial:
—As coisas vão-se pondo feias para si. O sargento O'Hara, falou demasiado por aí, e as pessoas querem justiça com rapidez, pois consideram--no um renegado capaz de aliar-se com os índios para assassinar os seus companheiros de raça.
—Pretendem linchar-me. Não é isso que sugere? —disse Zane, preocupado.
— Isso mesmo. Os ânimos andam revoltados e o sargento não contribui para apaziguá-los. A população em massa de S. Domingos revolta-se e acabará por atacar a prisão. Não creio que consigamos detê-los. Somos muito poucos.
—Um famoso futuro o meu—disse com sarcasmo Preston. —Estou a ser bem pago por preocupar-me a trazer a diligência até aqui. Mas, não ia deixar esses desgraçados no meio do deserto...
— Não me parece que você seja da classe de indi-víduos capazes de atraiçoar os seus irmãos de' raça —disse o cabo, pensativo. —Se houvesse alguma maneira de escapar... Mas vai ser difícil descobrir a verdade.
—Oiça uma coisa que eu ainda não disse a ninguém, cabo—exclamou repentinamente o jovem prisioneiro. —Tenho razões para suspeitar que essa matança não é obra dos apaches.
— Como é isso possível? — surpreendeu-se o militar. —Tudo indica que sim.
—Já o sei. Mas não creio que tenham sido os apaches, nem sequer índios de qualquer outra tribo. Em tudo isto houve intervenção de mãos de homens brancos, por mais monstruoso que pareça...
—Brancos! Não posso crê-lo.
—Então, que explicação pode ter o que eu mesmo presenciei antes de chegar à diligência? — e rapidamente referiu-se ao encontro com o grupo de cavaleiros mascarados e à loira mulher que os chefiava.
Atónito, o cabo Wilson escutou tudo aquilo. Finalmente balbuciou:
— Mas, porque não contou tudo isso ao sargento? Tem unia grande importância.
— Imagina que me teria acreditado? — mofou Preston.
—Possivelmente não—admitiu Wilson. —Eu não o duvido. Isso abre as portas a um mistério mais tremendo e surpreendente. Porque se foram homens brancos que cometeram o assalto, como pode a sua crueldade chegar a tal extremo? E como é possível que uma mulher dirija esses assassinos?
—Isso é o que eu estou perguntando a mim mesmo, cabo Wilson. ainda não encontrei resposta. Mas, sem dúvida, por trás dessa matança esconde-se uma verdade terrível. Seres que são capazes de tal coisa, são capazes de tudo, por mais atroz que seja.
«Ficarão por aqui os seus sádicos ataques, supondo que esse grupo de mascarados seja o responsável, ou, pelo contrário, um perigo mil vezes pior que os apaches em pé de guerra ameaça todos os viajantes, com a agravante de todos os crimes sejam atribuídos aos índios, mantendo-se os verdadeiros autores na sombra da impunidade?»
— Há que fazer alguma coisa para os descobrir.
—Sim, mas não aqui. O'Hara não moverá um dedo, a não ser contra mim ou contra os índios. O seu ódio aos apaches é tal, que não admitirá as culpas a mais ninguém senão a eles.
— Encontra alguma solução?
— Uma, eu sair daqui. Voltar a Santa Fé, investigar... Conheço Os lugares onde vai a gente pior da cidade, tenho amizades que envergonhariam qualquer ladrão. Difícil seria que entre eles não desse com a pista desses monstros. E assim convenceria esse «borracho» e demonstrava também a minha inocência.
— Temo que seja uma solução impossível — disse em tom amargo o cabo, encaminhando-se para a saída. —Nada posso fazer por si, pois o sargento fuzilar-me-ia em seguida.
—Então, cabo, só um milagre pode salvar-me e fazer-me chegar a Santa Fé — concluiu sombriamente Zane Preston. — Porque quando a população se amotinar em S. Domingo, arrasará tudo para me levar à forca. E esteja certo que não tardarão muito em tentar o linchamento. Conheço a gente destas terras.
O cabo assentiu silenciosamente, e já na porta olhou com ar pensativo o preso.
—Tem razão, senhor — disse. — Só um milagre pode evitar isso.

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