sexta-feira, 29 de setembro de 2017

PAS792. Resistir

Doris cerrava os dentes e dobrava-se para trás quanto lhe era possível. O punhal, se pudesse tê-lo ao seu alcance, com quanta satisfação ela própria se teria libertado da vida como a índia lhe aconselhara.
— Socorr... — tentou ela gritar! Mas a mão do homem tapou-lhe imediatamente a boca.
De alguma coisa lhe serviu o seu grito sufocado, porque Godfrey se viu obrigado a desistir do beijo que quase esteve a ponto de imprimir no pescoço da rapariga.
Os seus olhos, ao poisá-los agora nos olhos da sua vítima, estavam impregnados de um brilho mais intenso.
— Isso é que nunca, boneca; se começas a ganir obrigas-me a abrir-te a cabeça. Porque é que não hás-de ser condescendente?... Ah! maldita...
A última exclamação do homem provinha da dor produzida pela mordedura que Doris lhe dera na mão com que ele pretendia tapar-lhe a boca. E como a violência da dor o obrigasse a fazer um movimento de recuo, aliviando assim a pressão do seu braço, a jovem atirou-se para trás cora todas as suas forças, conseguindo afastar-se do energúmeno e deixando-se cair na cama de onde o homem a tinha levantado.
Mas foi sol de pouca dura porque Godfrey voltou a cair-lhe em cima com violência redobrada. Ela vociferou, arranhou e cuspiu, mas o outro, sem que desse grande importância aos ferimentos recebidos, pretendia a todo o custo aproximar o seu rosto do da rapariga.
Doris ficara com um braço estendido para trás em virtude da queda, imobilizado sob a pressão da mão do seu perseguidor. Os dedos da jovem, crispados pelo esforço e pela ânsia de libertação, sentiram a certa altura o contacto frio e metálico de um objeto que lhe iluminou o cérebro. Era o revólver. Tinha-o ali ao alcance da sua mão e conseguiu apoderar-se dele.
Quando parecia já ser impossível evitar o odioso beijo que o outro forcejava por conseguir, o seu dedo apertou o gatilho, produzindo-se um enorme estampido. Se bem que a bala fosse cravar-se na parede, a jovem conseguiu, ainda que mais não fosse, que o homem se afastasse dela, grandemente assustado.
— Que acabas de fazer, minha viborazinha? Imaginas o sarilho que vais arranjar com isto?
E como Doris tivesse começado a levantar-se, estendeu-a de novo com um formidável bofetão. Recuou dois passos, protegendo-se com as mãos, como se quisesse defender-se das balas, prontas a disparar pelo revólver que ela lhe continuava assestando.
— Não, rapariga... Eu vou-me já embora... mas, por Deus, não dispares — dizia Godfrey ao mesmo tempo que recuava em direção à porta.
A jovem hesitou um segundo. Matar um seu semelhante... Mas, seria na realidade seu semelhante aquele réptil com forma humana que tentou abusar da sua fragilidade e que retrocedia agora suplicante? Que Deus lhe perdoasse!
E fechando os olhos, apertou segunda vez o gatilho. Godfrey caiu desamparado para trás batendo com a cabeça na porta que produziu um som cavo. Reergueu-se rapidamente como se fosse um gato, levantou o fecho da porta franqueando a saída, perseguido por um novo tiro disparado por Doris, quando se certificou de que o não tinha atingido.
Seguiu-se um minuto de silêncio, após o qual começaram a sentir-se no exterior ruídos de vozes e de correrias numa algazarra medonha. A jovem teve o ânimo suficiente para ir espreitar o que se passava, vendo então um numeroso grupo de homens que saiam da casa principal, perguntando uns aos outros o que havia acontecido. Um deles destacou-se do conjunto e dirigiu-se para ela. Era Pierce.
— Que acaba de se passar aqui, pequena? — perguntou ele, iluminando-lhe o rosto com a lanterna de que era portador e a cuja luz pôde verificar a existência do revólver na posse da rapariga. — Que é isso? Onde foste tu arranjar esse traste?
Doris podia ter-se servido da arma. Se ela fosse um homem, talvez não tivesse hesitado em o fazer; por seu mal, não passava de uma pobre mulher e foi como tal que entendeu dever proceder: deixou cair a arma aos pés e encostou-se á chorar à ombreira da porta.
Cari obrigou-a a voltar-se para ele, pegando-lhe no queixo com a mão.
— Fala, pequena. Contra quem disparaste?
Soou ao longe uma detonação, o que obrigou Pierce a deixar a mulher e a correr para fora, gritando:
— Foi para os lados da entrada. Que diabo...
Todos os outros homens o seguiram, adiantando-se alguns deles a cavalo. Uma sombra aproximou-se de Doris. –
- Eu não te preveni? Foste visitada por alguém, não é verdade?
A jovem, que acabava de reconhecer a índia, correu á abraçar-se a ela.
— Tinhas razão. São todos uns canalhas!... Esse autêntico louco que é Godfrey tentou...
«Bela Estrela» deu curso ao caudal das suas ternuras para acalmar a inditosa rapariga. E tinha quase conseguido o seu objetivo, quando os homens começaram a regressar envoltos pelos clarões das lanternas e dos archotes que transportavam. Constituíam uma espécie de cortejo que veio deter-se junto das duas mulheres.
A seus pés veio estatelar-se um homem que havia sido violentamente empurrado. Pierce, que fora o autor do empurrão, tomou a palavra, olhando para Doris:
— Diz-me se é verdade o que eu suponho: este miserável coiote infiltrou-se no teu quarto e tu sentiste-te na necessidade de atirar sobre ele, é isto exato?
A jovem olhou para o homem caído que a fitava cheia de angústia agitando a cabeça, como que a implorar-lhe que negasse. Sentiu pena, tal era o terror que, aqueles olhos exprimiam. Um terror pânico de um ser que se aferra desesperadamente à vida... Que obrigação tinha ela de defender aquele canalha que...
— Sim senhor. Foi tal qual assim. Doris contou-me como as coisas se passaram — respondeu, em vez dela, a' outra mulher.
Pierce mostrou os dentes num sorriso de ferocidade.
— Nunca te supus tão estúpido, Godfrey... Tinhas obrigação de saber que depois de uma tal proeza nunca te podia perdoar. Era por isso que querias safar-te de junto de nós. Foi uma pena que nem Doris nem Sam te tivessem atingido... Porque esperas para apertar o cinturão, grande cachorro?
Godfrey tinha acabado de desafivelar o cinto, ficando completamente desarmado.
— Não, Carl... Para que necessito eu dele? Eu não desejo defrontar-me contigo... És muito rápido. Tens de me perdoar. Foste, aliás, o primeiro a dizer que se James a não quisesse...
O chefe aproximou-se e aplicou-lhe uma tremenda patada nos costados.
— Defende-te, cobarde! Queres obrigar-me a matar-te como a um cão?
Godfrey, arrastando-se aos pés de Pierce, implorava lamentoso:
— Não me mates... Prometo-te...
-- Está bem; vou desfazer-te com as minhas mãos! — gritou Pierce, desafivelando por sua vez o cinturão de que pendiam os seus revólveres.
Godfrey olhava-o surpreendido. Os seus olhos já não exprimiam o mesmo terror; talvez pensasse que uma luta corpo a corpo... A mão de Pierce agarrou uma porção de cabelos do bruto e, endireitando-lhe um pouco a cabeça, ' descarregou-lhe um tão potente murro no nariz que o corpo do outro ficou estendido no terreno, enquanto na sua mão ficava o punhado de cabelo em que lhe agarrara momentos antes.
A botifarra de Carl elevava-se agora, no propósito de esmagar a cabeça de Godfrey, o que teria certamente conseguido se aquele se não desviasse como o fez, agarrando subitamente no pé de Pierce e dando-lhe uma torcedela que o fez desequilibrar. Pierce caiu no solo, indo juntar-se aquele que pretendia esmagar.
Godfrey não perdeu tempo. Caiu sobre ele e agrediu-o violentamente, a murro e a pontapé, tanto na cara como no resto do corpo. Ele, que tanto medo tinha do seu chefe quando armado, atrevia-se agora a lutar com ele, confiando sem dúvida em que podia vencê-lo, uma vez que o seu adversário era muito mais velho do que ele.,
Um dos que assistiam à luta deu alguns passos, no intuito de socorrer o velho, do que foi impedido por um terceiro:
— Deixa-os, Ralph; o chefe não gostaria que qualquer de nós interviesse.
O silêncio que os envolvia, apenas interrompido pelo respirar arquejante dos contendores em luta, foi quebrado pelo grasnar de uma ave de rapina soando a grande distância.
— James... é James que está de volta — disse Pierce, apesar da difícil posição em que se encontrava, sob a pressão de Godfrey.

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