segunda-feira, 2 de abril de 2018

POL157.02 Um rebelde com a cabeça a prémio

Stephen Ewig, montado no magnífico alazão, contemplava a cena sem que um só músculo da sua face tostada revelasse o menor sintoma de emoção. Dir-se-ia que era uma estátua de pedra, insensível. Mas o brilho cruel dos seus olhos desmentia a suposição, dando-lhe ao rosto uma expressão diabólica.
A praceta estava pouco menos que deserta. Apenas dez pessoas compunham o quadro selvagem que se desenrolava perante o olhar de Ewig, enquanto o chicote assobiava, traçando velocíssimos ziguezagues no ar e caindo sobre as nuas costas do homem amarrado ao poste de tortura.
Wohim, o ancião pastor de Flown Rock, tinha caído na desgraça de Ewig desde que alguém viu sair de sua casa o filho de Odd. Isto aconteceu um mês antes, mas nessa manhã o primogénito de Wohim partira para a montanha, a juntar-se aos homens de Igswon. Ninguém tornara a ver o jovem Odd, mas todos sabiam que, depois de lançar o repto a Ewig, estava recrutando gente e já contava com alguns dos muitos mórmones que tinham fugido para a montanha, a fim de não caírem sob o chumbo dos de Ewig.
O chicote continuava a flagelar as apergaminhadas costas do ancião. A esposa e as duas filhas choravam, a poucos passos, obrigadas a assistir ao bárbaro espetáculo. Wohim não professava a religião de Young, mas a cristã e por isso tinha uma só esposa e não duas ou mais como é costume entre os mórmones.
Já sete vezes caíra o látego nas costas de Wohim, quando o rápido galopar de um cavalo se ouviu no cimo da calçada e todos se voltaram para aí, surpreendidos. O cavaleiro vestia totalmente de preto e negra também era a sua montada. Reconheceu-o imediatamente Ewig e pôs-se a bradar:
— E Igswon Odd! Matem-no! —juntando às palavras a ação, disparou os revólveres, ao mesmo tempo que se deixou cair para evitar as balas do inimigo.
O jovem Odd disparava, sem deter o cavalo. Dois homens que ergueram as armas tombaram no chão, de bruços, com a cabeça esburacada. Ewig fazia fogo, mas Igswon escorregou-se para o lado oposto do cavalo, à maneira dos índios. Passou por entre as pessoas aglomeradas na praça e desapareceu no outro extremo da rua.
A inesperada contingência durou uns segundos. Três homens ficaram mortos, 'na calçada. Então, Ewig ordenou aos outros que perseguissem o cavaleiro negro.
— Não voltem sem me trazerem ao menos a cabeça desse homem! — gritou aos que iniciavam a perseguição.
Encarou depois no velho, que tinha desmaiado, e, sem mais nada, fez fogo por duas vezes contra o seu corpo imóvel.
— Assim acabarão os que provoquem a minha ira! — exclamou, dirigindo-se às três mulheres, agora mais horrorizadas e encolhidas. — Levem-no, se quiserem.
Deu meia volta ao alazão e tomou o caminho de casa — a que fora morada do antigo chefe da povoação, cargo que ele agora ocupava por via da violência.
As três mulheres, desfeitas em pranto, apressaram--se a tomar conta do corpo sangrento do ancião e levá-lo para casa a fim de lhe prestarem as honras fúnebres.
No entretanto, os esbirros de Stephen Ewig galopavam atrás do jovem para lhe darem morte. Estranhavam, contudo, a maneira como ele fugia. Parecia gostar de ser perseguido e só procurava manter a mesma distância inicial para que não chegassem até ele as balas inimigas.
Deste modo galoparam até atingir os escombros requeimados que assinalavam a localização da antiga casa dos Odd. Então sucedeu o inesperado. Passavam pelo caminho marginado de altos e fortes robles, quando ouviram estranhos silvos, como de serpentes que voassem. Não eram. Três cordas, com os respetivos laços, habilmente lançados, cingiram-se no pescoço dos cavaleiros perseguidores.
Foram arrancados violentamente das montadas pelo próprio movimento destas. Segundos depois, os três bandidos balouçavam de outros tantos ramos, enquanto vários mórmones desciam dos carvalhos, iam buscar os seus cavalos escondidos no mato, montavam e, todos juntos, galoparam para a montanha.
Atravessaram desfiladeiros e gargantas, em direção a Sudoeste. Encontraram-se por fim diante de um maciço de rochas e o jovem Odd refreou o cavalo, no que foi imitado pelos companheiros. Igswon levou as mãos à boca, à maneira de buzina, e emitiu um som semelhante ao de animal ferido, O eco reboou de parede em parede e foi correspondido por outro semelhante dai a momentos. O quartel general dos mórmones exilados não oferecia novidade nos seus domínios.
Esporearam os cavalos e avançaram pelo novo desfiladeiro que se abria diante deles, chegando ao outro lado, viram-se num amplo vale meio vermelho de artemísias e meio verde de pastagem.
Minutos depois, detinham-se por fim no acampamento. Aproximaram-se deles vários homens, um dos quais, o mais velho, perguntou:
—Que novas trazes de Flown Rock?
— Poucas e desagradáveis — redarguiu Igswon. — Ao chegar lá, estavam açoitando o pastor Wohim. Deve estar morto agora. Mas vingámo-lo. Seis homens de Ewig foram parar ao inferno.
— No entanto, o povo continuará a ser dominado pelo terror, enquanto não esmagarmos o monstro.
— Dizes bem, velho Wess. Acabaremos de uma vez com ele, não te reste a menor dúvida.
— Oxalá!
— Por agora, convém que partas para Salt Lake City e ponhas o bispo ao corrente da última infâmia de Ewig.
— Parto imediatamente.
O velho foi pôr a sela no cavalo. Muniu-se de armas e balas, bem como de uma bolsa com alimentos, e sem perguntar nada mais, montando no brioso animal, lançou-se a galope.
Igswon foi saudando a um e um todos os refugiados, tendo para cada qual uma palavra de conforto e uma carícia sorridente para as crianças.
Tinha conseguido reunir já sob as suas ordens um pequeno exército de homens que odiavam o execrando Ewig, e dos quais podia esperar a libertação do povo pelo aniquilamento da tirania do verdugo.
Os homens de Igswon Odd careciam ainda, porém, de mais alguma coisa para poderem efetuar o ataque decisivo, muitos dos honrados colonos não se decidiam a abandonar terras e casas para se juntarem àqueles bravos da montanha e seria catastrófico o provocarem uma batalha campal em que, embora matando muitos sequazes de Ewig, também morreriam muitos dos bons mórmones.
Stephen Ewig, por seu turno, recrutara todos os assassinos da região mediante a promessa de os encher de riquezas se o ajudassem a liquidar os refugiados nas montanhas, proscritos como ele chamava.
Até de Salt Lake City tinham vindo pistoleiros, com eles organizara um autêntico exército de quase cem homens, que praticavam mil e um desmandas. As mulheres escondiam-se nos recantos das casas com receio de serem raptadas. Os homens saíam para os campos, a fim de trabalharem, e procuravam não dar nas vistas, evitando encontros com a matula do cacique.
Os habitantes da povoação mórmon de Flown Rock tinham chegado a tal extremo de terror que já nem sabiam queixar-se da tirania. De tempos a tempos, alguns fugiam, indo engrossar as fileiras dos rebeldes.
Yaim Swan, o pai de Agar, ainda se negava a deixar as suas terras. Quando Igswon o foi ver nessa manhã, o ancião declarou que se manteria ali enquanto fosse possível, mas que não admitiria qualquer arbitrariedade de Ewig.
Foi inútil quanto lhe disse Igswon para o convencer a abandonar as terras e esperar que os revoltosos liquidassem o tirano. O velho era casmurro e não desistia de uma deliberação tomada.
Igswon estava a pensar nisto quando viu dirigir-se--lhe a aprumada figura de Siem, o filho do pastor Wohim.
— Disseram-me que viste açoitar o meu pai.
— Nada pude fazer para o impedir. Só consegui matar nesse momento três dos seus carrascos. Descansa que o teu pai não deixará de ser vingado.
—E eu considerar-me-ia indigno de ser seu filho se meu pai não fosse vingado — replicou o jovem.
Igswon viu-o sair da tenda e rememorou o acontecido na praça de Flown Rock, quando um dos verdugos chicoteava o ancião.
Estava resolvido a acabar com o poderio de Ewig, mesmo que tivesse de arrasar a aldeia. Agora ainda contava com poucos homens para dar combate, cara a cara, às hostes do bandido, mas, sendo necessário, socorrer-se-ia dos «navajos», que certamente não deixariam pedra sobre pedra.
Mas primeiro tinha de convencer os bons mórmones a abandonarem casas e terras. Os índios não se deteriam a perguntar quem eram os rostos-pálidos que deveriam ou não ser mortos. Portanto, precisava de fazer sair da aldeia os bons amigos. Aqueles que teimassem viver sob o regime de Ewig, que lhe sofressem as consequências. Ele tinha-os avisado.
A teimosia que mais lamentava era a de Yaim Swan. Como derradeira solução, iria em busca de Agar e levá-la-ia à força, antes de pedir aos índios que atacassem a povoação.
Quanto aos que secundavam os planos de Ewig, iria «tratando» deles um a um. Para já, nessa noite, ajustaria contas com Guess, o traidor que denunciara Siem e o pai como seus amigos.
Guess tornara-se partidário de Ewig porque este o ajudou de mão armada na contenda que ele teve com o cunhado. Isso foi considerado um acto ignóbil. E os mórmones não perdoam actos desses.
Depois de comer alguma coisa e beber uma chávena de café que lhe preparou a viúva do velho Ynn, montou a cavalo e dirigiu-se para o outro lado do vale, subindo então a encosta. Daí, contemplou o panorama impressionante que se lhe oferecia aos olhos.
Ao fundo, por trás da muralha de neblina, avermelhada, estava a fronteira do Deserto Pintado, onde começavam os domínios do chefe «navajo» «Águia Branca».
A seus pés, onde termina o declive das montanhas, perto do rio, viam-se os «jogans» dos «mokis», cujos rebanhos pastavam tranquilamente nos verdes vales que se estendem até o Colorado.
Igswon ouvia o bramido da água ao despenhar-se das alturas para as profundidades do Grande Desfiladeiro e estremeceu ao compenetrar-se da grandiosidade maravilhosa da Natureza.
Todo aquele terreno que divisava era domínio absoluto dos seus amigos peles-vermelhas.
Sorriso cruel lhe marcou os lábios ao pensar que nem um só dos seus inimigos poderia escapar à fúria dos irmãos índios, sedentos de se vingarem daqueles homens que, lentamente, pretextando o avanço da civilização, se foram apoderando das suas culturas e dos terrenos de caça, com argumentos capciosos.
Desceu novamente para o vale onde se refugiavam os mórmones amigos. O sol tocava os píncaros das montanhas e dentro em pouco as sombras da noite principiariam a alastrar nas encostas.
— Siem... Ynn...
Aproximaram-se os dois.
— Preparem os cavalos e as armas — pediu o chefe dos rebeldes. — Vamos sair daqui a momentos.
-- Para Flown Rock? — perguntou Ynn.
— Perto... Guess deve morrer como o pastor Wohim morreu por culpa dele.
— Obrigado, Igswon Odd — agradeceu o jovem Wohim.
Dedicou-se então Igswon a estudar o plano para o castigo do traidor. Não lhe restava dúvida: Guess estaria de sobreaviso e preparado para se defender de um ataque dos rebeldes. Talvez tivesse dentro de casa alguns homens de Ewig, se é que ele próprio já não era também um dos seus pistoleiros, de um ou de outro modo, tinha os dias contados. Igswon não lhe perdoaria a traição deixando-a sem castigo exemplar.
Em breve as sombras cairiam nas ladeiras do Leste e os desfiladeiros se tornariam escuros como bocas do inferno. Então, chegaria «Unha Curta», como todos os dias, trazendo recentes informações da povoação. E palavras de Agar...
Pensando na rapariga, suspirou com melancolia. Agar sempre fora a mulher dos seus sonhos. Nunca ele tomaria uma segunda esposa, porque, embora ao falar com os seus irmãos de cor, aludisse ao Grande Manitu, professava a religião dos pais, a cristã, como a do falecido pastor Wohim. Compreendia ser inútil esforçar-se por tentar que os índios mudassem de religião. Para eles só existia o Grande Manitu com os seus extensos prados de caça dos búfalos brancos.
Igswon tencionava casar naquele ano com Agar, a mais formosa e pura das raparigas de Flown Rock. Mas Ewig destruíra-lhe os planos. Teria de esperar algo mais, Siem, silencioso como um fantasma, aproximou-se.
— Estamos prontos para quando quiseres, Igswon.
—Logo que chegue «Unha Curta» com as últimas noticias, partiremos.
— Pois sim.
O mórmon retirou-se. Pouco depois apareceu o «mokis». Já era noite cerrada, e a lua, com todo o seu esplendor, amortalhava de branco o vale dos rebeldes. O índio chegou junto da jovem sem fazer ruído algum.
— Que novas traz o meu irmão de cor, «Unha Curta»?
— Os ouvidos do «mokis» escutaram, mas os seus olhos eram como se estivessem fechados não podendo ver nada.
— Fala.
— O chefe Ewig tem boca de coiote empestado, desde que passaste por lá esta manhã. O chefe Ewig mandou pôr o nome de Igswon Odd nas esquinas, oferecendo muito dinheiro pela sua cabeça.
—Trazes algum recado de Agar?
— Agar falou a «Unha Curta»: «Diz a Igswon Odd que estará sempre no meu coração.»
— Podes retirar-te, «Unha Curta».
O índio descruzou os braços de cima do peito e, dando meia volta, dirigiu-se para o cavalo. Montou velozmente e iniciou o galope para a salda do vale.
Igswon permaneceu imóvel durante uns momentos, a encher a alma com a breve mensagem amorosa de Agar, até que se levantou e foi ter com Ynn, que estava uns passos adiante, sentado numa pedra, como era seu hábito.
— Partimos agora mesmo, Ynn — disse-lhe.
— Já estamos prontos há um pedaço, Igswon.
O jovem Odd pôs a sela no cavalo e apertou-a devidamente. Depois, colocou a espingarda no arção e montou com agilidade, sem se utilizar do estribo.
— Vamos!
Mais de quarenta pares de olhos viram os três cavaleiros passar pela zona iluminada das fogueiras e perderem-se nas sombras que invadiam a outra vertente do vale, onde a luz da lua não chegava. Guess estava condenado a não ver o nascimento do sol no dia seguinte.

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