domingo, 10 de julho de 2016

BUF118. CAP VII

Na sala reservada encontrava-se toda a família reunida. As mulheres tinham decidido tomar parte nos acontecimentos ou haviam sido chamadas pelos maridos, para contarem com a sua aprovação a respeito do que resolvessem.
O aposento tinha cortinas verdes que cobriam as paredes numa das quais se encontrava uma janela que deitava para um estreito pátio, varias mesas de jogo, assim como sofás e poltronas, e Um par de espelhos nos espaços livres das paredes.
Bertha e Nan estavam sentadas num sofá. Kitty de pé, defronte de Um dos espelhos. Silvestre também se encontrava de Pe. Waco estava sentado diante de uma das mesas e tamborilava sobre o tapete verde com os seus grossos dedos. Havia outra personagem mais, e Ted coçpreendeu sem demora quem fornecera a informação sobre as intenções do velho a respeito da herança.
Hub estava deitado noutro sofá, debaixo de Um cobertor, com o rosto afilado descomposto, tremendo de febre, e com o ruivo e encaracolado cabelo ainda húmido. Procurou levantar-se ao ver o irmão que acabava de chegar, mas faltaram-lhe as forcas. Ted dirigiu-se para o seu lado e inclinou-se sobre ele.
— Olá, Hub. Como estás, rapaz?
Afagou-lhe a cabeça. A verdade era que simpatizava com o aleijado e que estava disposto a desculpar-lhe qualquer coisa que fizesse. Não levava vida fácil, não, aquele infeliz, com o seu enorme medo ao pai que o colocara naquela situação de isolado, sem amigos, sem ninguém a quem confiar-se.
Obrigou-o a entrar no conflito a pergunta colérica de Roland:
— Falaste com o nosso pai, Ted? Que te disse?
Era pueril que pretendesse ocultar-lho. Por outro lado, não estava disposto a faze-lo. Eles tinham o direito de lutar pelo que imaginavam seu.
— Lamento, Roland. O nosso pai decidiu, efetivamente, casar com Castile, a «zunhi», e deixar herdeiros da sua fortuna todos os índios da povoação.
Sentiu a onda emocional que o envolveu.
— Maldita seja! — berrou o mais velho, que se tornara pálido. — Que lhe disseste tu? Fizeste-lhe ver como procederíamos num caso desses?
— Procurei convencê-lo de que não era um ato muito sensato, Roland. Mas o velho possui também as suas razões.
Preparou-se para a batalha. Os olhares que se cravavam em si feriam como navalhadas.
— E, claro está, tu aceita-las. O nosso pai deve ter-te recompensado pela tua fidelidade.
— Fecha essa porca boca, Roland! — ameaçou-o Ted. — Bem sabes que não obtenho nenhuma recompensa por isso, exceto talvez a de ver-te rabiar. Mas ouçam o que vou dizer-lhes e procedam em conformidade. Não tenciono combater o velho. Se quer casar com uma India é lá com ele. E quanto ao destino que der à sua fortuna, não me interessa absolutamente nada. Ele acha que deve remediar assim o mal que fez aos autênticos donos destas terras, quando há quarenta anos apareceu por aqui e os enganou e atraiçoou até conseguir apoderar-se de tudo. Pois tem perfeito direito a isso!
O longo discurso fora seguido com atenção por todos; com uma atenção carregada de furor.
— O rancho é nosso! Pertence-nos! — gritou Sil.
— Não permitiremos que faça uma dessas! — apoiou Waco. — Iremos para os tribunals, iremos...
Roland deu um passo e aproximou-se do irmão mais novo, com o rosto convulso.
— Nada de tribunals! — Opôs-se, com os dentes cerrados. — Nada de tribunais. Iremos Iá esta mesma noite e correremos essa índia de casa... seja como for. E escorraçaremos, se for preciso, todos os índios da povoação. O nosso pai terá de reconsiderar. Que tencionas fazer, Ted?
Ted sabia o que se ocultava atrás das palavras brutais do primogénito dos Boyce. Aquele «seja como for» não encobria senão uma fria decisão de morte.
— Tenciono impedir-te de fazeres o que estás a tramar, Roland. Terás de passar sobre o meu cadáver e bem sabes como isso será difícil.
Esperou a reação de Roland; mas o irmão mais velho, que cada vez estava mais amarelento, ficara como que petrificado por aquela declaração. Ted observou os demais e descobriu que as suas expressões eram semelhantes. Quem parecia mais afetado era Hub, que conseguira soerguer-se e se apoiava num cotovelo, fitando-o com angústia.
— Bem — declarou — vou-me embora.
Foi Kitty quem pôs os irmãos em movimento com o seu acento claro, cristalino, e o seu aspeto angelical, disse:
— Se o deixarem sair, correrá a prevenir o velho e essa pele-vermelha de que tencionamos ir lá.
Roland estoirou a seguir:
— Maldito sejas, porco traidor! — gritou, e atirou-se a ele.
Ted preparou-se para recebe-lo.
Roland era forte e capaz de dobrar uma Barra de ferro entre os dedos; mas Ted possuía o ímpeto, a combatividade de um búfalo novo. A sua força causava assombro aos que haviam tido ocasião de comprová-la. E a contundência dos seus punhos era suficiente para derrubar uma parede de um pé de espessura.
— Não, Roland, não! — gemeu o aleijado.
A luta que se travou entre os irmãos revestiu-se de características de uma violência incrível. A nenhum ocorreu servir-se das armas. Ted foi o primeiro a bater e a despachar o irmão como se este recebesse o coice de uma mula.
A alta e ossuda figura do primogénito abateu-se contra o canto onde estava Hub, que assistia, aterrorizado, contenda. Por momentos, o aleijado julgou que iriam esmaga-lo.
Contudo, Roland virou-se no ar e atingiu o irmão com o seu enorme punho direito. Ted manteve-se firme e contra-atacou com uma serie de golpes rápidos aos flancos, demolidores e brutais.
A luta teria ficado por ali, porque apanhado em semelhante círculo, o mais velho dos Boyce foi-se tornando roxo, com um princípio de asfixia.
— A mim, irmãos! — conseguiu gritar.
— Ajudem-no! — animou-os Kitty e deu o exemplo, atirando-se ao cunhado.
Por Um momento, Ted vacilou ante o inesperado ataque. Sil foi o segundo a acudir ao apelo da mulher. E depois Waco e Nan.
Tratava-se de uma libertação do ressentimento que sempre haviam experimentado pelo preferido do pai. Naquela ocasião desforraram-se, bateram-lhe com sanha. Não saíram indemnes, porque Ted os recebeu com uma chuva de murros de todos os estilos, que nem sequer perdoaram as mulheres. Antes, pelo contrário, teve uma singular satisfação em descarregar a mais soberba bofetada que a hist6ria do Oeste podia registar na sua esquisita e adorável cunhada Kitty.
Remeteu-a para um canto, onde ficou sentada no chão, com as pernas afastadas e ar atordoado. Mas a verdade foi que as damas acabaram com Ted. Bertha, ao mesmo tempo que murmurava frases incoerentes que se referiam a Guerra de Secessão, pegou num jarro de cerveja com o qual o atacou.
E Nan agarrou-se-lhe a uma perna, impedindo-o de andar e de fugir aos ataques dos homens. Em breve o dominaram e perdeu os sentidos. E como se quisesse orquestrar aquela vingança, lá fora generalizou-se a tormenta.
Raios e trov5es e a água que caia com maior forca do que nunca. Hub contemplava, com um nó na garganta, a forma como maceravam o rosto e o corpo de Ted. E eram elas, em especial Bertha e Kitty, que se tinham recomposto, as que de modo mais cruel dirigiam as pancadas.
Suspenderam o castigo por esgotamento e ficaram arquejantes, suados, com os rostos convertidos em máscaras de estultícia e estupor. Ted permanecia estendido no solo, inconsciente.
Por fim, Roland inspirou com força e inclinou-se sobre ele. Verificou que unicamente perdera os sentidos e ergueu-o nos braços.
— Que vais fazer? — alarmou-se Sil.
— Vou... vou deitá-lo na lama, para que refresque... — tartamudeou o mais velho. — Espero que isto lhe sirva de lição e que veja claro o que lhe convém.
— Fazes mal — preveniu-o a fria voz de Kitty. — Não desistirá do seu empenho de estorvar o que vamos fazer.
As suas palavras seguiu-se um silêncio, que a obrigou a agitar-se inquieta. Roland quebrou-o. Fitava a cunhada com dureza e impressionava com o corpo de Ted suspenso nos braços.
— Mulher, não esqueças que este sangue que goteja no chão é o de nós todos — declarou. — Não me parece que possa incomodar-nos. Mas mesmo que assim fosse, não faria... isso que tu pensas.
Kitty voltou a sorrir. Mas virou a cabeça sobressaltada, ao escutar outra voz. Era Dany, o capataz, que se encontrava a porta da sala e os observava investigadoramente.
— Que aconteceu? Que tem Ted?
Roland girou sobre as pernas para ficar de frente para ele, sem largar o corpo de Ted.
— Não houve outro remédio senão bater-lhe, Dany — disse. — E bem sabes porque não podemos permitir que este louco se ponha do lado do velho e o ajude a cometer um crime contra nós.
— Está... está...?
— Não. Apenas desmaiado. É forte como um touro e resiste a tudo. Vou levá-lo para a rua e deixá-lo à chuva, para que esperte.
Começou a caminhar após proferir estas palavras. A sua passagem pelo «saloon» surpreendeu os clientes e emudeceu-os. Overton correu para junto dos Boyce que tinham chegado a porta da sala reservada.
— Demónios! — exclamou. — Mataram-no?
Dany fulminou-o com os seus olhos cinzentos.
— Não tenhas pressa, maldito mestiço — grunhiu. — Ainda falta muito para teres essa satisfação.
Pouco depois regressou Roland, que sacudia as mãos como se se tivesse libertado de um fardo incomodo.
— Dei-lhe um bom banho de lama — comunicou, com um sorriso de satisfação.
Os irmãos também sorriram. A verdade era que, depois de o terem sovado, vingando-se da sua arrogância e da posição que ocupava junto do pai, se sentiam orgulhosos dele e da fortaleza que demonstrara. Ate Hub, do sofá onde continuava estendido, fez uma careta de prazer.
— Esta bem — interveio Kitty, que não participava de tal contentamento. — Mas quando iremos correr com a pele-vermelha?
A pergunta levou todos a encolherem-se. O próprio Roland fitou com desagrado a cunhada, que nem lhes dava tempo de respirarem.
— Vamos para dentro — propôs. — Discutiremos o nosso piano. Vem connosco, Dany.
— Nao. Não me agrada que Ted fique la fora, Roland. A água cai as toneladas e pode acontecer-lhe qualquer coisa.
— Vamos, não sejas estúpido! Quando o depositei no chão já tinha os olhos abertos.
Kitty interveio.
— Com certeza ire prevenir o velho.
— Queres fechar a boca de uma vez?! — exasperou-se o primogénito. — Se o fizer, pior para ele. Ninguém se colocará a seu lado. Mete isto na cabeça. Vamos, Dany.
Precedeu-os e, já dentro da sala, ocupou uma cadeira. Dany foi o último a entrar e ficou próximo da porta, com as pernas ligeiramente abertas, as mãos junto dos coldres, observando os Boyce com ar de desagrado. Notava-se que estava do lado deles, mas que não apreciava o que faziam.
— A minha ideia — expos Roland, enrugando a testa num esforço de concentrarão — é que nos apresentemos no rancho esta mesma noite, juntamente com os habitantes da terra que nos possam acompanhar, e que o cerquemos. Eu irei então informar o velho do que pretendemos. Depois...
— Não percamos a cabeça — Waco deixou a ponta do sofá que ocupava. — Não é conveniente impor condições ao velho. Bastará que saiba que nos opomos aos seus desejos de...
— Uma figa! — berrou Roland. — Tu não conheces o nosso pai, cunhado. É dos que, se têm de morrer enforcados, aproveitam o último segundo de vida para partir os dentes ao verdugo e arrancar-lhe um olho. Temos não só isso. Enquanto ela estiver viva nao...
Por fim revelara o seu pensamento, a ideia que o obcecava. Roland considerava os índios uns miseráveis que deviam ser por completo exterminados. Nesse pormenor estava de acordo com Overton, o dono do «saloon», se bem que por diferentes motivos.
— Se fizermos isso, Roland — declarou Waco com ardor, e a sua cara esverdeada tornou-se mais escura — converter-nos-emos nuns criminosos vulgares. E não haverá tribunal que nos absolva. O velho não pararia enquanto não metesse todos na cadeia.
— És parvo, Waco — replicou o mais velho, dando claramente a entender que quem mandava era ele. — Não daremos ocasião a nosso pai para que faça nada disso. Não tornaremos a cometer a estupidez de abandoná-lo, como fizemos ate aqui. Desta vez, ter-nos-á a seu lado... permanentemente.
Observou uma a uma as faces dos presentes.
— De acordo? — perguntou.
Ninguém levantou objeções. Nem mesmo Dany, embora se lhe acentuasse o ar de desagrado, abriu a boca para protestar.
Ao calar-se, cresceu o fragor dos elementos desordenados da natureza. A tormenta precipitava-se sobre a terra num formidável intento de pulverize-la, de apagar da sua superfície todos os vestígios de vida.
Uma faísca destruiu o depósito de água situado a entrada sul da povoação. Outra caiu num celeiro, do qual se ergueram chamas rapidamente. Mas a chuva era tao espessa e cala com tamanha violência que imediatamente dominou o fogo.
A tormenta também começava a desenvolver-se entre os homens.

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