terça-feira, 3 de abril de 2018

POL157.03 Nem o veneno da artemísia os fez parar

Avançavam os três cavaleiros como sombras. O que ia à cabeça vestia de preto e preta era também a montada. O luar, quando ele passava em planuras, dava-lhe no rosto arrancando lampejos às suas pupilas. Atrás, os outros jovens cavalgavam inclinados sobre as crinas dos animais para lhes aliviarem o peso.
Não falavam. A missão que pretendiam levar a cabo não requeria palavras. Já as tinham dito: «Guess deve morrer.» Iam cumprir esse imperativo de justiça inexorável.
Durante algum tempo continuaram ainda por desfiladeiros e quebradas, até que finalmente começaram a atravessar os campos de artemísias floridas.
O aroma das flores brancas e amarelas embriagava-os. Apressavam-se a deixar aquelas paragens. A artemísia, durante a noite, é muito perigosa, porque o seu perfume entontece as pessoas e destempera os nervos. Isto na época da florescência. Os índios usam-na medicinalmente. Secam as flores de centro amarelo, cozem-nas e ingerem-nas como remédio para várias doenças. Mas sabem que se alguém dormir num campo de artemísias poderá despertar com o Juízo transtornado pelo veneno que provocam.
Deixados para trás esses campos, os três cavaleiros entraram nos cultivados. Agora o luar vestia-os de prata e alongava as suas sombras na verdura. De tempos a tempos, viam milho e arbustos com frutos sazonados.
Igswon e os companheiros avançavam, implacavelmente para a casa de Guess e nem prestavam atenção ao panorama daquelas terras que tanto significavam para os mórmones. Contudo, era por elas e pela liberdade dos seus donos que tinham declarado guerra ao tirano.
Não era a primeira vez que o povo mórmon de Flown Rock lutava contra um déspota. Sempre soubera sacudir o jugo. Mas agora tudo era diferente. Os homens de Ewig, demonstrando a maldade infinita das suas almas, usavam armas e chicotes com que dizimavam os rebeldes.
Só que... Ewig não contou com Igswon, criado entre os índios, e que, portanto, não sabia perdoar. No seu peito ardia o espírito guerreiro e vingativo dos «navajos», Por isso, também ele desenterrara um simbólico machado de guerra contra o inimigo dos mórmones.
Ao chegar ao cimo de uma colina, o jovem Odd deteve o cavalo. Ao fundo do vale via-se a mole cinzenta de um edifício. Tudo estava em sombras e a luz leitosa do luar dava reflexos estranhos às pedras vermelhas da casa.
— A tua mão é chamada a fazer justiça— recordou Igswon a Siem.
— Está pronta e não tremerá quando apertar o gatilho — redarguiu o jovem.
 — Avante, pois!
Desceram a encosta e meteram-se no caminho que
ia ter a porta. A areia amortecia os passos dos cavalos e o silêncio que os envolvia tornou-se ainda mais impressionante. Uma vez em frente da porta, e antes que eles desmontassem, abriu-se um postigo na parte superior e apareceu um rosto envelhecido de mulher, de cabelo encaracolado e cintilantes olhos. Igswon, desmontando, encaminhou-se para a porta.
— Queremos falar com Guess.
--O meu marido ainda não voltou— disse a mulher, de olhos postos nos recém-chegados. — Quando os ouvi, até julguei que fosse ele.
Igswon franziu os sobrolhos.
— Na povoação disseram-nos que podíamos encontrá-lo aqui.
— Ainda não voltou. Foi à tarde para faiar com o chefe Ewig
— Seria de lamentar que estivesse a mentir — respondeu o jovem Odd, sem se afastar da porta.
— O meu marido está na povoação, já disse — repetiu a mulher, como a recitar uma lição ensinada. — Não voltou ainda.
Igswon montou de um salto e fez sinal aos companheiros. Tomaram o caminho de Flown Rock.
Teriam percorrido umas cem jardas, quando Ynn estendeu o braço, apontando para a distância.
— Talvez vocês tenham melhor vista que a minha. «Aquilo» não será um cavaleiro galopando para Flown Rock?
— Juraria ser Guess! — exclamou Siem. -- Não acreditei no que disse a mulher. Vamos alcançá-lo.
Dali à povoação seria milha e meia e o cavaleiro só levava umas quatrocentas jardas de avanço. Não era impossível apanhá-lo.
Lançaram-se os três a galope, em perseguição do que fugia, e ganharam terreno a pouco e pouco. Mas em breve compreenderam que não o alcançariam.
Ao cabo de minutos, o fugitivo já chegava às primeiras cases da povoação. Igswon parou e meteu a espingarda ao ombro. A detonação ribombou com estrondo na quietude da noite. Manifestou Igswon o seu regozijo ao ver que o animal do fugitivo dava uma cabriola e caía juntamente com o cavaleiro. Então, deu de esporas e lançou-se em corrida louca para o local onde tombara o traidor.
Igswon não queria perder tempo.
Guess levantou-se rapidamente, movido por uma só ideia: fugir aos justiceiros que vinham pagar-se da sua delação.
O melhor que pôde, correu para a primeira esquina, daí disparando o revólver e tornando logo a correr para a esquina seguinte. Só ambicionava poder chegar a casa de Ewig!
Sempre correndo, disparava de vez em quando para dificultar o avanço dos inimigos. Igswon e os dois outros, a cavalo, compreenderam quanto era difícil continuar com a perseguição naquele labirinto de ruelas, porque Guess podia aproveitar todos os acidentes ao passo que eles teriam de se manter a descoberto.
Por outro lado, a permanência na povoação não podia prolongar-se demasiadamente, dado que as gentes de Ewig acabariam por acorrer ao local dos tiros e então voltava-se o feitiço contra o feiticeiro.
Pareceu que este pensamento dos três amigos teve o condão de chegar a Ewig. Um grupo de cavaleiros despontou no outro extremo da rua por onde iam seguir naquele momento e uma chuva de balas desabou sobre os rebeldes.
Ao aparecerem os pistoleiros, Guess saiu do esconderijo para se acolher a eles. Siem, que tinha dado uma volta para ver se apanhava o traidor pela retaguarda, lançou-se sobre ele com o cavalo, que lhe atirou ao peito os cascos dianteiros. Ao mesmo tempo, Siem disparou contra o denunciante do pai as balas que lhe restavam no revólver.
Só por milagre os projéteis dos homens de Ewig não o atingiram.
Um momento depois, os três jovens rebeldes voavam, cavalgando, na direção em que tinham vindo e sendo eles agora os perseguidos.
Igswon compreendera que não podiam fazer frente aos pistoleiros do cacique. Eram em número excessivo. O melhor seria fugir da povoação, com a máxima rapidez, tanto mais que aos primitivos perseguidores se haviam juntado outros, orçando agora por. mais de uma dúzia.
Os cavalos dos rebeldes, como se tivessem asas nas patas, devoravam milhas e milhas. Mas os outros não desistiam da perseguição, dispostos a acabar com os três, sobretudo com o cavaleiro negro, que se levantara contra o chefe Ewig.
Igswon compreendeu que seria melhor separarem-se para despistar os inimigos. Um cavaleiro sozinho pode mais facilmente perder-se de vista, enfiando por qualquer reentrância da montanha.
— Siem! — gritou ao companheiro mais próximo. — Separemo-nos! Sigam vocês para o Pico da Aguia e procurem chegar ao acampamento pela Passagem do Deserto.
— Está bem.
Os dois, Ynn e Siem, torceram à direita e ele continuou na mesma direção, a caminho da montanha. A princípio, pareceu que o grupo se ia dividir, como esperava Igswon. Mas, afinal, todos se lançaram após ele, o que facilitou a fuga aos outros dois.
Igswon sorriu. Indubitavelmente, os perseguidores só por ele se interessavam, dado que era o chefe dos rebeldes. Não sabiam, porém, com quem lidavam. Uma vez que chegassem a determinado ponto nunca o apanhariam.
Picou de esporas o cavalo e este aumentou ainda de velocidade. Três milhas passadas, começaria o terreno quebradiço dos primeiros canhões.
Voltando a cabeça, viu que os seus perseguidores esporeavam cruelmente as montadas para que mais depressa galopassem. Desde a saída de Flown Rock não se disparara um só tiro, o que era significativo.
Igswon teve a convicção de que seria a sua espingarda a primeira arma a fazer fogo. Sem diminuir o galope, tirou do coldre a aWinchester» e meteu-lhe uma bala na câmara. Depois, com leve pressão de perna, indicou ao Cavalo o caminho a seguir.
Entravam na primeira brecha do terreno. Verificou que os inimigos, não se intimidando com isso, enfiavam também por ela. O estrépito dos cascos reboava nas graníticas paredes como um eco de catarata e perdia-se ao longo do desfiladeiro. Chegando ao outro extremo, Igswon voltou à direita e subiu por uma ladeira, sem olhar para trás. Pensou que os perseguidores tentariam o mesmo. Isso iria custar-lhes algum desgosto em paragens que ele conhecia mais que bem.
Esperou, até que o grupo reapareceu na planície e o luar prateado incidiu sobre eles. Então, Igswon apontou cuidadosamente e apertou o gatilho.
Um dos perseguidores levou as mãos ao peito e escorregou na sela, caindo por fim no solo pedregoso. Nova bala posta, novo tiro disparado, novo inimigo abatido.
Os perseguidores precipitaram-se pela encosta acima, ao verem que local ocupava Igswon, mas este esporeou a montada e meteu-se pelo negro corredor que se abria adiante.
A saída, repetiu o estratagema, a coberto de uma rocha. Mal despontaram os inimigos, disparou dois projéteis, e teve a satisfação de ver que outros tantos pistoleiros eram postos fora de combate, graças aos seus mortíferos chumbos «44».
Aquela maneira sistemática de os dizimar quebrou bastante a coragem dos do grupo, cujos componentes passaram a procurar locais de entrincheiramento. Igswon não abandonava, porém, o ataque. De vez em quando, embora já sem acertar, ainda fazia fogo, provocando a resposta dos inimigos.
Não devia, porém, consumir naquele jogo toda a noite. A solução teria de ser diferente.
Pôs nova bala na espingarda e observou os movimentos dos sitiadores. Um deles tentava alcançar uma posição elevada de onde o pudesse dominar. Sorriu ao ver que esse atrevido se punha a descoberto sempre que corria a mudar de esconderijo. Esperou uns segundos. Calculou de que ponto ele iria despontar. O bandido, quando o julgou oportuno, saiu para dar uma corridinha. Igswon comprimiu o gatilho. O pistoleiro caiu, rebolando pela encosta, com um acréscimo de peso na cabeça.
Uma saraivada de balas cravou-se na rocha atrás da qual se entrincheirava Igswon. Mas já ele retrocedia e, com um salto de pantera, montava no cavalo. De novo o bater de cascos da sua montada voltou a despertar os ecos da noite.
Os esbirros de Ewig resolveram trocar impressões e não devem ter gostado da ideia de prosseguirem no encalço do perigoso cavaleiro negro. Tinham sofrido baixas demasiadas e, por outro lado, percebiam a sua desvantagem por não conhecerem bem aqueles terrenos ao passo que o adversário os conheceria a palmos.
De um pináculo próximo do sitio que deixara havia pouco, Igswon viu os do grupo montarem a cavalo e começarem o regresso a Flown Rock, com alguns animais sem cavaleiro.
Sorriu ao pensar que Ewig iria ficar louco de raiva ao saber da derrota em que terminara a perseguição. Não era que se importasse com a morte de vários dos seus homens, mas daria uma boa parte do seu erário a quem lhe riscasse do número dos vivos aquele tenaz inimigo que era uma espada constantemente suspensa sobre a sua cabeça.
Emendou com um puxão de rédeas a direção seguida pelo cavalo. Ynn e Siem já deviam encontrar-se no acampamento e, se ele demorasse talvez saíssem a procurá-lo.
A noite estava magnifica, luarenta e, por isso, convidava à meditação. Deixou o animal avançar a passo, sem pressa alguma. Contemplou a majestade impressionante da paisagem.
O cavalo deteve-se no alto da colina, sem que Igswon desse logo por isso. Olhou em redor e só então reparou que estava precisamente num alto dos que rodeavam o vale dos rebeldes. Dez minutos depois entrava por um dos apertados canhões de acesso.
O filho de Wohim dirigiu-se-lhe e tomou conta do cavalo.
— Já estávamos com receio de te terem caçado, Igswon.
— Os esbirros de Ewig têm os dentes fracos para pele dura como esta minha. Quando resolveram voltar para trás, iam cinco a menos.
—Boa dentada!
—Perseguiram-te ainda durante muito tempo? —perguntou Ynn, que se aproximava, acompanhado por uns quantos mais.
—Umas dez milhas. Até a Quebrada do Sol.
—Despistaste-os no começo dos desfiladeiros?
— Um pouco mais adiante. Fui fazendo o jogo do lobo e compreenderam por fim que eu daria cabo de todos se persistissem na loucura de me perseguirem.
— E Guess? — quis saber uma velha que chegara junto do grupo.
Igswon fitou-a uns momentos e sorriu.
— Siem executou a justiça que a morte do pai reclamava. Os traidores sempre devem ter mau fim. Todos assentiram.
Afastou-se do grupo e dirigiu-se à tenda da viúva do velho Ynn. A anciã já lhe tinha arranjado uma chávena de café e permanecera acordada até ele regressar.
— Graças a Deus, Igswon! Quanto receávamos todos por ti!
— Bem vês que eram infundados esses receios. Nada pode impedir que se cumpra a nossa missão. O tirano cairá e a sua cabeça aguardará na praça da povoação que a devorem os abutres.
— Deus te ouça! -- exclamou a anciã, com voz de «requiem».
Igswon bebeu o café e despediu-se da velha, recomendando-lhe que dormisse sossegada.
Encaminhou-se para o recanto que escolhera para ele e, fumando, percorreu com o olhar todo o acampamento.
Ali estavam os que nele tinham confiado: velhos e crianças, à sombra da sua proteção; adultos que, fartos do tirano, abandonaram os lares e seguiram para a montanha a fim de lutarem, unidos, contra Ewig. Todos eles sedentos de justiça. Ali estava o povo mórmon que sofrera os castigos do carrasco armado em chefe. Nas costas de muitos podiam ver-se as marcas do chicote que os humilhou diante do infame que a si próprio se considerava como um deus.
Tudo clamava justa vingança -- igual à que Igswon Odd jurara sobre as cinzas dos seus. Dia a dia, o grupo rebelde aumentava com fugitivos de Flown Rock. Dia a dia aumentava também o ódio contra o tirano.
Estes e outros pensamentos tiraram-lhe um pouco o sono. Levantou-se, acendendo outro cigarro. A passo lento, dirigiu-se para o bordo do bloco granítico e pôs o olhar na distância. Talvez naquele momento Agar estivesse a pensar nele, a sonhar com ele...
Olhou para o Sul. O luar parecia vir do horizonte, como fantasma, para lhe tocar nas mãos. Por trás daquele muro Invisível estavam os guerreiros «navajos», esperando, ansiosos, a ordem de ataque do seu irmão rosto-pálido.

Sem comentários:

Enviar um comentário