domingo, 9 de julho de 2017

BIS135.3 Será que alguns obstáculos podem deter o juiz?

Seguira rio abaixo. Aquela parte da paisagem, com o Pequeno Colorado despenhando-se por entre as rochas, oferecia, sem dúvida, um espetáculo impressionante.
Notava-se o despontar da Primavera nas primeiras flores, margaridas e campainhas, e os lírios cresciam debaixo dos pinheiros.
«Narcissus», o alazão do juiz, soltava de vez em quando bufidos e curtos relinchos, com os quais demonstrava o seu entusiasmo.
Perto das grandes cataratas desviou-se para o interior das montanhas. Ao cabo de um par de horas a subir, bordejando os precipícios, atravessando bosques e vadeando arroios, descobriu o colorido pico do Sunset Crater.
Meteu por um estreito carreiro. A cidade de Marte não estava já muito longe.
Contornava um bosquezinho de abetos quando à frente lhe saíram quatro cavaleiros. Não existia qualquer dúvida acerca das suas intenções, visto lhe apontarem as carabinas.
— Quieto, juiz! — grunhiu o que ocupava posição mais avançada.
Bornac puxou as rédeas do cavalo e observou os desconhecidos com atenção. Tinham os rostos descoberto, coisa que não parecia preocupá-los muito.
-- Se é um assalto, amigos — a sua voz conservava o tom suave, irónico —, creio que desta vez não souberam escolher a caça.
— Não queremos o seu dinheiro... maldito seja, mas queremo-lo a si.
O homem não estava com meias medidas. Era de estatura menos que mediana, o que dissimulava muito bem sobre a montada, graças ao seu amplo tórax e aos compridos braços. Cabeça pequena, rosto quadrado e cheio de rugas como o de um macaco, sardento e cabelo cor de milho.
— Sabes quem sou?
— Satanás! Nem sequer se poderia confundi-lo com o seu compadre, o diabo. Você é Morice Bornac e vem a Marte realizar um julgamento.
— De acordo, rapazes. Estou às ordens.
Dois deles manobraram de modo a colocarem-se atrás. O que falara e um calmeirão, de pele acastanhada, grui& queixada e ar melancólico, puseram-se à frente.
Não lhe deram explicações, nem Bornac as pediu, tão-pouco. Calculava que poderiam ser do rancho do tal Salinger que o mandara chamar e que o rancheiro o quisera impressionar assim.
Ou melhor, amigos do homem que seria julgado, que se lhe tornava menos agradável.
Deixaram o tortuoso caminho e conduziram-no através do arvoredo e das rochas. Veados, linces e esquilo, fugiram diante deles. Os cavalos calcavam o matagal e os perus bravos ofereciam-se quase à mão.
Subiram e desceram. Por duas vezes atravessaram a corrente de água sobre pontes improvisadas com troncos de árvores, que se moviam perigosamente debaixo dos cascos.
Por último, desembocaram num círculo natural rodeado de montes e onde a vegetação crescia luxuriante, com as raízes alimentadas por uma infinidade de regatos. Atravessaram-no a sesgo e detiveram-se diante da entrada de uma caverna, na encosta de um daqueles montes.
— Vamos, desça — instou o que parecia o chefe dos captores.
O juiz encolheu os ombros e deslizou para o chão, após o que examinou com curiosidade o local.
— Que número se segue agora? — interessou-se.
«Cabelo Cor de Milho» também desmontara, revelando a sua condição anã, para o que contribuía o arqueamento das pernas, e plantou-se a dois passos, com os olhinhos semicerrados e uma abjeta careta.
— Um muito divertido, juiz. — Sem razão aparente, deixou ouvir uma gargalhada. Você vai passar uma temporadita neste lugar. Que lhe parece?
— Nada tenho a objetar contra o sítio... desde que você deixe de comer cebola respondeu Bornac.
— Engraçado, hem? Ouviram, rapazes?
Voltou-se para receber o assentimento dos companheiros, que o haviam imitado e adquiriram a posição ereta.
— Não te deixes intrujar, Roy — preveniu um rapazola, de cara redonda e pouco simpática, com os olhos como duas bolas de alumínio e o cabelo louro cortado tesouradas irregulares. — Este tipo julga que está no tribunal.
O chamado Roy olhou de novo para o juiz.
— Sim — declarou. — Mas aqui não pode ditar sentenças... e muito menos que lhe deem dinheiro por elas. Não é verdade, juiz?
— Você é que ia ser enforcado em Marte?
A pergunta de Bornac fez ferver o pequenote. Soltou um grito e atirou-se contra a alta figura do outro. Menos prezou o comprimento dos braços do seu antagonista e deteve-se fulminado por um direto que ressoou como se • quebrasse um osso de elefante.
Houve um momento de hesitação dos restantes, enquanto Roy se desprendia do gancho da sua consciência e se abatia sobre a relva.
Bornac aproveitou a surpresa. Puxou dos seus «Colts», que deslizaram com suavidade e precisão para fora dos coldres.
— Asseguro-lhes que estes brinquedos abrem uns buracos muito bonitos na pele advertiu com ar sorna até mesmo no couro de vocês, rapazes. Vamos, desapertem os cinturões!
Uma vez mais de deu o fenómeno que obrigava o, juiz a brilhar as suas habilidades de «gun-man». A reação dos seus inimigos, em casos como aquele, era similar...
Custaria a crer que um funcionário, cuja ocupação contínua deveria ser o manejo de papéis, pudesse fazer uso das armas com a eficácia deles.
E foi o rapazola antipático quem tomou a seu cargo a demonstração.
— Vá para o inferno, juiz! — berrou.
A seguir procurou fornecer o veículo para a habitual viagem sem retorno: inclinou-se ligeiramente para uni lado e disparou com a mão no quadril, sem tirar do coldre o seis tiros.
Mas o seu pedaço de chumbo foi cravar-se a algumas polegadas da ponta da sua bota direita, ao mesmo tempo que a bala enviada pelo juiz lhe extraía de todo o revólver do coldre e lhe desconjuntava a mão.
— Façam o que lhes disse, rapazes — insistiu Bornac, com voz surda, como se a questão o aborrecesse.
Os cintos foram caindo por terra.
— Agora encaminhem-se para essa parede e sentem--se com as costas apoiadas contra ela.
Roy punha-se em pé pelo sistema das vacas, posição que permitiu a Bornac dar-lhe o impulso para que se reunisse aos seus companheiros mediante uma patada estratégica.
— Você — recordou — tire essa coisa inútil que lhe segura as calças.
Colocaram-se na posição indicada: alinhadinhos, cotovelo com cotovelo, e com uma expressão comum de aborrecimento. Bornac olhou-os com certo regozijo.
— Não gosto .de ser indiscreto, mas também não aprecio que me caiam em cima quatro rufiões da vossa categoria e não me deem as explicações precisas. Por que tinham tanto interesse na minha pessoa?
Não obteve resposta.
— Que galhardo procedimento! Mas ouçam, rapazes: não sei se notaram que dentro de meia hora o sol lhes dará em creio, e que assim estará durante todo o dia. Bom; se resistirem um par de horas a cozer debaixo dos seus raios, estou certo de que já não terei nada que perguntar-lhes. Não! Dos miolos derretidos não se extraem respostas.
— Maldito seja, juiz! — berrou Roy. — Julga que nos mete medo?
— Não conto com a sua cara para isso, amigo, mas...
Passeou um bocado diante dos prisioneiros. E, com efeito, como predissera, os raios de sol incidiram sobre aquele ângulo. Ainda não tinham força suficiente, mas mesmo assim incomodavam como lâminas de luz.
Em semelhante altura a exposição podia até ser mortal. E todos o sabiam.
Bornac foi sentar-se ao abrigo de uma rocha e enrolou um cigarro, que fumou pachorrentamente. Em breve os quatro mal-encarados sujeitos suavam copiosamente e tornavam-se corados como caranguejos numa panela.
O juiz colocou-se diante deles e intencionalmente procedeu de forma que a sua sombra caísse sobre cada uni durante alguns segundos.
— Por que desejavam encerrar-me nesse buraco? —inquiriu. — Quem lhes ordenou que o fizessem?
Esperou; mas a resposta não chegou do ponto que esperava, mas sim de outro situado atrás de si.
— Não se mexa, juiz — ordenou alguém, com aspereza.
Era difícil identificar aquela voz, que nada tinha de cristalina nem de harmoniosa, antes soava forte, com registos duros, apesar de agradável aos ouvidos.
Bornac deixou-se ficar quieto. Apenas desviou ligeiramente a cabeça para ver a nova personagem.
Verificou que os seus quatro prisioneiros se punham em pé e se atiravam para o monte dos cinturões. Em breve estavam armados e o ameaçavam com os revólveres.
O juiz reparou no elemento que mudara o curso dos acontecimentos. Uma mulher. Examinou-a em pormenor, com interesse.
Sem necessidade da carabina com que o dominava, teria impressionado. Tinha o porte de uma deusa. Vestia um conjunto de blusa azul e calças de vaqueiro cor de caqui, que condizia perfeitamente com os seus olhos cinzentos e o cabelo louro, queimado.
Na cidade talvez a considerassem rústica, comparada com as damizelas de talhe quebradiço; mas um júri habituado a folhear velhos livros de histórias dar-lhe-ia um primeiro prémio. A palavra que a definia melhor era: «esplêndida».
— Surpreendeu-nos, Sue — tentava explicar o envergonhado Roy. — Esse maldito sabe servir-se dos «Colts».
— Levem-no lá para dentro.
Bornac começava a inquietar-se e a não gostar de todo aquele enredo. A um convite feito sem qualquer espécie de delicadeza pelo calmeirão, encaminhou-se para o buraco e transpôs a entrada.
Dentro havia uma vasta sala, de teto muito alto, unicamente iluminada pelo difuso resplendor que penetrava pela porta.
Atrás dele, com o cano da arma encostado à sua coluna vertebral, entrou Roy. E, em magote, os demais: O tipo novo acendeu um candeeiro de petróleo.
— Tire o cinturão, juiz — aproveitou para ordenar por seu turno o anão.
Bornac obedeceu. Sabia quando lhe tocava perder. Mas Roy não se contentou com isso.
Assim que o viu desarmado, correu para ele e socou-o no peito, conseguindo derrubá-lo. Não pôde evitar, no entanto, que mesmo do solo o juiz lhe disparasse uma patada que o fez voar pelos ares.
Começou a saltar e a gritar, enquanto Bornac se apressava a levantar-se. E então os outros três companheiros de Roy solidarizaram-se com ele e caíram-lhe em cima.
Recebeu uma dezena de murros antes que a enérgica intervenção da rapariga contivesse a judiaria.
— Vamos, deixem-no! Querem estragar tudo, imbecis?
Afastaram-se lentamente de Bornac, que se recompôs pela segunda vez. Uma cólera cega, irracional, apoderava--se de si. Não gostava de ser tratado daquela maneira; e não gostava, sobretudo, porque no seu íntimo suspeitava que o merecera.
— Por que não os deixa? — perguntou com acento raivoso que a si mesmo causou surpresa. — No fim de contas as baratas têm direito de aproveitar as ocasiões que se lhes apresentam... antes que as esmaguem na sua própria imundície.
— Não o ouves, Sue? Não passa de um porco vendedor de sentenças, mas comporta-se como se, na verdade, fosse o juiz do Universo.
Sue, sem tomar em consideração as palavras de Roy aproximou-se de Bornac e contemplou-o com desapiedada dureza.
— Sabemos ao que vem, juiz — declarou. — Salinger comprou-o para que salve o seu filho Tony.
— Quem é esse Tony? Está louca, criatura. Chama-ram-m2 para presidir ao julgamento de um tal Ben Kunetzky, acusado de ter assassinado um velho e raptado uma jovem, da qual se não sabe o que foi feito, embora se suspeite que a assassinou também.
A jovem empalideceu. Apesar da sua ira, Bornac admirou a sua beleza. Notava-se a firmeza da sua carne, o aveludado da sua pele ligeiramente queimada.
— Sim, isso é o que existe oficialmente. Mas dá-se a casualidade de esse Ben Kunetzky ser meu irmão. E eu sei que ele não podia praticar semelhante vilania.
Havia uma nota de absoluta certeza na sua voz. O juiz acusou o impacto da revelação e compreendeu o motivo por que o tinham obrigado a entrar naquele buraco
— Bom — disse se as coisas se passaram assim, no julgamento tudo se esclarecerá.
— Não, isso nunca. O julgamento é uma farsa. No júri figuram, pelo menos, oito pessoas que devem as suas situações a Salinger. E conhecemos o seu historial, juiz. Por dinheiro absolveria o diabo de todos os seus pecados. Esse julgamento não se realizará.
A realidade era que Bornac não, conhecia exatamente para que o requerera Salinger, embora suspeitasse que deveria ser para algum negócio sujo. Pelos vistos, tratava-se de condenar um inocente com o fim de impedir que seu filho fosse acusado.
— E como está tão certa de que não foi o seu irmão? Acaso se encontrava presente?
Sue retrocedeu um passo e corou.
— Não. Mas Ben é meu irmão, compreende? Criámo-nos juntos e posso dizer-lhe o que pensa após a simples formalidade de fitá-lo nos olhos. Por outro lado, e maldito seja se esta informação lhe servir para alguma coisa, saiba que Tony Salinger é um asqueroso perseguidor de raparigas, um repugnante bicho cuja simples presença se torna ofensiva. Rosy, a filha de Potter, correu-o diversas vezes sem resultado. E não a perseguia apenas a ela...
O seu rubor aumentou, indicando que também suportara as investidas do encantador moço.
— E as provas? Segundo compreendi, seu irmão foi encontrado bêbado junto do local dos acontecimentos, tendo em seu poder um lenço de Rosy Potter. Como explica isso?
— Muito facilmente, senhor juiz. Na noite anterior, Ben esteve a beber com Tony Salinger. Por desgraça não posso defender meu irmão disso. Gosta de beber e em mais de uma ocasião o têm apanhado sem sentidos na rua. Toda a gente o sabe, e Tony mais que ninguém. Podia ter pensado que era uma boa cartada levá-lo consigo, visto que não se recordaria de nada que se passasse quando o interrogassem no dia seguinte. Está a compreender?
Apesar do evidente desprezo com que o considerava, na sua atitude havia ansiedade, como se desejasse convencê-lo.
Bornac teve de admitir no seu íntimo que a informação que lhe fornecia Sue mudava substancialmente o aspeto da acusação contra Ben Kunetzky. De qualquer modo, não podia estranhar que fosse assim.
Mas havia outros pontos que não estavam muito claros no assunto. E de repente descobriu que tinha um interesse extraordinário em esclarecer a verdade.
Tratava-se de qualquer coisa que não lhe acontecia desde aquele infeliz caso da bailarina. O pior foi que tomou nota, além disso, de uma nova descoberta. No seu interesse entrava em grande proporção o facto de Sue Kunetzky ter os olhos pousados na sua pessoa com aquela expressão meio reprovadora meio anelante.

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