segunda-feira, 11 de novembro de 2019

COL012.01 Os cavaleiros

Zane Preston sentia-se culpado. Não era a primeira vez que experimentava tal sensação de culpa, pois Zane tinha muitas coisas na vida com que sentir-se culpado, e todas elas bastante más. Mas todo o seu afã de regeneração encontrava, como sempre, a mesma porta fechada. E por tudo isso fugia de Santa-Fé aproveitando as primeiras horas do amanhecer.
O Sol em breve aparecia no horizonte. A claridade que vinha detrás das dunas da argila vermelha dos desertos do Novo México, era muito difusa, muito azul e fantástica ainda, era qualquer coisa de muito remota.
Zane Preston tinha fugido a poucas coisas na vida, e muito menos de qualquer homem. Agora, pela primeira vez fugia. Mary Coffin foi a única pessoa a consegui-lo.
Não queria continuar em Santa-Fé e continuar mentindo a Mary ou, o que era pior, ceder por uma momentânea debilidade, o que de modo algum lhe convinha. E assim era melhor ser cobarde, ao menos uma vez na vida.
Não era de um homem que fugia agora, como um furtuito ladrão ou como «pistoleiro» temeroso de ser descoberto. Fugir de uma mulher também tem a sua parte heroica. E no seu caso era preciso ter uma enorme força de vontade e um grande valor para tomar tal resolução. Esta estava tomada e o caminho a seguir pensado.
Subiu lentamente para a sela de «Lucky», seu fiel cavalo, companheiro de tantas jornadas inesquecíveis. Olhando de soslaio o dono, com aquele seu olhar que parecia refletir inteligência e entendimento, como acusando-o de ser cúmplice da feia jornada de derrota e fuga silenciosa.
—Sinto muito amigo, mas não tenho outro remédio—murmurou-lhe ao ouvido e acariciando-lhe as sedosas crinas, como se pudesse ser compreendido. —E preciso ter mais coragem para isto, do que pensas. Pior era... o outro. Zane Preston é capaz de muitas coisas indignas, mas há algumas que não as fará nunca. Andando, «Lucky», que o tempo é escasso e em` breve será dia.
«Lucky» empreendeu o galope para os arredores. Cruzou as ruas desertas em silêncio, grandes extensões ladeadas de edifícios e currais, onde de vez em quando se ouvia o mugir de uma vaca ou o balir de uma ovelha madrugadora.
Por último, apareceu o campo aberto, livre de edifícios e vivendas, o caminho para Mesa Encantada, Albuquerque, Rio Grande. Até ao sudoeste, sempre tentador e fascinante para todo o aventureiro como Zane Preston.
As mãos fortes e nervosas, empunhavam as rédeas com o hábito de quem fez isso durante toda a vida, e o usado colete de pele, sobre a branca camisa fechada no pescoço, o laço negro descuidadamente caído, formava com as estranhas calças azuis com quadrados cinzentos sobre as botas de montar providas de esporas, todo o conjunto de Zane Preston.
Ao cinto um par de revólveres niquelados e de coronhas guarnecidas de madeira lavrada, oscilavam ao ritmo do galope, no seu cinturão ligado às pernas por finas correias de couro.
Zane sabia que podia apanhar a diligência de Rio Grande por altura de Mesa Encantada, mas para isso necessitava de dar maior velocidade a «Lucky», do que a de momento empreendida.
Esporeando o animal, procurou afastar do pensamento Mary Coffin, embora não fosse tarefa fácil. «Lucky» respondendo docilmente ao pedido do dono empreendeu num rápido galope para o Sul, desviando-se consideravelmente do curso do Rio Grande.
O Sol foi avançando pelo céu azul até ao seu ponto mais alto, como uma grande bola dourada, perdida no infinito azul, limpo de nuvens. As horas foram passando lentas e pesadas à medida que se aproximava o meio-dia, e com ele o árido calor do Sol na sua maior força. Nessa altura já Zane viajaria com relativa comodidade numa diligência que fazia o serviço entre Albuquerque e Socorro, se chegasse breve a Mesa Encantada.
Parecia que iam chegando, porque ao longe, recortando-se nitidamente no horizonte, apareceu a massa sólida, quadrangular e granítica da «mesa» com o seu ar entre fantasmagórico e lendário, como um estranho recife, imóvel e orgulhoso no meio do mar de rochas vermelhas.
Ansioso por lá chegar, à paragem habitual da diligência antes que fosse demasiado tarde, acelerou a marcha.
E de repente surgiram os cavaleiros.
Eram uns sete ou oito, todos a cavalo e em veloz galope em sua direção. Acabavam de dobrar a curva da grande «mesa» e o pó escarlate escondia-os consideravelmente do olhar perspicaz de Zane.
Preston tinha por costume fugir dos grupos numericamente superiores, quando o encontro era em pleno deserto e longe de lugares habitados, pois tinha desagradáveis recordações doutras ocasiões em que fora menos precavido. De modo que ao distinguir as longínquas silhuetas, sem diminuir o galope da sua montada, fê-la dar urna volta à direita e enfiou como uma flecha por entre as reduzidas rochas argilosas, estacando, de repente, com um forte estirão de rédeas.
Feito isto, saltou agilmente para terra, sacando a espingarda do arção, e obrigando «Lucky» a afastar-se a trote, escondeu-se atrás de uma rocha, preparando comodamente a arma. Esperou sem se incomodar com a terra ardente que lhe açoitava o rosto, em resultado dos seus velozes movimentos, e semicerrando os olhos para se precaver do ar quente e da areia, com o corpo pegado à terra, esperou, sem se mexer, que os cavaleiros vindos de Mesa Encantada passassem por ele.
Três ou quatro minutos mais tarde o grupo de cavaleiros cruzava a entrada da garganta, esporeando as suas montadas energicamente.
Zane, tenso e alerta, manteve-se com o dedo curvado sobre o gatilho, esperando qualquer ação contra ele. Mas nenhum dos cavaleiros deu pela sua presença e passaram ao largo, sobre o olhar atento e vigilante de Zane. Eram sete ou oito, como em princípio pensara. Porém, todos tinham um fator comum e misterioso. Todos eles iam mascarados com lenços pretos, destacando-se só os olhos quase tapados pela sombra dos seus grandes «Stetsons».
Zane Preston tinha o olhar cravado no primeiro dos cavaleiros, aquele que chefiava o grupo, muito direito na sua montada.
O misterioso cavaleiro era diferente dos demais em vários detalhes muito significativos. Começava pela madeixa de cabelo loiro que flutuava ao vento debaixo do seu chapéu preto, e depois a camisa e jaqueta curta e as calças cingindo as suas elásticas e bem formadas pernas. Um lenço igualmente preto tapava-lhe o rosto até aos olhos ocultando-lhe totalmente as feições. Aquele cabelo, as formas do seu corpo e a beleza das pernas, só poderiam pertencer a uma mulher!
Porquê uma mulher mascarada chefiava, com aparente autoridade, um grupo de homens e todos eles mascarados? Aquilo não soava bem, e Zane, uma vez passados os cavaleiros, saiu do seu esconderijo de espingarda na mão, ficando a olhar o grupo até se perder no horizonte. Ia em linha recta direito a Santa-Fé, à não ser que mais tarde mudassem de rota, dada a distância a que estavam da cidade e pelo afastamento no horizonte não era fácil que já o tivessem feito.
Intrigado, Zane ficou um largo momento pensando no caso, mas logo encolhendo os ombros, assobiou ao seu cavalo, e «Lucky» chegou até ele, vindo do interior da garganta, relinchando alegremente.
— Bem, se não encontrarmos novos viajantes tão especiais como estes, meu bom amigo, creio que ainda chegaremos a tempo de apanhar a diligência —disse, alegremente, subindo para a sela, e continuou o caminho sem mais encontros.
A diligência parecia não haver ainda dobrado o caminho para Mesa Encantada. Sobre o solo vermelho do caminho não se viam as marcas recentes das rodas.
Montado no seu cavalo, Zane esperou pacientemente um bom bocado. O Sol continuava subindo, e o calor aumentando... e a diligência não havia meio de aparecer.
Intrigado, foi ao encontro da diligência. Era inquietante que ainda não tivesse passado porque, ultimamente, havia grupos de apaches em pé de guerra e era provável que a tivessem cercado em qualquer ponto do deserto.
Ao ter caminhado apenas meia milha, viu a diligência. No entanto não avançava. Estava parada no meio do caminho e os cavalos moviam-se inquietos, mas sem arrancar. Viam-se as figuras dos homens na boleia e alguém estava debruçado na janela do veículo, que era pintado de vermelho, e com altas rodas, destacando-se na paisagem argilosa.
Zane respirou aliviado. Havia pensado o pior. Verificava que nada tinha sucedido, salvo algum imprevisto atraso ou alguma avaria que os forçara a deterem-se antes de chegarem a Mesa Encantada, onde paravam, por vezes, para apanhar algum solitário viajante.
Fez um gesto com o braço e gritou aos ocupantes da diligência, mas não o deviam ter ouvido pois continuavam imóveis e sem fazerem o mais pequeno movimento de cabeça na sua direção.
Zane, encolhendo os ombros, avançou até eles repetindo a chamada em voz alta. A escassas jardas da vermelha carruagem, deteve-se com certo receio. Ali nada se movia, nada dava sinais de vida. Como se não o pudessem ver nem ouvir apesar de estar tão próximo.
Disposto a aclarar aquele enigma, esporeou «Lucky» e um momento depois saltava para terra em frente da carruagem, chamando um dos condutores pelo seu nome.
Era Harry Anderson, um bom amigo, com quem várias vezes tinha bebido um copo. O outro um mexicano alegre e risonho, chamado «Pecoso».
Apesar disso nem um nem outro lhe respondeu ou se voltaram para ele.
Também o indivíduo debruçado na janela do lado direito não dava sinais de vida.
Zane, pensando qualquer coisa de anormal e desconfiado de tudo aquilo, sacou um dos seus «Colts», destravando-o com um seco estalo. Feito isto, avançou até junto da imóvel carruagem e dos seus ocupantes.
Uma rajada de ar quente saiu imediatamente do chapéu negro do indivíduo da janela. Zane, apesar de todas as coisas que tinha visto na vida e muitas delas pouco agradáveis, recuou um passo, arrepiado, sentindo intensas náuseas perante o espetáculo tão alucinante que tinha diante dos olhos.
O crânio daquele homem, aparentemente admirando a paisagem, era uma massa sangrenta e despida de qualquer cabelo, pois tinha sido cuidadosamente escalpelado.
Zane, dominando a repugnância e horror ante o imprevisto espetáculo, olhava agora, com instintiva penetração, para os dois condutores. Subiu, sem mais hesitações, para a boleia.
Empurrou «Pecoso» que tombou de bruços sobre o assento. O seu amplo sombreiro, caiu para o chão. Outra cabeça escalpelada, por puro prazer, sem pele nem cabelo, apareceu perante os olhos de Zane.
Quando tirou a Andersen o seu «Stetson» cinzento, enegrecido e velho, a sua habitual calva estava mais calva do que nunca. Nem um cabelo nem rasto de pele. Só as marcas do bárbaro escalpe. Em ambos os casos havia indícios de tiros mortais.
Zane Preston, pálido mas sereno, desceu para o chão. Na sua mão firme, o revólver, baixou ligeiramente. Nunca temeu os vivos, por muito fortes que fossem. Mas a presença terrível, silenciosa e trágica da morte, sempre lhe produzia a mesma sensação arrepiante.
Abriu com um puxão a porta da carruagem. O homem grotescamente debruçado rolou como um fardo para o chão. Nas suas costas havia uma grande mancha de sangue de várias balas certeiras.
Um só olhar ao interior do veículo, bastou a Zane para comprovar o que tanto estava temendo. Cinco pessoas mais ocupavam a carruagem, duas delas eram mulheres vestidas com elegantes vestidos e rostos que tinham sido atrativos. Mas agora não eram senão cinco cadáveres, rígidos como marionetes terríveis, com as suas cabeças peladas, reclinadas no assento, olhando sem ver, com olhos vítreos, dilatados pelo terror, perante o Vale das Sombras.
Aquela diligência era uma alucinante carruagem da morte e silêncio. Todas as pessoas que a ocupavam estavam mortas, e os assentos verdes estavam tintos de sangue; mas o mais trágico e arrepiante de tudo, era que os assassinos tinham tido o trabalho minucioso e cruel de os colocar comodamente, como se estivessem aguardando a continuação da viagem, quando para eles tinha terminado com o mais atroz desenlace.


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