quinta-feira, 7 de julho de 2016

BUF118. CAP IV

Um dos homens que cavalgavam no escuro soltou uma praga e tirou o chapéu, que sacudiu com força, salpicando tudo quanto o rodeava.
— Quando este maldito deserto decide molhar-se... — comentou outro.
— O pior é que continuará seco como sempre. Acontece-lhe o mesmo que a um primo meu, que se embriaga até o uísque lhe sair pelas orelhas e, na manhã seguinte, está outra vez sequioso e volta a beber.
Soaram varias gargalhadas. Os cascos dos cavalos enterravam-se na lama. Eram vinte homens que seguiam o caminho de Amarillo, na direção de Sulphur Valley, os do grupo de Boyce, com Ted Boyce à cabeça.
Ted acelerara o regresso ao lar, por um acto de estratégia com o fim de salvar os dinheiros dos seus peões: aproveitara uma rixa fenomenal num «saloon» de Wichita, onde se encontravam já de regresso da venda do gado.
E ali iam atrás dele, macambúzios, mas com economias. Não o censuravam, pois livrara-os de Um grande apuro com o xerife, que era parente do famoso Bat Masterson, mas pensavam que a vida era muito aborrecida e não lhes desagradaria um pouco mais de diversões.
— Ted — gritou o capataz Dany Roberts, esforçando-se por fazer-se ouvir no meio dos trovões — insistes em sair do rancho para ires para essa terra de ursos com focas que é o Alasca?
— Insisto, Dany.
— E quem se encarregará do rancho quando o teu pai se decidir a deixar de importunar este mundo?
Ted soltou uma gargalhada fresca, pois sentia-se alegre e com tendência para achar o mundo um lugar onde se vivia muito bem... desde que se fosse esperto e não se amargurasse a existência com preocupações tontas.
Uma dessas preocupações parecia-lhe ser sonhar com a fortuna do pai. Bem lhe importava que o velho tivesse muito dinheiro! Se se aguentara tanto tempo na sua companhia fora por ter pena de o ver naquele estado e a debater-se com todos os monstros vingativos que engendrara na sua turbulenta vida passada.
Para Ted, o melhor legado de Walter Boyce era to-lo trazido para aquela encruzilhada do Oeste. Sentia-se com forças e com coragem para meter ombros a qualquer empreendimento, e parecia-lhe magnifico que houvesse tantas terras para conquistar, tantas aventuras para viver.
Mas nem sequer o Oeste, com todas as suas oportunidades, o atraía. Pensava noutras terras, noutros lugares onde a aventura fosse ainda maior; embriagava-se com o mistério, o desconhecido.
— Se o velho alguma vez morrer — observou ao capataz coisa que duvido, os meus irmaos se encarregarao de devorar a hcranga. Eu não lhes disputarei nem um bocadinho.
— E se o velho to deixasse tudo a ti? Já pensaste nisso?
Ted sentiu-se contrariado. Não sabia quais eram as intenções de Dany ao dizer-lhe aquelas coisas. Dany era da sua idade e, de certo modo, compartilhava a sua alegre concepção da vida. Por que se preocupava agora com aquelas coisas?
— Não o fará, descansa. Ou não o conhego, ou tanto se lhe dá que herdemos ou não. Se pudesse, levaria consigo tudo o que tem, para obrigar-nos a começarmos tudo de novo. Eu, pelo menos, é isso que tenciono fazer.
Um grande relâmpago iluminou por instantes o campo. Os cavaleiros soltaram gritos de alegria: a sua direita serpenteava o Sulphur; à sua frente, distinguiam a plataforma rochosa em que assentava a povoação. Esporearam os cavalos naquele último trecho de caminho e, quando chegaram as primeiras cabanas dos índios, tiraram as mantas com que se tinham protegido da chuva e sacudiram-nas com força.
Entraram pela rua principal e detiveram-se defronte do «saloon» «Estrela Solitária». Percebia-se, pelo tilintar de copos e pratos, que estava concorrido.
— Patrão — disse um dos vaqueiros — é cedo para nos deitarmos e tarde para fazer barulho no rancho. Deixa-nos molhar a garganta aqui?
— O quê, ainda queres molhar-te mais, Mart?
Ouviu-se um coro de gargalhadas e Ted sorriu aos seus homens. Tinham-se portado bem naquela viagem e não se haviam revoltado quando lhes falara na necessidade de voltar, arrancando-os aos braços das belas raparigas de Wichita.
— De acordo, rapazes! Procuraremos equilibrar o líquido de fora com o reles uísque que o Overton vende.
Eagle Overton era o dono da baiuca. Um tipo alto, desajeitado, com a cabeça comprida e estreita, a cara larga e comprida, meio calvo, olhos de um negro amarelado e pele macilenta, salpicada de bexigas.
Constava que reunira a maior parte da fortuna a vender álcool aos índios, apesar de no seu sangue correr sangue «navajo». A sua obsessão, que confessava quando emborcava meia dúzia de copos, era o suposto tesouro que os miseráveis sobreviventes «zunhis» tinham escondido.
Quando Ted e os homens do rancho «Sulphur» entraram, Overton conversava num canto onde, em redor de uma mesa, se encontravam sentados os irmãos Boyces, que ali tinham parado após a infrutuosa visita ao velho.
Ted foi o primeiro a vê-los e surpreendeu-se. Recomendou a Dany e aos outros que se acomodassem e pedissem o que quisessem, e dirigiu-se para o lugar onde, naquele momento, Roland batia com os fortes punhos na mesa.
— Eh, irmãos! — chamou, ainda um pouco afastado.
Voltaram-se, sobressaltados, e Roland levantou-se e foi ao seu encontro.
— Ted! — exclamou, satisfeito, abraçando-o com força — Que alegria, rapaz! Palavra, dás-me uma grande alegria!
— O quê? — perguntou Ted, a rir. Seria a primeira vez!
Afastou-o, para ir falar aos outros. Abraçou Sil e apertou, com certa repugnância, a mão gorducha do cunhado Waco. Acenou a Overton, que o observava com frieza, embora um sorriso servil lhe rasgasse o rosto. Decididamente, Ted não tragava aquele individuo, o que demonstrava que a sua natureza continuava a ser normal.
— Por que não me contam o que fazem aqui? Terão, por acaso, tido medo da tempestade e deixado as mulheres em casa, a aguentarem?
De súbito ficou sério e fitou fixamente Roland:
— Ouve Iá, não devias estar com o gado, tentando evitar que não houvesse nenhuma fuga? Mas que se passa, afinal?
Roland sentou-se e indicou-lhe com um gesto que fizesse o mesmo.
— Traz outra garrafa, Overton — ordenou ao mestiço, que se inclinou ligeiramente, sem deixar de sorrir, mas com um brilho mau nos olhos. — Chegaste no momento oportuno, Ted. Com a breca, es o único que pode resolver o assunto!
— Que assunto, Roland? Alguma coisa com o pai?
— Sim. O nosso pai... Escuta, rapaz, o velho tem os miolos virados do avesso. Alguém se aproveitou da tua ausência para armar-lhe uma cilada. Hub apareceu-me no rancho às últimas horas da tarde...
— Hub?
— Sim. Não sei como se arranjou, mas a verdade é que me apareceu em casa e contou o que ouvira. O velho pediu em casamento a piolhosa da India que trata dele!
Ted empalideceu e os irmãos julgaram que isso acontecia por compartilhar dos seus sentimentos. Roland bateu-lhe afetuosamente na mão que abandonara em cima da mesa.
— Fazes ideia do que sentimos? Viemos de la há bocado...
Apontou com o polegar para o norte, e inclinou-se para o irmão, que se refazia lentamente da surpresa.
— O velho não quis ouvir-nos, Ted, e agora compreendemos que foi um erro visitá-lo. Ficou furioso e quer casar-se amanha mesmo. E preciso evita-lo!
Waco falou então, com uma tremura de cólera na voz:
— Foste tu que deitaste tudo a perder! — acusou. — Se me tivesses deixado a mim...
— Ora! — desdenhou o mais velho. — Neste caso a diplomacia não serve para nada. Aquela maldita bruxa sorveu-lhe o juízo e, agora, não há argumento capaz de convence-lo.
— Mas tens a certeza? Bem sabem que o Hub...
— Não te disse que visitámos o pai? Ele confirmou, Ted, disse que tencionava unir-se a essa... pele-vermelha. Se não fosse por coisas!... não há outra solução senão tira-la de lá e obrigá-la a partir para nunca mais voltar.
Overton veio depositar a garrafa diante de Ted, que se apressou a servir-se. O dono do «saloon» observou então:
— Devíamos expulsar todos os índios do povoado, expulsá-los e queimar-lhes as cabanas, que são ninhos de corrupção e de miséria.
Ted fixou o rosto velhaco do mestiço e perguntou-lhe:
— E tu encarregar-te-ias gostosamente dessa tarefa, hem?
Levantou-se e encarou os irmãos:
— Está bem, irei agora mesmo ter com o velho e informar-me do que se passa.
— Pois sim, irmão. Nós esperar-to-emos aqui.
— Por que não deixam o caso para amanhã?
— Conheces o pai, com certeza que decidiu proceder quanto antes. Não podemos permitir que essa pele-vermelha se saia airosamente da esperteza.
Naquele momento Ted apercebeu-se de qualquer coisa, como que um cheiro especial a cobiça. Compreendeu o que se passava com os irmãos e, de súbito, compreendeu também que não tinha nada de comum com eles, que representar os seus interesses equivala a atraiçoar-se a si mesmo.
— Vou informar-me, Roland, mas não tomem esse ato como significativo de estar de acordo com vocês. Se o velho tiver as suas razeies e elas me parecerem aceitáveis, não serei eu quem se oporá ao casamento.
Quase sentiu erguer-se entre ele e os irmaos um muro de hostilidade. Roland levantou-se e fitou-o, irritado.
— Deves estar do nosso lado, Ted, tenho a certeza de que estarás. Não há outros motivos para tal casamento além das intrigas dessa maldita bruxa. O pai está demasiado velho, embora presuma que não, e ela aproveitou-se dessa circunstância.
Overton desatou a rir, com um riso que fazia lembrar o gemer de uma porta com os gonzos ferrugentos.
— As indias «navajo» conhecem segredos amorosos que nenhuma branca se atreveria a empregar — afirmou. — Sao capazes de obrigar um morto a engendrar-lhes filhos!
— Com certeza foi esse o teu caso — replicou Ted.
— O quê?
Overton encolheu-se e as mãos deslizaram-lhe para as coronhas, mas estava demasiado próximo de Ted Boyce para o seu gesto surtir efeito. O jovem levantou a perna direita e descarregou Um formidável pontapé no baixo--ventre do taberneiro.
Sob a «caricia», o mestiço deu um salto para trás e soltou Um uivo de dor. Ao cair encaixou uma direita que lhe -deslocou a larga queixada e o atirou para longe, derrubando varias cadeiras. Ficou caído, dobrado e a sacudir a cabeça, na atitude pouco digna de Um crente maometano com convulsões...
— Adeus, irmãos — despediu-se Ted. — Esperem-me aqui, se quiserem, embora o melhor que fizessem fosse irem dormir para casa.
— Esperar-te-emos — afirmou Roland.
Ted encaminhou-se para onde estavam os seus homens, alguns dos quais se tinham levantado e pareciam querer aproximar-se do local da briga.
— Que foi aquilo, Ted? — perguntou Dany ao seu jovem patrão.
— Nada, uma troca de opini6es. Fiquem aqui, vou ao rancho mas não me demoro. BeBam o que quiserem, pois será por minha conta.
Deixou os vaqueiros com ar desconfiado e saiu sem preocupar-se mais com a sorte de Overton nem com a dos irmãos. Não gostara do que ouvira.
E não lhe agradara por muitos motivos, alguns dos quais só ele conhecia. Talvez fosse tudo uma confusão originada na mente alucinada de Hub, que devia ter interpretado erradamente as frases que ouvira. O facto de os irmãos terem ido visitar o pai com a intenção de lhe imporem a sua opinião, bastaria para que o terrível Boyce os mandasse para o diabo e confirmasse todas as acusações.
Mas não se sentia tranquilo. Ao montar o seu alazão, Ted verificou que o temporal amainara, que chovia pouco e os trovoes soavam agora do lado do deserto. Talvez o assunto que o atormentava se resolvesse do mesmo modo...
Mas, notando o aspeto sombrio do céu, duvidou de que a sua esperança tivesse fundamento.

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