quinta-feira, 9 de novembro de 2017

PAS801. Encontro romântico com a filha do grande chefe

A planura de areia seivosa foi-se tornando mais compacta e menos resvaladiça quando distavam meia centena de metros os primeiros cactos polposos, excelente alimento açucarado.
À sombra destas plantas espinhosas e hostis pululavam coelhos selvagens, grandes ratos, sapos e lagartos, de cores variegadas.
Um pequeno mundo que sabia esconder-se quando o felino das mesetas, o «Chetah», metade pantera, metade leopardo, andava, contra o seu costume, pelo Bosque dos Cactos.
Um pequeno mundo que já conhecia, mas que se mantinha afastado do felino, que abandonava a zona onde cresciam os grandes «cactos de Josué», para acorrer ao cheiro do homem.
E não havia mais do que um homem tendo por mansão o musgoso espaço entre as árvores de Josué.
Kid Cactos para os de Fort Defiance e Bronco Navajo para os apaches, uns três anos antes tinha encontrado um cachorrinho junto de uma fêmea morta, o mesmo que, batendo agora a cauda contra os seus esbeltos flancos e com os olhos verdes fosforescentes, apareceu quando o mestiço pisava o seco solo oriental do verde bosque espinhoso.
O mestiço continuou caminhando no mesmo passo largo, à maneira do navajo que, sem cavalo, quer percorrer depressa e sem cansaço largas distâncias.
O «chetah» voltou a desaparecer quando Kid Cactos chegava ao círculo de vegetação musgosa que atapetava o solo, enquanto a dois metros de altura se enlaçavam, formando uma abóbada, líquenes e lianas que se haviam enroscado em torno das gigantescas árvores de Josué.
Entre duas pequenas rochas, a cinza cobria um fogo recém-acendido. Odor a carne assada, a ervas e a sumo de piteira refrescante exalava-se dos nacos de caça enfiados em compridas varinhas de fina madeira duríssima.
A mulher que havia preparado aquele «papoose» acabou de fincar a terceira vara pelo extremo que servia de pega.
Em pé, inclinou, por duas vezes, a cabeça que havia coberto com um tecido de cor azul e branco. Vestia como as filhas de chefe de tribo apache.
Tinha liberdade de acção e nunca era seguida.
— A filha de Wasai Heque é imprudente como uma pomba domesticada — disse o mestiço sombriamente —mas é uma doce chicotada que não magoa, vê-la esperar-me. Ela não sabe que poderá mostrar no seu bonito pescoço colares de marfim que embelezará a linda cor da sua testa, que poderá admirar num espelho que para ela fui buscar.
E descravou uma das varas, mordendo a carne com apetite.
— Spring Heque ama-te e não quer os teus presentes, Bronco orgulhoso. É filha de um grande chefe.
—Que ficará raivoso quando souber que sua filha se comporta como uma «mulher pintada». Os teus darão pelo meu cabelo muitos presentes, Spring.
—Se eu não tivesse gravado o teu rosto no meu coração, não me faltarias assim. O meu orgulho iguala o teu, Bronca «halfbreed».
— O meu meio sangue sussurra o teu nome com amor pelas minhas veias, porque não diferencia tribos, Spring. O sangue de navajo cala-se, porque seria vergonhoso que também murmurasse o teu nome com amor, Spring Heque. Depressa as trevas não me deixarão ver se na ausência o teu rosto recebeu ultraje da borrasca...
Ela deitou então o tecido sobre os seus ombros. Tinha os olhos negros fulgurantes e as finas feições da tribo superior que dominava a passagem oriental do Grand Canyon. O corpo forte, mas flexível, era bem o da «mulher herdeira» que só se desposasse um chefe apache deixaria de suceder a Wasaj Heque, «Lobo Astuto».
O mestiço acabou de comer. E colocou o bornal, o cinto e a carabina sobre uma das pequenas rochas. Estendeu-se sobre o musgo, bocejando:
—O cansaço mói o ânimo. Dormirei, filha de Wasaj.
Ela tirou do bornal o espelho e os colares. Colocou estes no pescoço e desfez as tranças. Adoptou diversas posições, dizendo:
— Sou preciosa como um amanhecer de Primavera, isso disseste. Sou bonita como o rumor duma fonte, isso disseste... — assim falava, enquanto Kid a procurava abraçar.
Fingiu debater-se para se sentir mais aprisionada no abraço. Fugia com o rosto. A filha de Wasaj Heque só dava o seu amor ao que a dominava: Bronco Navajo.
Murmurou algum, tempo depois:
— Os meus olhos turvam-se e sinto-me morrer quando gravas o teu nome nos meus lábios. Porque só eu conheço o teu verdadeiro nome. E em cada beijo renasce a minha contínua esperança. Eu serei algum dia a mulher-chefe dos Wasaj Heque. E tu poderás ser rei.
— Reino em ti e teu escravo sou. Basta-me e sobra-me.
— O teu «chetah» é mais amável, Bronco orgulhoso. Vou partir.
— Entrança primeiro os teus cabelos ou os guerreiros que te escoltaram se rirão de ti.
— Ninguém se atreve a rir de mim. E entrançarei o meu cabelo só quando eu o quiser.
Apoiada sobre um cotovelo, num êxtase prazenteiro, Sprig Heque dilatou repentinamente os seus olhos. Com felina elasticidade, pôs-se de pé, pressurosa. Guardou o espelho, colares e travessas.
Voltou a olhar o horizonte, onde o crepúsculo se tingia de vermelhas nuvens que acorriam como prelúdio do cálido e abrasante vento das mesetas.
Disse entrecortadamente:
— Voltarei quando passarem as homenagens devidas a Manitu...
Correu a colher o seu arco e as flechas. E empregando como bastão a sua lança com o distintivo da sua nobreza, abandonou apressadamente o musgoso oásis.
Bronco Navajo continuou estendido. Perto, a dois passos apenas, o «cheth» bocejou e espreguiçou-se, estendendo-se quanto pôde.
A lua escarlate não atemorizava o felino. E Bronco Navajo dormiu profundamente, sem loucura ou ataque de demência.

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