domingo, 10 de junho de 2018

BUF166.11 Fugir como uma alma perseguida pelo diabo

O povo debandara atrás do xerife e do seu jovem ajudante, e a rua principal ficou quase deserta. Só os velhos e as mulheres, assim como os garotos, não tomaram, naturalmente, parte na perseguição.
Mas quando começou o tiroteio nas traseiras do «saloon», a maior parte apressou-se a recolher as suas casas, como medida de precaução.
Naquele momento chegou à povoação um homem corpulento, de tórax volumoso e braços que pareciam troncos de árvore. Vestia roupas de campo, feitas de peles. O seu rosto, quase infantil, exprimiu uma divertida surpresa perante os acontecimentos.
— Eh! Que é isto? Que se passa aqui? — gritou alegremente.
Uma mulher respondeu-lhe de uma janela:
— Tenha cuidado, senhor Thorne! O xerife está a perseguir os assaltantes do Banco!
— Assaltaram o Banco?... Ótimo, cheguei a tempo!
Continuava a considerar os acontecimentos com bom humor. Chegou com o cavalo onde o velho Sidway, prudentemente escondido atrás de uma coluna do alpendre, esperava os resultados da perseguição.
— Andas com as noticias atrasadas, Thorne — disse--lhe o avô de Madge. — O Banco não foi assaltado hoje, mas sim há duas semanas. Como vives como os animais selvagens, nunca sabes de nada.
— Tem razão, avô -- riu o recém-chegado, desmontando. — A minha casa não vai ninguém com noticias. Levaram alguma coisa?
—Do Banco? Quinze mil dólares!
O corpulento Thorne assobiou com admiração.
— Demónio! — exclamou. — Com esse dinheiro mandava eu passear todas as minhas dores de cabeça.
— Já não me lembrava, rapaz — disse, de súbito, o velho Sidway, batendo na testa com a mão. — Os meus parabéns pelo nascimento do teu filho. Como está a tua mulher?
— Melhor do que eu — voltou a rir-se o homem. — Quanto ao pequeno... promete vir a ser uma rica prenda! Como o pai!
Via-se claramente que estava orgulhoso e satisfeito. Outro velho que se aproximava comentou:
—Então, pobre petiz!...
Mas exprimiu-se com bom humor e apertou alegremente a mão a Thome.
—Felicidades, papá!...
Thorne não cabia dentro do seu blusão de pele.
—Depois pagarei a todos uma bebida — prometeu. — Assim que o juiz o registar como novo cidadão de Los Alamos. Foi para isso que cá vim.
— Pois não sei se o juiz terá tempo agora de registar recém-nascidos. Já sabes o que se passa?
— Estava a contar-mo o senhor Sidway... O assalto ao Banco, não?
— Foi no dia em que nasceu o teu filho.
— Ah, sim?... Bem dizia eu que ele vinha ao mundo com muito barulho! Claro que tinha de se saber que era meu filho... Saiu tão decidido que nem sequer esperou que chegasse o doutor Griffith para nascer. Nasceu sozinho!... Tenho de lhe ir pagar a visita. Foi também atrás dos assaltantes?
— O doutor? Não me parece. Andava há instantes por aqui e teve uma discussão com o «Doutor Uísque». Mas não sei se terá ido.
— Continuam a guerrear-se?
— Não sabes?... Ah, claro, tu não estás ao corrente! Tem sido uma festa.
— Bom, pois conte-me tudo, senhor Sidway, enquanto me dá de comer. Faremos tempo para que acabe o barulho e possa ir a casa do juiz.
O outro velho despediu-se deles e Sidway e Thorne entraram no restaurante. Enquanto Madge lhe servia a comida, o avô contou ao caçador os acontecimentos. O outro escutava com atenção. A falta de noticias na sua vida solitária, nas montanhas, permitia-lhe saborear o relato como coisa terrivelmente interessante. Quando o velho terminou a sua história, Thorne ficou muito pensativo, a abanar em silêncio a cabeçorra quadrada.
— Sim, senhor, bonito sarilho! — exclamou. — Claro, o doutor Griffith não me contou nada, porque esteve em minha casa nessa mesma tarde. Também foi uma casualidade, porque, como disse, o meu filho fez das suas desde o princípio. Se o doutor não tivesse ido assistir à minha mulher...
— Talvez não tivesse acontecido nada — corroborou o velho Sidway. — Mas foste tão oportuno que lhe mandaste recado naquela mesma noite...
— Na noite anterior, quererá dizer. Eu avisei-o na quinta-feira e o assalto foi na sexta.
—Não. O assalto foi na quinta-feira à noite.
— Não, avô. Não havia eu de saber quando nasceu o meu filho! O meu filho nasceu na sexta-feira à tarde, e o doutor chegou às duas da madrugada.
— De quinta-feira.
—De sexta!
Madge, que estava a servir um prato a Thorne, escutava-os em silêncio. Sidway protestou:
— Não sejas teimoso. Tu avisaste-o na quinta-feira à noite, e o doutor partiu justamente na altura do assalto. Ao amanhecer, quando encontraram o tal Duff a morrer, já cá não estava. Portanto, chegou a tua casa na sexta--feira de manhã.
— Ai, minha mãe! — riu-se o caçador. — Querem ver que eu estou, doido, agora? Eu avisei-o na quinta-feira, de acordo. Mas ele só partiu na sexta-feira à tarde, porque chegou a minha casa de madrugada, na sexta-feira! E o garoto nascera naquela mesma tarde. Portanto, se o assalto tivesse sido na quinta-feira à noite, como você diz, o doutor Griffíth saberia disso e ter-mo-ia dito.
Sidway começou a hesitar. Comentou:
— Não sei... Talvez esteja enganado, Thorne, mas juraria que foi na quinta-feira.
— Foi na quinta-feira — asseverou Madge. — Eu também tenho a certeza.
— Mas se não pode ser! Se...
Interrompeu-o a porta, ao abrir-se. E soltou um grito de júbilo, ao verificar que era o próprio doutor Griffith. quem entrava.
— Viva, doutor! Caiu do céu! Chega a tempo de pôr termo a uma discussão.
— Sim? — observou o facultativo, apertando-lhe a mão. — Disseram-me que estavas aqui e vim perguntar--te pela tua mulher e pelo teu filho. Como estão?
— Ótimos! Obrigado, doutor. Precisamente tencionava ir a sua casa para lhe pagar...
— Não há pressa.
—Bom, mas sempre é melhor, não?... Mas como ia a dizer, precisamente estávamos a discutir a seu respeito.
—A meu respeito?
— Sim. O senhor não chegou a minha casa na sexta--feira de madrugada?
Griffith hesitou e respondeu:
—Não sei... Não me lembro bem... Porquê?
—Porque Sidway diz que o assalto ao Banco foi na quinta-feira à noite e que o senhor partiu de madrugada para minha casa.
Antes de o médico falar, o avô de Madge assegurou:
— Quando fomos levar-lhe o Duff, na sexta-feira ao romper do dia, o senhor já tinha partido naquela mesma noite. Não é, assim?
— Sim.
— Seria ao amanhecer de sábado — insistiu Thorne. — Se o senhor chegou na sexta-feira à noite...
Griffith hesitava. Não parecia Muito seguro. Madge teve a impressão de que estava nervoso.
—Não me lembro muito bem, mas... talvez fosse na sexta-feira à noite o assalto — disse.
— Claro! — exclamou Thorne, triunfante como um garoto. — Se não pode ser de outra maneira! De outro modo, o senhor levaria vinte e quatro horas a chegar a minha casa... e não creio que o seu cavalo corra tão pouco!
Desatou a rir com toda a sua calma. Griffith também riu, bem como o velho Sidway, que acabou por concordar:
— Então é porque a minha cabeça está como a de um pirolito.
Mas Madge não era da mesma opinião. Dirigiu ao médico um olhar carregado de dúvidas e foi para a cozinha, sem fazer comentários.
Thorne acabara de comer e levantou-se.
—Bom, vou ter com o juiz. Parece que já não há barulho na povoação. Vêm comigo? Temos de beber à saúde do meu filho.
O avô de Madge decidiu-se sem demora.
— Claro que te acompanho!
Mas o médico disse:
— Eu irei depois. Tenho de fazer agora uma visita.
— Bom, pois não terá dificuldade em nos encontrar. Onde ouvir muito barulho... Mas não se demore, hem?
— Descansa.
Thorne e o velho saíram, rindo-se e dando palmadas nas costas um do outro. O caçador ia dizendo:
— Que fraca memória a sua, senhor Sidway!
Assim que os dois saíram, Richard Griffith ficou a olhar pensativo para a porta da cozinha, por onde saíra Madge pouco antes, e dirigiu-se para lá.
Quando apareceu no limiar, verificou que a rapariga tirara o avental branco e estava a pendurá-lo num prego da parede, junto da saída para o pequeno pátio das traseiras da casa.
Ela virou-se ao pressenti-lo. O seu rosto estava muito excitado e havia nos seus olhos um estranho misto de temor e censura. Griffith perguntou:
—Vai sair, menina Sidway? Estava profundamente sério e não podia dissimular o seu nervosismo.
— Sim — respondeu Madge. — Tenho de fazer uma coisa.
—Permite-me que a acompanhe?
Aproximava-se dela. Madge adivinhou nos seus olhos algo sombrio e ameaçador. Quase sem querer, murmurou:
— O assalto ao Banco foi na quinta-feira, doutor Griffith. Por que mentiu?
Ele continuava a aproximar-se, atravessando a cozinha devagar. O seu rosto contraiu-se num esgar nervoso.
— Não menti — afirmou. — Talvez não me lembre bem. Mas que importância pode ter isso?
— O senhor demorou vinte e quatro horas a chegar a casa dos Thornes.
— Bom, talvez tivesse um acidente no caminho... Agora me recordo: o meu cavalo torceu uma pata.
—Por que não disse isso a Thorne? Voltou com o mesmo cavalo?
— Curou-se.
Estava já tão perto, que Madge, assustada, começou a retroceder para a porta das traseiras. Desaparecera--lhe a cor das faces.
— Que... quer? — gaguejou. — Já lhe disse. Acompanhá-la.
—Para quê?
—Para ter a certeza de que não vai contar ao xerife esta conversa.
Madge, à beira do pavor, sufocou um gemido e quis deitar a correr. Mas Griffith agarrou-a por um braço.
—Você não vai a parte nenhuma!
— Largue-me! Largue-me! — gritou ela, dominada pelo pânico.
Mas, apesar de se debater com todas as suas forças, não conseguiu libertar-se das mãos do médico. Este empurrou-a para dentro da cozinha e fechou a porta.
— Quero que me acompanhe a minha casa, onde poderemos conversar tranquilamente acerca deste assunto tão aborrecido.
—Não irei a lado nenhum consigo! Não sei o que fez, mas mentiu por algum motivo.
Deu um novo puxão e, ao ver que não conseguia safar-se, empurrou com todas as suas forças Griffith contra a mesa do centro. O médico, que não esperava aquilo, perdeu o equilíbrio e caiu de costas, arrastando Madge com ele, para cima da mesa.
— Maldita!... — resmungou.
Mas teve de a largar. Ela, aproveitando aquele segundo de liberdade, saltou agilmente para a porta das traseiras, saiu para o pátio e correu como uma alma perseguida pelo diabo.
Griffith rolou sobre a mesa e caiu de joelhos, no chão, quando Madge sala da cozinha. Sem pensar, tirou o revólver da cintura e disparou.

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