quarta-feira, 5 de julho de 2017

PAS780. O Desfiladeiro das Caveiras

Dois dias mais tarde, ao entardecer, estava tudo preparado.
Luís Kinsey não pôde conter um sorriso quando viu aparecer Pedro de Mejias. Ia vestido como um vaqueiro da União, com os «Colts» pendentes do cinturão-cartucheira, e um chapéu de abas estreitas, em feltro de cor negra. Levava também uma camisa preta, à semelhança dos outros homens, que trajavam igualmente como os vaqueiros americanos.
Parecia-lhe quase impossível que aquele homem, que ele vira nos salões do clube «Novo México», com o seu trajo típico adornado de pedrarias, respeitado por todos, fosse o mesmo que se dispunha agora a iniciar uma operação de contrabando.
O pátio estava agitado. Os trabalhadores iam e vinham. A um canto, via-se um grupo de mulheres. Eram as esposas, as mães e as noivas dos homens que iam partir dentro de uns minutos.
Muitas daquelas mulheres faziam esforços para conter as lágrimas, mas quase nenhuma o conseguia. Todas queriam evitar que o seu pranto entristecesse os que iam partir, mas qualquer coisa superior às suas forças se impunha e as obrigava a chorar.
Também Clara evitava as lágrimas. Tinha os olhos inchados e adivinhava-se que passara horas a soluçar.
Luís Kinsey tentava acalmá-la, mas não o consegui A rapariga movia-se nervosa, de um lado para o outro  ajudando o seu pai.
Dentro da cavalariça, estavam preparados os animam que haviam de levar a prata. Eram doze cavalos de por raça, membros longos e finos, ancas fortes, pescoço grácil e corpo proporcionado. Dos doze, dez eram de pelo escuro, quase negro, e dois de tom mais claro.
Cada um daquelas animais levava dois sacos de couro repletos de pesos de prata. As moedas iam colocadas em pilhas de cinco, cosidas ao forro para que não se deslocassem. Cada um daqueles sacos aderia ao dorso dos cavalos como se fosse uma segunda pele.
Tudo estava calculado para que, em caso de necessidade, não dificultassem a fuga.
— Cada cavalo leva só quarenta quilos de prata — explicou o rancheiro a Luís Kinsey — mas, se tiverem de correr, podem fazê-lo. De outra maneira, ver-nos-íamos impossibilitados de avançar a toda a velocidade e perderíamos animais e prata. Prefiro empregar mais cavalos e ter mais possibilidades de êxito. Nunca me sucedeu nada e espero que desta vez também não... Os animais resistem bem à marcha e os cavaleiros não os esforçam se não for necessário. São sessenta milhas que nos esperam, trinta cada noite se andarmos bem. Durante o dia, descansaremos do outro lado do rio Grande, atravessamos os Desfiladeiros Vermelhos e ao amanhecer chegamos a Las Cruces. Aí, estão à nossa espera, repousamos uns dois dias, o tempo suficiente para vender a. prata e comprar o oiro, e voltamos seguindo o mesmo caminho. Está tudo previsto e calculado.
— Nunca sucedeu nada?
— Nunca. Nem sucederá, Luís.
— Assim o espero.
Pedro de Mejias passou revista aos animais pela última vez. Verificou as cilhas e o ajustamento dos sacos que continham os pesos de Maximiliano.
Depois, erguendo a voz, dirigiu-se aos dezanove homens que o acompanhavam na expedição.
— Amigos!... Vamos percorrer a nossa rota pela última vez. Tudo sairá bem e o êxito coroará os nossos esforços... Peço-lhes que rezem para que Deus nos ajude.
Os homens descobriram-se todos, inclinando a cabeça.
Uma voz de mulher, pertencendo a uma velha que via partir no grupo um filho e um neto, foi que iniciou a prece. A voz dela tinha um tom patético, estranho para as circunstâncias. Eram homens que iam empreender uma aventura perigosa, da qual não sabiam se voltariam com vida.
— ...Ajudai-os, Senhor, e não permitais que morram ali... Fazei que todos voltem sãos e salvos, Senhor. Rezaremos por eles enquanto estejam fora, Senhor, para que não esqueçais que ficamos aqui, as mães, as esposas, os irmãos e os filhos... Senhor, rogamos que os ajudeis... Em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo. Ámen.
Todos responderam como uma só voz:
— Ámen.
Pedro de Mejias pôs novamente o chapéu e deu a ordem:
— A cavalo!
Os homens obedeceram.
— Em marcha!
Em fila indiana, foram saindo da cavalariça.
A escuridão que cobria o rancho envolveu-os imediatamente e converteu-os em sombras que se encaminhavam para a fronteira da União.
Clara sentiu que o braço de Luís Kinsey a cingia, ajudando-a a manter-se em pé.
— Adeus, pai — murmurou a rapariga.
O rancheiro agitou o chapéu no ar por um momento. Seguidamente, só se ouviu o ruído dos cascos dos cavalos que se afastavam.
O grupo de mulheres olhava os entes queridos que partiam, com a respiração suspensa, sem um único comentário, sem choros, pois já tinham esgotado as suas lágrimas. Alguns lábios moviam-se, inquietos, rezando sem., interrupção.
Depressa se deixou de ouvir o som provocado pelo caminhar dos animais.
Eram oito horas. O sol havia desaparecido do horizonte às sete da tarde e a escuridão imperava por toda a parte.
Clara voltou ao edifício central. Na sala de jantar, a mesa estava ainda ocupada pelos restos da refeição. A rapariga sentou-se num cadeirão e cruzou os braços sobre a mesa, apoiando neles a cabeça. Então, não pôde conter-se mais. As lágrimas correram em abundância pelas suas faces e os seus soluços ouviram-se por toda a sala.
Luís tentou acalmá-la, mas não o conseguiu.
— Tenho medo... Tenho medo, Luís... Muito medo... José Iglésias... Iglésias...
— Não acontecerá nada! Acalma-te; verás como hão-de regressar dentro de uns dias.
— Iglésias... O teu amigo Iglésias é um assassino.
— Não é, Clara... Conheço-o como se fosse meu irmão e tenho a certeza de que o não é.
A jovem suspirou profundamente. Os pressentimentos atormentavam-na e um receio crescente apoderava-se do seu coração. Pressentia que era a última vez que tinha visto seu pai.
Ao amanhecer, o nascer do sol surpreendeu o rancheiro mexicano do outro lado do rio Grande, já em território da União.
Os cavalos não haviam tido nenhuma dificuldade em atravessar as águas naquele ponto, embora estivessem uns centímetros mais altas do que o normal.
Acamparam ao pé dos Desfiladeiros Vermelhos, procurando refúgio entre as incríveis ondulações daquele maciço montanhoso.
Os Desfiladeiros Vermelhos formavam uma das barreiras quase intransponíveis que corriam ao longo do rio Grande, já em terras da América. Eram umas montanhas avermelhadas, como se o sangue as tivesse banhado em tempos idos e a sua cor não houvesse desaparecido.
De longe, formavam uma mole imponente, aparentemente impossível de ser atravessada. No entanto, à medida que se aproximavam, viam-se os múltiplos caminhos que apareciam pelas suas vertentes. Muitas daquelas passagens iam-se tornando cada vez mais estreitas até desaparecerem; outras não tinham saída possível e ainda algumas desembocavam nas que continuavam, em procura de saída pelo lado oposto.
Tinha de se ser experiente nos desfiladeiros para uma pessoa não se perder. Mas, o caminho escolhido não constituía preocupação para Pedro de Mejias. O que o apo quentava verdadeiramente era a presença de José Iglésias. Aqueles desfiladeiros eram o local ideal para uma emboscada.
Durante o dia que passou sentado debaixo de uns arbustos que cresciam junto da vertente escarpada, os seus pensamentos foram sempre os mesmos. Mentalmente calculava que faltavam umas nove horas de caminho e que seria muito pouca sorte se precisamente no último dia sucedesse alguma anormalidade.
Quase não se alimentou. Esteve sempre a olhar para o relógio, desejando que o tempo voasse. Mas, o seu desejo era impossível. Os ponteiros continuavam a indicar que o tempo passava com a mesma lentidão do dia anterior e do seguinte.
Às oito horas, quando o sol já se havia posto de nov. e o seu disco brilhante não aparecia no horizonte, Pedro de Mejias deu a ordem de montar.
Voltou a observar os animais. Estavam frescos e na havia nenhum ferido. Se tudo corresse bem, chegariam à hora prevista a Las Cruces.
— Em marcha, amigos, e que Deus nos ajude.
À frente, caminhava Tadeu, um homem que conhecia tão bem os Desfiladeiros Vermelhos como as suas mãos. E, seguindo-o, os restantes puseram-se a caminho.
Depressa foram rodeados pelas altas penedias avermelhadas.
Parecia que viajavam por um mundo de sangue e morte. As encostas surgiam descarnadas, sem uma única planta a adorná-las. Somente havia pedra naquela desolação terrível.
O desfiladeiro ia-se ampliando à medida que novos ramais o engrossavam. Era como que um rio sangrento e rochoso.
Não se ouvia um único ruído a não ser o ressoar dos seus passos. Tudo parecia morto.
Pedro de Mejias olhava os altos paredões que quase se perdiam na escuridão. Aquele era o ponto mais perigoso da sua rota, o sítio indicado para um assalto.
Não obstante, nada via que lhe chamasse a atenção. Tudo se mostrava tão deserto como sempre.
Os outros também vigiavam, com as espingardas na mão, dispostos a abrir fogo. Mas, tal como o seu patrão,  ululavam.
Todavia, a realidade era diferente. Dois olhos estavam fixos na figura um tanto avantajada do rancheiro mexicano. Eram dois olhos pequenos e negros que se moviam rápidos e inquietos. E também o olhar de mais cinco homens seguiam os movimentos dos seus companheiros.
Aqueles indivíduos, colocados nas alturas, esforçavam-se para não perder um único pormenor. As suas mãos acariciavam as «Winchester» de doze tiros.
Tudo tinha sido calculado. Seis espingardas de doze eirós somavam setenta e dois balázios.
Era impossível que escapasse alguém com vida. Nem sequer os cavalos.
Um deles sorriu, satisfeito. Aquele ia ser o melhor " golpe da sua vida. Doze animais carregados de prata, de pesos de Maximiliano, que poderia vender sem dificuldade.
Esperou que passassem mais perto. E, quando julgou que era o melhor momento, a sua voz ressoou pelos desfiladeiros como um trovão:
— Fogo!
No mesmo instante, as espingardas cantaram a s canção de chumbo e de morte. Uma canção trágica, d notas agudas, secas e duras, que destruía por onde passava. Os relinchos dos cavalos e os gritos dolorosos do homens misturaram-se num alarido infernal. Quando se ouviu o grito, acompanhado quase nt, mesmo instante pelos tiros, o pai de Clara sentiu um pancada nas costas, do lado direito, que o atirou ao chã Foi isso que o salvou. Deu várias voltas, rolando com violência, até que o embate numa pedra o fez parar. Tentou levantar-se e vários projéteis cravaram-se quase a seu lado. Quando, a arrastar-se, procurava um refúgio mais seguro, uma nova bala penetrou no calor da sua carne. Atravessou-lhe a coxa e desfez-lhe a anca. Apesar disso, conseguiu encobrir-se atrás de u rocha. De ali, mordendo os lábios para conter as dores que o atormentavam, viu o espetáculo que oferecia o desfiladeiro.
Quase todos os seus homens tinham sido atingidos pelas descargas. Alguns cavalos relinchavam cheio de dor e escoiceavam, procurando a saída daquele inferno. Mas, a única coisa que conseguiam era despedaçar os corpos dos homens que haviam caído sob as suas patas. Só um dos homens não fora alcançado: Tadeu o que caminhava à frente.
Quando ressoaram os tiros, Tadeu, um homem de uns cinquenta anos, pequeno, nervoso e magrizela, atirou-se para detrás de umas pedras. Do seu esconderijo, procurando confundir-se com as rochas e as sombras, presenciou o final de Pedro de Mejias e dos seus homens. A luta durou menos de dez minutos.
Quando os cavalos e os cavaleiros formavam um amálgama de cadáveres, os seis atacantes desceram ao fundo do desfiladeiro. frente deles, ia um homem novo, que não aparentava ter mais de vinte e sete anos, com a «Winchester» na mão, preparado para disparar. Os seis bandidos avançaram por cima dos cadáveres, olhando-os um a um. Depois, começaram a libertar os cavalos das sacas de lona. Tadeu pôde observar tudo minuciosamente e também reconheceu o homem que comandava os cinco foragidos: era José Iglésias! Quando se afastaram, ficaram dezanove cadáveres. Um mês depois, o sol e os abutres tinham deixado apenas os ossos. A partir daquela data, o desfiladeiro passou a ser conhecido pelo nome de Desfiladeiro das Caveiras. Um nome trágico, que definia perfeitamente o que ali havia acontecido.
 

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