Donovan dizia a King, enquanto no dia seguinte os «cowboys» conduziam o gado na direção prevista:
— Os rapazes disseram que não queriam que aumentassem o pessoal. «A morte do senhor Stanley é uma coisa que nos diz respeito», disseram eles. E têm razão.
— Mas assim terão mais trabalho.
— Talvez. Mas você é agora o ídolo deles. Nenhum outro patrão lhes teria dado dinheiro para se divertirem, atrasando a partida com isso.
Shelby, montado no seu belo alazão, olhava a manobra dos dez vaqueiros, cujos gritos e risos, punham em marcha a enorme manada.
— Devíamos ajudá-los.
— Isso agradar-lhes-á mais ainda. Vamos.
Aproximaram-se do lugar onde faziam mais falta. Ao chegar lá tiraram os revólveres dos coldres e dispararam para o ar, para assustar os animais.
Os que vinham à cabeça da manada, expressaram com roucos mugidos, o medo que a súbita aparição lhes causara e viraram empurrando os seus companheiros. Era uma tarefa dura que tinha algo de grandioso.
Aqueles milhares de patas pisavam o chão, levantando nuvens de pó, que se introduzia na boca e no nariz, asfixiando os vaqueiros. Por isso King, tal como os seus companheiros, cobriu a boca e o nariz, com o lenço de cores vivas que trazia sempre ao pescoço. Por fim entre gritos, tiros, imprecações e mugidos, a manada pôs-se em marcha, precedida a boa distância pelo carro dos mantimentos, que procuraria o sítio para acampar e onde preparariam a comida.
— Os primeiros dias são os piores — explicou Donovan —. Até que o gado compreenda o que se exige dele e se acostume a caminhar sempre em frente, sem se desviar da manada.
— É trabalho de homens...
— De homens com pelos no peito. Tem de se ter muito cuidado?
— Espero que não tenhamos também de lutar contra a fúria dos elementos.
— Deus o oiça. Saímos um pouco tarde e nestas épocas do ano as tempestades costumam estalar dum momento para o outro. Começam os trovões... e o gado parece que fica eletrizado e quando os relâmpagos rasgam os céus, quase enlouquece.
Caminhava a um lado da manada. Atrás ondulava um mar de cabeças formidavelmente armadas, capazes de destruir quanto se opusesse ao seu caminho.
— Quando é que costumam aparecer as dificuldades?
— Refere-se aos «protetores da Rota»?
— Sim.
— Daqui a uns três ou quatro dias. Nunca se sabe. De repente aparecem uns quantos tipos bem armados e exigem um tributo de passagem.
— Paga-se sempre?
— Que remédio! Ou então... sangue e tiros. A nenhuma expedição interessa que lhe possam morrer homens, devido a brigas idiotas.
— Mas esse foro diminui os lucros...
— É preferível, mesmo assim. É uma lei da Estrada. Se puderes, paga.
Durante as horas seguintes não voltaram a falar. King examinava o trabalho dos seus homens, desejando aprender depressa todas as particularidades daquele transporte de gado, através da pradaria.
Cada momento que passava, via quão rude era a tarefa dos vaqueiros obrigados a passar três meses sobre o selim, só desmontando para dormir. Apesar disso os «cowboys» pareciam gostar daquela vida. Embora estivessem sempre vigilantes não paravam de cantar, sobretudo de noite, em volta da fogueira.
Uma vez escolhido o local do acampamento, tinha de se fazer parar o gado e acalmá-lo para que pudesse pastar e mitigar a sede. Depois faziam a guarda por turnos, para que todos pudessem gozar uns momentos de merecido descanso, sonhando com Abilene que tão distante estava ainda.
Passaram-se assim seis dias, e tudo seguia normalmente. Free Town já estava bastante para trás. Só se pensava no que faltava percorrer. O gado já habituado à marcha quotidiana, deixava-se manejar docilmente, sem esforços suplementares. Só quando estivesse esgotado, no fim do trajeto, voltaria a dar trabalho.
Naquele dia acamparam junto a uns pastos verdejantes que se estendiam ondulantes e suaves num pequeno vale. O cozinheiro chamava-os, tocando uma campainha. Rodearam todos Mart, exceto os que estavam de guarda, entre gritos, empurrões e risos. O cozinheiro, agarrando uma enorme marmita, debatia-se protestando:
— Ordem, um pouco de ordem! Há pasto para todos! Deixem-me em paz! Vão-me fazer cair a panela!
Por fim os pratos encheram-se da comida substancial, destinada a aplacar a voracidade dos vaqueiros. Donovan e King, aproximaram-se também com os seus pratos e sentaram-se junto ao resto do pessoal.
— Bom apetite, eh, Medina? — comentou Shelby, engolindo um enorme bocado de carne.
— Aí onde o vê, patrão — interveio um dos «cowboys» — com essa carinha de bebé recém-nascido, comeu um dia um leitão assado inteiro.
Medina limpou o prato, até ficar brilhante.
— Esqueces o principal, Brady. O leitão foi só para fazer boca. Depois comi uma «omelette» de uma dúzia de ovos e uma truta que pesava mais de um quilo. Tinha pouco apetite naquele dia. Estava adoentado...
King riu com a boa disposição dos seus homens. Mart anunciou:
— Alguém quer repetir?
O grito de «Vêm aí os comanches!» não teria imprimido maior rapidez a todas as pernas. Os vaqueiros saltaram para cima do infeliz cozinheiro, pedindo a repetição.
Donovan e King riam, enquanto acendiam um cigarro. O riso desapareceu dos seus lábios e o fósforo aceso ficou a meio caminho do cigarro. Acabavam de avistar três cavaleiros, que se tinham detido por uns momentos, como que a pensar no que iriam fazer.
Donovan, vendo o aspeto sério do patrão, seguiu o olhar deste e resmungou:
— Diabo! E depois disse: — São três. Consegue distingui-los, patrão? A minha vista já não é o que era.
— Estão muito longe. Começaram a dirigir-se para aqui.
Donovan levantou a voz:
— Acabem com a risota, rapazes! Parem de comer e aprontem as armas. Temos visitas.
Todos, sem hesitar, empunharam os seus revólveres, deixando os pratos no chão. Os seus olhos vigiavam, não só os que se aproximavam, mas todos os pontos também, para evitar qualquer surpresa. Um quarto de hora depois, Donovan disse:
— Parecem pacíficos. Vêm devagar e com mãos afastadas das armas.
Depressa os identificaram.
— O cavaleiro do meio, parece uma mulher ou um rapazito.
— Carol! — resmungou Shelby, cerrando os dentes.
Era ela, com efeito. Minutos depois a filha de Stanley e os seus dois companheiros chegavam ao acampamento. Ela avançando uns passos, com o seu cavalo, perguntou:
— Veem algum inconveniente em que os acompanhemos? Seguimos a mesma direção, segundo creio.
King aproximou-se dela lentamente e disse:
— Belo golpe! Belo e sujo!
Ela crispou as feições.
— Na Rota há uma lei que todos respeitam.
— Acaba de me ensinar. Está bem. Podem acompanhar-nos. Mas essa mesma lei que acaba de evocar, também me confere um direito: o de os expulsar, se se tornarem incómodos. Estamos entendidos?
Fez-se um silêncio desagradável. Os cavaleiros que acompanhavam Carol, não tinham aberto a boca uma só vez. Eram homens habituados a tudo, de mãos e olhos, firmes e atentos. Homens, que tanto podiam ser amigos como inimigos. Mas sempre perigosos. King voltou-lhes as costas, com desprezo. Carol e os seus guarda-costas desmontaram, preocupando-se de momento, com os seus cavalos.
A alegria e animação que reinava há instantes tinha desaparecido por completo. Olhavam todos uns para os outros, como se não compreendessem.
Afastado do grupo, King refletia, encostado a uma árvore. Fumava e procurava conter a raiva, que o logro em que tinha caído, lhe causava. Estava tão absorto nos seus pensamentos, que não deu conta que Carol se tinha aproximado, vestida com trajos masculinos. Ao identificá-la, ergueu-se furioso:
— Vem brincar comigo?
— Vinha para lhe pedir perdão — murmurou ela.
— Deixe-me em paz! Fez o que lhe deu na real gana e agora pede-me perdão! Quem julga você que eu sou? Algum boneco?
Ela pareceu desapontada.
— Tinha de o fazer. Agradeço-lhe que me tenha procurado afastar, para meu próprio bem, mas sou capaz de cuidar de mim própria... e quero vingar o meu pai. Tente compreendê-lo.
— Não quero compreender nada! Já conseguiu o que queria! Bem. E agora, em que é que lhe posso ser agradável? — concluiu irónico.
Ela pareceu estremecer e os seus olhos relampejaram.
— Está bem, senhor malcriado! Já que quer guerra, tê-la-á!
Deu meia-volta e retirou-se.
Os «fora da lei» apareceram dois dias depois. De repente, quando ninguém os esperava, ocupados em fazer passar o gado por um desfiladeiro, pelo qual passava a Rota. Os três cavaleiros brotaram tão subitamente da terra, que mal se puderam pôr em guarda. Donovan, que cavalgava sempre junto a King, aguardando possíveis ordens, exclamou:
— Eles aí estão!
Mas Shelby já os tinha visto e empunhava os seus «Colts».
— Não faça isso! Seria pior! — aconselhou o capataz.
Os bandidos, mascarados com o lenço no rosto, pareciam muito senhores de si.
— Quem é o patrão? — perguntou o que parecia ser o chefe, elevando a voz, sobre o mugido das reses e do estrondo daqueles milhares de patas, pisando o solo.
— Que pretendem de mim? — perguntou Shelby, dirigindo-se aos três indesejáveis.
— Sabe-o perfeitamente... e deixe em paz esse revólver. Incomoda-me.
— Parece-me que vocês incomodam mais ainda. Que deseja?
— O costume. A sua manada causa prejuízos, no nosso acampamento, instalado justamente no desfiladeiro. Veja se percebe. Danos e prejuízos.
— Quer dizer roubo.
— Oh, não empregue expressões tão feias! Você é novo nisto, não?
— O que é que o faz supor isso?
— Nenhum tipo experimentado perderia tanto tempo a conversar. Pagaria e retirar-se-ia em paz.
— E se o não fizer?
O bandido levou a mão ao seu revólver.
— Não se assuste.
Vou disparar para o ar. Fê-lo. Como se estivessem bem ensaiados, apareceram entrincheirados nos rochedos que rodeavam o desfiladeiro, as silhuetas ameaçadoras de uns oito pistoleiros, com carabinas empunhadas.
— Está a ver? São amigos meus. Têm mau génio. E vocês têm de passar pelo desfiladeiro, a caminho de Abilene. Está a perceber?
— Estou... quanto?
— Meio dólar por cabeça. Mais ou menos, mil e quinhentos, no total.
Shelby mordeu os lábios, desejoso de resolver aquele assunto à sua maneira, mas temendo ao mesmo tempo, que aquela luta prejudicasse demasiado o seu objetivo. O que lhe interessava era descobrir o culpado pelo envenenamento das manadas. E uma batalha comprometeria a sua missão.
— Aconselhe-o, Donovan — insistiu o salteador —. Você é veterano e sabe o que costuma acontecer aos teimosos — disse trocista.
Não foi necessária a intervenção do capataz. King cedeu.
-- Receberá os mil e quinhentos dólares. Mas não esperem levar mais nada. Eu também conheço a caução do chumbo...
— Você é galo de combate, amigo. Mas tem os esporões curtos, segundo vejo. Se não se corrige, terá de procurar quem leve flores ao seu túmulo. Então o dinheiro?
King tirou do alforje dois maços de notas. De um deles tirou metade, que atirou ao bandido.
— Vão-se embora! Infestam o ar!
Depois dirigiu-se novamente para perto da manada. Donovan viu que o bandido fazia sinal aos companheiros para se afastarem. A manada passou sem dificuldade, prosseguindo o caminho do Norte.
Shelby King esteve de mau humor todo o dia, lembrando-se da humilhação que para ele representava o pagamento daquele tributo. Os seus homens, que já o conheciam bem, diziam entre si:
— Está de mau humor, o patrão!
— Infelizmente. Quando tudo corre bem, parece outro.
— Não é dos que acatam facilmente imposições dos «fora da lei».
— É a lei da Rota. Pagar a portagem ou...
— Mas os verdadeiros homens não gostam de se humilhar...
Acamparam pouco depois. Os vigilantes, sem desmontar, continuaram a cavalgar em torno da manada, procurando acalmar o gado, com grandes vozes persuasivas que apaziguavam a irascibilidade dos animais.
O eco das canções e a música da guitarra de Medina, punham uma nota diferente e melancólica, na imensidão da pradaria. Todos trabalhavam. Uns traziam lenha para a cozinha e outros segavam erva com a qual improvisavam os seus leitos, enquanto cada um tratava dos seus cavalos, o maior tesouro que possuíam.
Os dois cavaleiros que acompanhavam Coral, não tinham feito amizade com nenhum membro do pessoal. Receosos, herméticos, faziam sempre rancho à parte e não entravam nas piadas e canções gerais.
Carol também não tinha maior intimidade com eles, tendo por outro lado perdido o ascendente que sempre tivera sobre os restantes membros do grupo. Não havia um só que perdoasse à caprichosa rapariga, a desobediência às ordens dadas pelo novo patrão. E muito menos lhe perdoavam ter trazido dois tipos com o aspeto daqueles. Eram dois mundos completamente à parte. E essa desconfiança era má companheira. Mart, o cozinheiro, ao servir o café a Shelby, disse-lhe:
— Já reparou nos homens que vieram com Carol, patrão?
— Sim.
— Agradam-lhe?
— Não, nem a ti tão pouco.
— Pois é, patrão: aquilo é má gente. Não olham a direito para as pessoas. Em Free Town, não tinham amigos. Porque os contrataria Carol?
— Imprudência feminina.
— Imprudências... — disse o cozinheiro, pensativo —. Pagam-se caro, patrão.
— Temos de ter os olhos bem abertos. Todos nós.
— Os rapazes pensam como eu, patrão. Disseram-mo.
— Ainda bem.
Deixou o copo vazio no chão e afastou-se da cozinha improvisada, indo à procura de Donovan. -- Conhece os homens de Caro!?
— Penso que sim. ~
— Donde?
— Não me lembro.
— E que tais são?
— Não muito maus. Talvez os tenha visto em Free Town. Em qualquer «saloon». Gente que se contrata para qualquer coisa.
— Você dá-lhes pouca importância.
— Para quê? Não se metem em nada. Não falam. Não discutem. Estão à margem de tudo. Os rapazes receiam-nos, mas creio que injustificadamente.
— Não me agrada que Carol tenha feito esta asneira.
— As mulheres fazem tantas... Mas não se rale tanto, patrão. Talvez eles nos venham a ser úteis. Penso que sabem atirar. E na Rota surgem ocasiões de o fazer...
— Vou pensar nisso.
Chegou a hora do jantar. Os últimos raios de sol iluminavam o céu e uma brisa suave começou a chegar da montanha. Era a hora melhor do dia. A hora da serenidade e da quietude. Os pássaros recolhiam aos ninhos e as aves noturnas começavam a agitar as asas, preparando-se para começar a vida, sob a escuridão. Ao longe, uma coruja chamava o seu par. As reses mugiam intranquilas, sentindo a falta dos velhos pastos, a que estavam habituadas. Os dois companheiros de Carol, fumavam encostados a uma árvore. Cochichavam.
Afastados, os outros «cowboys» conversavam sem deixar de observar a singular parelha.
Shelby aproximou-se deles. Os dois homens pararam de conversar, mas fizeram de conta que não o viam.
— Há vários dias que andamos juntos e ainda não travámos conhecimento — disse friamente King, observando-os e sabendo que os seus homens estavam atentos a esta conversa.
— Nós também não perguntámos nomes — respondeu um com inconfundível acento californiano. — É a lei da pradaria.
— Mas vão juntos connosco e preciso de saber com quem lido. Tenho o direito de saber se posso dormir tranquilo.
Seguiu-se um silêncio glacial. Um deles resmungou:
— Isso seria uma ofensa... se não andássemos ¡untos.
O outro disse:
— Exatamente. E ocorre-me uma pergunta: porque não interroga o nosso patrão? Ela responder-lhe-á. Nós limitamo-nos a cumprir a nossa obrigação. Ela paga e nós trabalhamos. Ela é que manda.
— Talvez tenham razão — disse King e voltando-se, encontrou o olhar altivo de Carol.
— Aconteceu alguma coisa, senhor King?
— Sim — respondeu, sorrindo —. Incomoda-me a companhia excessiva. E ainda mais quando ignoro se posso adormecer tranquilo. Deixe ficar os seus guarda-costas!
Ela pareceu estremecer.
— Tenho o direito de trazer a minha própria escolta! Sou uma mulher e a pradaria é perigosa!
— Indo na nossa companhia, vai bem protegida.
Ela respondeu, ofensiva:
— E quem me protegerá de vocês, de si, senhor King?
O rapaz sentiu o sangue subir-lhe à cabeça.
— Tem sorte em ser uma miúda malcriada e poder assim insultar-me. Doutra forma levaria uma sova, no sítio onde elas se costumam dar.
Foi agora a vez de ela corar até à raiz dos cabelos.
— Você é um grosseiro!
— E você uma caprichosa! Fica já a saber: ou eles partem... ou você vai com eles. Escolha. Não quero curiosos no meu pessoal.
E afastou-se.
— Os rapazes disseram que não queriam que aumentassem o pessoal. «A morte do senhor Stanley é uma coisa que nos diz respeito», disseram eles. E têm razão.
— Mas assim terão mais trabalho.
— Talvez. Mas você é agora o ídolo deles. Nenhum outro patrão lhes teria dado dinheiro para se divertirem, atrasando a partida com isso.
Shelby, montado no seu belo alazão, olhava a manobra dos dez vaqueiros, cujos gritos e risos, punham em marcha a enorme manada.
— Devíamos ajudá-los.
— Isso agradar-lhes-á mais ainda. Vamos.
Aproximaram-se do lugar onde faziam mais falta. Ao chegar lá tiraram os revólveres dos coldres e dispararam para o ar, para assustar os animais.
Os que vinham à cabeça da manada, expressaram com roucos mugidos, o medo que a súbita aparição lhes causara e viraram empurrando os seus companheiros. Era uma tarefa dura que tinha algo de grandioso.
Aqueles milhares de patas pisavam o chão, levantando nuvens de pó, que se introduzia na boca e no nariz, asfixiando os vaqueiros. Por isso King, tal como os seus companheiros, cobriu a boca e o nariz, com o lenço de cores vivas que trazia sempre ao pescoço. Por fim entre gritos, tiros, imprecações e mugidos, a manada pôs-se em marcha, precedida a boa distância pelo carro dos mantimentos, que procuraria o sítio para acampar e onde preparariam a comida.
— Os primeiros dias são os piores — explicou Donovan —. Até que o gado compreenda o que se exige dele e se acostume a caminhar sempre em frente, sem se desviar da manada.
— É trabalho de homens...
— De homens com pelos no peito. Tem de se ter muito cuidado?
— Espero que não tenhamos também de lutar contra a fúria dos elementos.
— Deus o oiça. Saímos um pouco tarde e nestas épocas do ano as tempestades costumam estalar dum momento para o outro. Começam os trovões... e o gado parece que fica eletrizado e quando os relâmpagos rasgam os céus, quase enlouquece.
Caminhava a um lado da manada. Atrás ondulava um mar de cabeças formidavelmente armadas, capazes de destruir quanto se opusesse ao seu caminho.
— Quando é que costumam aparecer as dificuldades?
— Refere-se aos «protetores da Rota»?
— Sim.
— Daqui a uns três ou quatro dias. Nunca se sabe. De repente aparecem uns quantos tipos bem armados e exigem um tributo de passagem.
— Paga-se sempre?
— Que remédio! Ou então... sangue e tiros. A nenhuma expedição interessa que lhe possam morrer homens, devido a brigas idiotas.
— Mas esse foro diminui os lucros...
— É preferível, mesmo assim. É uma lei da Estrada. Se puderes, paga.
Durante as horas seguintes não voltaram a falar. King examinava o trabalho dos seus homens, desejando aprender depressa todas as particularidades daquele transporte de gado, através da pradaria.
Cada momento que passava, via quão rude era a tarefa dos vaqueiros obrigados a passar três meses sobre o selim, só desmontando para dormir. Apesar disso os «cowboys» pareciam gostar daquela vida. Embora estivessem sempre vigilantes não paravam de cantar, sobretudo de noite, em volta da fogueira.
Uma vez escolhido o local do acampamento, tinha de se fazer parar o gado e acalmá-lo para que pudesse pastar e mitigar a sede. Depois faziam a guarda por turnos, para que todos pudessem gozar uns momentos de merecido descanso, sonhando com Abilene que tão distante estava ainda.
Passaram-se assim seis dias, e tudo seguia normalmente. Free Town já estava bastante para trás. Só se pensava no que faltava percorrer. O gado já habituado à marcha quotidiana, deixava-se manejar docilmente, sem esforços suplementares. Só quando estivesse esgotado, no fim do trajeto, voltaria a dar trabalho.
Naquele dia acamparam junto a uns pastos verdejantes que se estendiam ondulantes e suaves num pequeno vale. O cozinheiro chamava-os, tocando uma campainha. Rodearam todos Mart, exceto os que estavam de guarda, entre gritos, empurrões e risos. O cozinheiro, agarrando uma enorme marmita, debatia-se protestando:
— Ordem, um pouco de ordem! Há pasto para todos! Deixem-me em paz! Vão-me fazer cair a panela!
Por fim os pratos encheram-se da comida substancial, destinada a aplacar a voracidade dos vaqueiros. Donovan e King, aproximaram-se também com os seus pratos e sentaram-se junto ao resto do pessoal.
— Bom apetite, eh, Medina? — comentou Shelby, engolindo um enorme bocado de carne.
— Aí onde o vê, patrão — interveio um dos «cowboys» — com essa carinha de bebé recém-nascido, comeu um dia um leitão assado inteiro.
Medina limpou o prato, até ficar brilhante.
— Esqueces o principal, Brady. O leitão foi só para fazer boca. Depois comi uma «omelette» de uma dúzia de ovos e uma truta que pesava mais de um quilo. Tinha pouco apetite naquele dia. Estava adoentado...
King riu com a boa disposição dos seus homens. Mart anunciou:
— Alguém quer repetir?
O grito de «Vêm aí os comanches!» não teria imprimido maior rapidez a todas as pernas. Os vaqueiros saltaram para cima do infeliz cozinheiro, pedindo a repetição.
Donovan e King riam, enquanto acendiam um cigarro. O riso desapareceu dos seus lábios e o fósforo aceso ficou a meio caminho do cigarro. Acabavam de avistar três cavaleiros, que se tinham detido por uns momentos, como que a pensar no que iriam fazer.
Donovan, vendo o aspeto sério do patrão, seguiu o olhar deste e resmungou:
— Diabo! E depois disse: — São três. Consegue distingui-los, patrão? A minha vista já não é o que era.
— Estão muito longe. Começaram a dirigir-se para aqui.
Donovan levantou a voz:
— Acabem com a risota, rapazes! Parem de comer e aprontem as armas. Temos visitas.
Todos, sem hesitar, empunharam os seus revólveres, deixando os pratos no chão. Os seus olhos vigiavam, não só os que se aproximavam, mas todos os pontos também, para evitar qualquer surpresa. Um quarto de hora depois, Donovan disse:
— Parecem pacíficos. Vêm devagar e com mãos afastadas das armas.
Depressa os identificaram.
— O cavaleiro do meio, parece uma mulher ou um rapazito.
— Carol! — resmungou Shelby, cerrando os dentes.
Era ela, com efeito. Minutos depois a filha de Stanley e os seus dois companheiros chegavam ao acampamento. Ela avançando uns passos, com o seu cavalo, perguntou:
— Veem algum inconveniente em que os acompanhemos? Seguimos a mesma direção, segundo creio.
King aproximou-se dela lentamente e disse:
— Belo golpe! Belo e sujo!
Ela crispou as feições.
— Na Rota há uma lei que todos respeitam.
— Acaba de me ensinar. Está bem. Podem acompanhar-nos. Mas essa mesma lei que acaba de evocar, também me confere um direito: o de os expulsar, se se tornarem incómodos. Estamos entendidos?
Fez-se um silêncio desagradável. Os cavaleiros que acompanhavam Carol, não tinham aberto a boca uma só vez. Eram homens habituados a tudo, de mãos e olhos, firmes e atentos. Homens, que tanto podiam ser amigos como inimigos. Mas sempre perigosos. King voltou-lhes as costas, com desprezo. Carol e os seus guarda-costas desmontaram, preocupando-se de momento, com os seus cavalos.
A alegria e animação que reinava há instantes tinha desaparecido por completo. Olhavam todos uns para os outros, como se não compreendessem.
Afastado do grupo, King refletia, encostado a uma árvore. Fumava e procurava conter a raiva, que o logro em que tinha caído, lhe causava. Estava tão absorto nos seus pensamentos, que não deu conta que Carol se tinha aproximado, vestida com trajos masculinos. Ao identificá-la, ergueu-se furioso:
— Vem brincar comigo?
— Vinha para lhe pedir perdão — murmurou ela.
— Deixe-me em paz! Fez o que lhe deu na real gana e agora pede-me perdão! Quem julga você que eu sou? Algum boneco?
Ela pareceu desapontada.
— Tinha de o fazer. Agradeço-lhe que me tenha procurado afastar, para meu próprio bem, mas sou capaz de cuidar de mim própria... e quero vingar o meu pai. Tente compreendê-lo.
— Não quero compreender nada! Já conseguiu o que queria! Bem. E agora, em que é que lhe posso ser agradável? — concluiu irónico.
Ela pareceu estremecer e os seus olhos relampejaram.
— Está bem, senhor malcriado! Já que quer guerra, tê-la-á!
Deu meia-volta e retirou-se.
Os «fora da lei» apareceram dois dias depois. De repente, quando ninguém os esperava, ocupados em fazer passar o gado por um desfiladeiro, pelo qual passava a Rota. Os três cavaleiros brotaram tão subitamente da terra, que mal se puderam pôr em guarda. Donovan, que cavalgava sempre junto a King, aguardando possíveis ordens, exclamou:
— Eles aí estão!
Mas Shelby já os tinha visto e empunhava os seus «Colts».
— Não faça isso! Seria pior! — aconselhou o capataz.
Os bandidos, mascarados com o lenço no rosto, pareciam muito senhores de si.
— Quem é o patrão? — perguntou o que parecia ser o chefe, elevando a voz, sobre o mugido das reses e do estrondo daqueles milhares de patas, pisando o solo.
— Que pretendem de mim? — perguntou Shelby, dirigindo-se aos três indesejáveis.
— Sabe-o perfeitamente... e deixe em paz esse revólver. Incomoda-me.
— Parece-me que vocês incomodam mais ainda. Que deseja?
— O costume. A sua manada causa prejuízos, no nosso acampamento, instalado justamente no desfiladeiro. Veja se percebe. Danos e prejuízos.
— Quer dizer roubo.
— Oh, não empregue expressões tão feias! Você é novo nisto, não?
— O que é que o faz supor isso?
— Nenhum tipo experimentado perderia tanto tempo a conversar. Pagaria e retirar-se-ia em paz.
— E se o não fizer?
O bandido levou a mão ao seu revólver.
— Não se assuste.
Vou disparar para o ar. Fê-lo. Como se estivessem bem ensaiados, apareceram entrincheirados nos rochedos que rodeavam o desfiladeiro, as silhuetas ameaçadoras de uns oito pistoleiros, com carabinas empunhadas.
— Está a ver? São amigos meus. Têm mau génio. E vocês têm de passar pelo desfiladeiro, a caminho de Abilene. Está a perceber?
— Estou... quanto?
— Meio dólar por cabeça. Mais ou menos, mil e quinhentos, no total.
Shelby mordeu os lábios, desejoso de resolver aquele assunto à sua maneira, mas temendo ao mesmo tempo, que aquela luta prejudicasse demasiado o seu objetivo. O que lhe interessava era descobrir o culpado pelo envenenamento das manadas. E uma batalha comprometeria a sua missão.
— Aconselhe-o, Donovan — insistiu o salteador —. Você é veterano e sabe o que costuma acontecer aos teimosos — disse trocista.
Não foi necessária a intervenção do capataz. King cedeu.
-- Receberá os mil e quinhentos dólares. Mas não esperem levar mais nada. Eu também conheço a caução do chumbo...
— Você é galo de combate, amigo. Mas tem os esporões curtos, segundo vejo. Se não se corrige, terá de procurar quem leve flores ao seu túmulo. Então o dinheiro?
King tirou do alforje dois maços de notas. De um deles tirou metade, que atirou ao bandido.
— Vão-se embora! Infestam o ar!
Depois dirigiu-se novamente para perto da manada. Donovan viu que o bandido fazia sinal aos companheiros para se afastarem. A manada passou sem dificuldade, prosseguindo o caminho do Norte.
Shelby King esteve de mau humor todo o dia, lembrando-se da humilhação que para ele representava o pagamento daquele tributo. Os seus homens, que já o conheciam bem, diziam entre si:
— Está de mau humor, o patrão!
— Infelizmente. Quando tudo corre bem, parece outro.
— Não é dos que acatam facilmente imposições dos «fora da lei».
— É a lei da Rota. Pagar a portagem ou...
— Mas os verdadeiros homens não gostam de se humilhar...
Acamparam pouco depois. Os vigilantes, sem desmontar, continuaram a cavalgar em torno da manada, procurando acalmar o gado, com grandes vozes persuasivas que apaziguavam a irascibilidade dos animais.
O eco das canções e a música da guitarra de Medina, punham uma nota diferente e melancólica, na imensidão da pradaria. Todos trabalhavam. Uns traziam lenha para a cozinha e outros segavam erva com a qual improvisavam os seus leitos, enquanto cada um tratava dos seus cavalos, o maior tesouro que possuíam.
Os dois cavaleiros que acompanhavam Coral, não tinham feito amizade com nenhum membro do pessoal. Receosos, herméticos, faziam sempre rancho à parte e não entravam nas piadas e canções gerais.
Carol também não tinha maior intimidade com eles, tendo por outro lado perdido o ascendente que sempre tivera sobre os restantes membros do grupo. Não havia um só que perdoasse à caprichosa rapariga, a desobediência às ordens dadas pelo novo patrão. E muito menos lhe perdoavam ter trazido dois tipos com o aspeto daqueles. Eram dois mundos completamente à parte. E essa desconfiança era má companheira. Mart, o cozinheiro, ao servir o café a Shelby, disse-lhe:
— Já reparou nos homens que vieram com Carol, patrão?
— Sim.
— Agradam-lhe?
— Não, nem a ti tão pouco.
— Pois é, patrão: aquilo é má gente. Não olham a direito para as pessoas. Em Free Town, não tinham amigos. Porque os contrataria Carol?
— Imprudência feminina.
— Imprudências... — disse o cozinheiro, pensativo —. Pagam-se caro, patrão.
— Temos de ter os olhos bem abertos. Todos nós.
— Os rapazes pensam como eu, patrão. Disseram-mo.
— Ainda bem.
Deixou o copo vazio no chão e afastou-se da cozinha improvisada, indo à procura de Donovan. -- Conhece os homens de Caro!?
— Penso que sim. ~
— Donde?
— Não me lembro.
— E que tais são?
— Não muito maus. Talvez os tenha visto em Free Town. Em qualquer «saloon». Gente que se contrata para qualquer coisa.
— Você dá-lhes pouca importância.
— Para quê? Não se metem em nada. Não falam. Não discutem. Estão à margem de tudo. Os rapazes receiam-nos, mas creio que injustificadamente.
— Não me agrada que Carol tenha feito esta asneira.
— As mulheres fazem tantas... Mas não se rale tanto, patrão. Talvez eles nos venham a ser úteis. Penso que sabem atirar. E na Rota surgem ocasiões de o fazer...
— Vou pensar nisso.
Chegou a hora do jantar. Os últimos raios de sol iluminavam o céu e uma brisa suave começou a chegar da montanha. Era a hora melhor do dia. A hora da serenidade e da quietude. Os pássaros recolhiam aos ninhos e as aves noturnas começavam a agitar as asas, preparando-se para começar a vida, sob a escuridão. Ao longe, uma coruja chamava o seu par. As reses mugiam intranquilas, sentindo a falta dos velhos pastos, a que estavam habituadas. Os dois companheiros de Carol, fumavam encostados a uma árvore. Cochichavam.
Afastados, os outros «cowboys» conversavam sem deixar de observar a singular parelha.
Shelby aproximou-se deles. Os dois homens pararam de conversar, mas fizeram de conta que não o viam.
— Há vários dias que andamos juntos e ainda não travámos conhecimento — disse friamente King, observando-os e sabendo que os seus homens estavam atentos a esta conversa.
— Nós também não perguntámos nomes — respondeu um com inconfundível acento californiano. — É a lei da pradaria.
— Mas vão juntos connosco e preciso de saber com quem lido. Tenho o direito de saber se posso dormir tranquilo.
Seguiu-se um silêncio glacial. Um deles resmungou:
— Isso seria uma ofensa... se não andássemos ¡untos.
O outro disse:
— Exatamente. E ocorre-me uma pergunta: porque não interroga o nosso patrão? Ela responder-lhe-á. Nós limitamo-nos a cumprir a nossa obrigação. Ela paga e nós trabalhamos. Ela é que manda.
— Talvez tenham razão — disse King e voltando-se, encontrou o olhar altivo de Carol.
— Aconteceu alguma coisa, senhor King?
— Sim — respondeu, sorrindo —. Incomoda-me a companhia excessiva. E ainda mais quando ignoro se posso adormecer tranquilo. Deixe ficar os seus guarda-costas!
Ela pareceu estremecer.
— Tenho o direito de trazer a minha própria escolta! Sou uma mulher e a pradaria é perigosa!
— Indo na nossa companhia, vai bem protegida.
Ela respondeu, ofensiva:
— E quem me protegerá de vocês, de si, senhor King?
O rapaz sentiu o sangue subir-lhe à cabeça.
— Tem sorte em ser uma miúda malcriada e poder assim insultar-me. Doutra forma levaria uma sova, no sítio onde elas se costumam dar.
Foi agora a vez de ela corar até à raiz dos cabelos.
— Você é um grosseiro!
— E você uma caprichosa! Fica já a saber: ou eles partem... ou você vai com eles. Escolha. Não quero curiosos no meu pessoal.
E afastou-se.
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