sexta-feira, 3 de maio de 2019

COL005.09 O beijo da Morte

—Não me ama—suspirou Doris, encostando a cabeça ao tronco duma árvore, perto da qual estava sentada.
— Fez aquilo para te agradar; trouxe-me para aqui, para te fazer um favor; mas nada mais. Nunca me dirige uma palavra afetuosa; evita estar comigo, sempre que pode...
Jayne, sorrindo, murmurou:
—E apesar disso, insisto em afirmar que te adora. Tive muitas ocasiões de o observar.
—A tua boa vontade, engana-te.
—Não, Doris. Acontece é que Robert é muito diferente dos homens que aceitam o que creem não lhes pertencer. Há muitos que, se gostam duma mulher, saltam por cima de todos os obstáculos, sem que lhes importe grande coisa, verem-se ou não correspondidos. Uns, porque satisfazendo a sua ambição, o resto não lhes importa; outros, porque a egolatria os faz crer que acabarão por dominar a mulher. Ele é diferente. Conhece-te quando estando apaixonada por Teddy...
—Para o caso tanto faz. A única coisa evidente é que por nada do mundo aceitaria o teu sacrifício, como paga ao que lhe deves.
—O meu sacrifício! Como se engana se pensa assim.
— Ainda bem.
—Foi na tarde do drama do saloon, que me pareceu um ser excecional. Disparei sobre Teddy, porque me horrorizou a ideia de que ele morresse. Depois, foi-me conquistando pouco a pouco, sem o querer. A sua própria frieza excita os meus sentimentos.


—Não será o seu amor próprio que o leva a isso?
—Não!
—Olha para ti. Vives acostumada a que todos te desejem. Talvez o verificares que Robert permanece insensível te tenha feito imaginar um amor que não sentes.
—Oh, não, não! Amo-o, Jayne, amo-o!
Tinham decorrido dois meses desde que, cumpridas todas as formalidades, Doris e Robert foram declarados isentos de culpa e livres.
A sua chegada ao rancho constituiu para Jayne motivo de intensa satisfação. Recebeu de braços abertos, a jovem que tanto a ofendera, sem lhe permitir desculpas, enchendo-a de beijos e fundido as duas as suas lágrimas.
Quando Jayne soube o que se tinha passado, estremeceu pensando que por sua culpa, já que tinha sido ela a impulsionar Durking, este podia ter sido morto. Voltou a ter uma recaída e Doris dedicou-se a cuidar não só de seu aspeto físico, como moral também.
Traçava planos venturosos, descrevia-lhe êxitos futuros para ambas, chegava a persuadi-la que recobraria a saúde... E conseguiu mais ou menos o seu propósito.
Jayne animava-se, ria, compartilhava... ou simulava compartilhar aquelas ilusões. Abandonou definitivamente o leito.
Doris obrigava-a a passear, ora a pé, ora a cavalo, sem galopar. Mandaram fazer trajos de cowboy, armaram--se de revólveres com os quais atiravam ao alvo... «Não sabes quanto é útil saber manejar isto. Eu pouco sabia e apesar disso, consegui salvar a vida de Durking», disse um dia Doris, revivendo o minuto mais transcendente da sua existência.
Jayne observou que ao falar assim se lhe endureciam as feições, como se o ódio que tinham contra Teddy, lhe assomasse ao rosto.
Durking conversava com elas bastantes vezes, tendo para a sua paciente carinhos fraternais. Em compensação, no que diz respeito a Doris, mantinha-se esquivo e até rude. Mas Jayne não deixou um momento só de ver claro.
Ela inspirava compaixão e dava origem a mentiras piedosas, enquanto que Doris cheia de vida e juventude, era a dona do coração daquele homem que lutava em vão para afastá-la do seu pensamento. E impôs-se a si mesma o enorme sacrifício de os fazer felizes.
Não perdia a oportunidade de pôr Durking em realce, enaltecendo a sua generosidade e nobreza. Em certa ocasião, Doris chegou a sentir-se receosa e disse-lhe sem rodeios: «Falas de Robert com um entusiasmo contagioso. Não estarás apaixonada por ele?» Jayne teve uma gargalhada que procurou tornar natural: «Apaixonada, eu? Tem graça! Não, pequena, tranquiliza-te. Estou mais que curada de amores. Inspira-me apenas carinho fraternal. Só isso.» Estava convencida que Durking só via nela uma criatura infeliz, merecedora de afeto e de que seria absurdo abrigar outro género de esperanças; mas qualquer mulher vulgar, no seu caso, teria sentido ciúmes e desespero.
Jayne, empenhou-se em que fossem ditosos. Não esquecia, nem queria esquecer a ternura com que ambos a tinham tratado, embora mais tarde, Doris a tivesse ofendido com insultos, que tinha perdoado de todo o coração.
A primeira vez que a jovem lhe confessou que amava Durking, experimentou uma alegria dolorosa que lhe arrancou sorrisos e lágrimas, adjudicando para si própria uma elevada percentagem naquela reação, conseguida à base de realçar a figura do homem que, secretamente, tanto amava. Pensar que este, sem o saber, lhe ficaria a dever em parte a felicidade compensava a sua tortura. Não se conformou em influenciar o espírito de Doris e fez o mesmo com Durking, em relação à jovem. Mas tropeçava com a resistência obstinada dele em admirar o que se lhe oferecia, de maneira tão duvidosa.
Naquela tarde tinham estado as duas a atirar ao alvo, pois Doris cada vez gostava mais daquele exercício, como se ficasse satisfeita em evocar o dia em que derrubara Teddy. Cansadas, deixaram-se cair, sob a sombra das árvores. E como de costume o problema amoroso que as absorvia, foi o principal assunto da conversa. Jayne insistia nos seus conselhos.
—Tu é que tens de fazer tudo. Robert está louco por ti, mas não to dirá, enquanto não tiver a menor dúvida, que lhe correspondes.
—Mas... que fazer, então?
—Deixa-te guiar pelo coração...
Interrompeu-se. No alto duma pequena colina, acabava de ver Durking. Descobrindo-o ao mesmo tempo, Doris disse, alvoroçada:
—Aí vem ele!
—E vem para aqui. Creio que não reparou em nós. Vou-me embora. Não convém desaproveitar nenhum momento.
Afastou-se inclinada, ocultando-se entre os arbustos. Durking vinha ao passo lento do seu cavalo, pensativo e sombrio. Só reparou em Doris, quando os separava uma dezena de metros; disfarçou a impressão que lhe produziu o tê-la encontrado, e disse, travando a montada sem se apear:
—Então, por aqui, aborrecida...?
—Oh, não; pelo contrário. Adoro esta solidão.
—E eu quebrei esse encantamento. Deixo-a já...
Ia seguir o seu caminho e ela impediu-o:
—Por favor, não se vá embora.
—Mas...
—Embora goste de me abstrair, a sua companhia é-me muito grata.
— Agradeço o cumprimento.
—Não é um cumprimento. Desça do selim... a menos que o aborreça estar perto de mim.
Ele obedeceu e fitaram-se em silêncio. Doris repetiu mentalmente o último conselho de Jayne: «Tu é que tens de fazer tudo». Começou a sorrir--lhe.
—Parece que você está contente.
—Não completamente. E a culpa é sua.
—Eu?
—Sim. Não faça essa cara de assombro: você foge de mim, sempre que pode. Às vezes, penso que sou um estorvo para si e que até se sente arrependido da hospitalidade que me ofereceu.
—Lembra-se de cada coisa!
—Engano-me?
—Muitíssimo!
—Então... por que se afasta?
—Isso são suposições suas.
— Não o são — tinha-se levantado e estava próximo dele, envolvendo-o na beleza dos seus olhos feiticeiros, deixando-o perceber a sua respiração. — Você tem qualquer coisa contra mim e não se atreve a dizê-lo. Fale duma vez para sempre! Essa cobardia é imprópria de um homem tão valente.
—A que propósito vem isso agora?
—Porque andava há muito com vontade de lho dizer e temos tido poucas oportunidades de falar a sós. Se é que me guarda rancor por ter sido injusta quando nos conhecemos, não o oculte.
—E você a primeira pessoa que me chama rancoroso.
—Perdoe-me. Ê que não consigo explicar a sua atitude. Que será preciso fazer para que não fuja de mim, se mostre amável e se inteire de uma vez para sempre, que tenho por si mais do que gratidão?
O rubor coloria as suas faces, mas manteve-se desafiante, com o olhar fixo nele, os lábios trémulos. Embora lhe tremessem as pernas e tivesse a respiração ofegante, estava decidida a travar batalha, que julgou ser inadiável. Julgava ouvir a voz de Jayne: «Deixa-te guiar pelo teu coração.» E o coração exigia-lhe que se lançasse ao pescoço de Durking, sem mais explicações. Mas conteve o impulso.
— Oiça, Doris— respondeu ele, dissimulando a emoção que sentia—, não tem nada que me agradecer, absolutamente nada. Meti-me muitas vezes em embaraços, sem que ninguém me chamasse, sem que me importasse o mínimo o assunto que se debatia. Fi-lo porque devo ter pólvora no sangue, porque gosto do perigo, da aventura. E se fiz isso várias vezes, que importância tem tê-lo feito no seu caso? Além de que, no fim de contas, também lhe sou devedor, porquanto se você não tivesse sido tão corajosa, o seu ex-noivo ter-me-ia feito num passador. Estamos, pois, quites.
—E isso tudo... o que significa?
—Você sabe-o muito bem. Jayne, no seu interesse por mim, deve-lhe ter dito, porque assim o imagina, que eu a amo e você, generosamente quer saldar essa pretensa dívida fazendo-me crer que me quer.
—Não é verdade!
—O que é que não é verdade?
Ela recuou uns passos sem deixar, de o fitar.
—Antes de responder — disse — explique-me, se isso de você gostar de mim, é só imaginação de Jayne.
—Pois...
—Não se detenha. Explique depressa! Ê só imaginação de Jayne? Vamos! Porquê essas vacilações? Mostre-me, cara a cara, a sua valentia! Mas tenha presente que o nosso futuro depende das suas palavras...
Havia solenidade... e medo, na sua voz. Durking ia perdendo o seu autodomínio. Via-a, mais bela do que nunca, tentadora, expondo-lhe o problema com uma coragem, que ele, provavelmente nunca teria.
Parecia atónito, sem acertar com a frase adequada. Doris continuou:
—Não, você não é tão corajoso como dizem. Está a tremer por dentro.
—Por dentro... e por fora.
—Vou demonstrar-lhe que lhe ganho, em arrojo. Ainda que me dê a resposta que necessito, mesmo expondo-me a que me declare, que nada represento na sua vida, confesso-lhe que não me guia o menor desejo de me mostrar generosa para consigo, nem tenho em conta a gratidão. Num assunto tão transcendente como este, seria insensato deixar-me influenciar pelo agradecimento. Chega-lhe para se convencer de que é outro, o sentimento que me inspira? Atreve-se a declarar-me que Jayne se engana, ao crê-lo apaixonado por mim?
—Você sabe de sobra, que não se engana.
—Então... ama-me? Bom, isto é o cúmulo! Que uma mulher tenha de fazer tal pergunta a um homem!
— Adoro-te!
—Até que enfim! Que trabalho tiveste para dizer isso!
—É que ainda me custa acreditar que tu...
—Vamos ver se isso te convence, meu tonto.
E agora sim, deixou-se guiar pelo coração. Abraçou-o, e as suas bocas colaram-se perdendo a noção do tempo...
A embriagadora carícia foi cortada por nova tragédia.
—Cuidado! — gritou a curta distância a voz desesperada de Jayne.
E em continuação, dois tiros quase simultâneos. Em seguida, com breves intervalos, vários mais. Durking empurrou Doris para debaixo das árvores e saltou como um felino para o lado oposto, para proteger a jovem de qualquer nova agressão.
Mas não se ouviu nenhum tiro mais. Surpreendido correu para o local donde vinha o barulho das detonações. Levava o revólver na mão. Soltou uma exclamação de doloroso assombro.
A meio do caminho jazia Teddy numa poça do próprio sangue. Um pouco além, Jayne, tombada de bruços, com uma mão no peito onde aparecia uma larga mancha vermelha e outra crispada, continuava a premir o gatilho da arma, já sem munições.
Durking, saltando sobre o cadáver de Egan, inclinou-se sobre a mulher agonizante.
—Jayne!
— Veja... Veja se está morto. Não quero ter a mesma falha que teve Doris.
Esta avançava, pressurosa; deteve-se um segundo ante o corpo de Teddy e dirigiu-se para o grupo, correndo. Os seus olhos estavam desmesuradamente abertos. Mas pôde sussurrar o nome de sua amiga, a quem se abraçou.
—Olá... pequena... Tu, primeiro... e agora eu... cobrámos a nossa dívida. Seguiu-os até aqui, para saciar o seu ódio... e encontrou a morte. Estava escrito... que cairia às mãos das suas vítimas.
—Por favor, cale-se—disse Durking, preparando-se para lhe fazer um curativo de urgência. —Surpreendi-o... quando ia manchar o vosso beijo... com chumbo. Gritei... e ele voltou-se... mas já lhe tinha metido uma bala no peito. Creio que no coração... confirme-o, Robert... diga-me que rompi... esse coração de hiena...
—Eu vou ver —exclamou Doris, levantando-se com uma atitude feroz.
E dirigiu-se para o ponto onde jazia Teddy, enquanto Durking continha a hemorragia com dificuldade.
—Não se esforce... Robert... Não vale a pena...
E era assim, na verdade. Durking sabia-o, mas esforçou-se por dissimular.
—Deixe-se de pessimismos.
—Obrigada... pelo seu desejo de me animar. Sei que isto está no fim... Não o lamente... Eu... estou contente... sofri tanto! Já merecia descansar I
Doris regressou.
— Sim, acertaste-lhe em pleno coração. –
—Tinhas razão... Ê conveniente... manejar bem o revólver... Para uma principiante... não andei nada mal... — as lágrimas deslizavam pelo rosto de Doris.
— Não chores... vê se compreendes... agora que começo a ser feliz...
Acabado o penso provisório, Durking levantou-a nos seus braços.
—Não queres que te ajude? —perguntou Doris.
Foi Jayne que respondeu:
— Deixa ser ele a levar-me! Peso... tão pouco!
E nesta súplica pôs toda a sua alma. Pela primeira vez, vendo as pupilas da infeliz, fixas nas suas, vislumbrou Durking o verdadeiro sentimento que inspirava a esta. Também Doris o compreendeu. Não tinha sido infundada a suspeita que tivera um dia! E os dois admiraram a incomensurável grandeza daquela criatura.
—Beija-a—murmurou Doris, quase num soluço.
Durking colou os seus lábios aos de Jayne.
—Que... Deus... to pague. Foram as suas últimas palavras.
Um ténue sorriso de felicidade embelezou-lhe o rosto, sobre o qual a Morte depôs outro beijo.
FIM

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