segunda-feira, 3 de julho de 2017

PAS778. Balada do rapaz excelente e... arruinado

A carruagem parou diante da entrada principal do clube «Novo México».
Um criado, de rosto moreno, amplo sorriso e comprido bigode, abriu a portinhola do veículo.
Luís Kinsey de Acertes y de Mejias desceu e saudou porteiro.
— Olá, Pedro! Tudo bem?
— Para mim, sim, senhor.
— Nem todos podemos dizer o mesmo. — E, dirigindo-se ao cocheiro, acrescentou: — Francisco, volta para casa e não me esperes. Irei a pé, como me compete.
Ninguém lhe respondeu palavra. Nem uma frase de adulação, nem um comentário que desmentisse o que acabava de dizer. A verdade era conhecida por toda a sua classe social.
A Luís Kinsey de Acertes y de Mejias só restava o nome. Património, ranchos, terras, tudo estava hipotecado ou embargado. Nada se salvara da herança dos Acertes, mas ele não se importava muito.
Meses antes, quando tinham começado a circular rumores sobre a sua ruína, pensara que lhe ficava o mais importante: a sua personalidade. Mas, haviam-lhe bastado uns quantos contactos com os que julgava os seus mais íntimos amigos para se dar conta de que o que lhes interessava era o seu pecúlio. Desaparecidas as riquezas, acabava tudo.
Entrou no edifício do clube. Uma rapariga, vestida com o trajo típico mexicano, aproximou-se dele com um cesto de flores.
íntimos amigos para se dar conta de que o que lhes interessava era o seu pecúlio. Desaparecidas as riquezas, acabava tudo.
Entrou no edifício do clube. Uma rapariga, vestida com o trajo típico mexicano, aproximou-se dele com um cesto de flores.
— Um cravo, senhor? — ofereceu, enquanto colocava a flor na lapela do casaco do rapaz, sem aguardar resposta.
Uma flor como tu, Marina, é que eu gostaria de levar, para a União — respondeu, ao mesmo tempo que lhe passava para as mãos uma nota de cinco pesos.
Marina fitou-o, surpreendida, com os seus olhos grandes e negros muito abertos. Duas coisas a espantavam: os cinco pesos, importância avultada para o que era habitual, e a afirmação de que ele partia para a União.
— Vai partir, senhor? — perguntou, com ar de tristeza.
— Sim, vou-me embora.... Só tu terás pena, tenho a certeza.
— Sim... E eles também sentirão que tu partas — murmurou ela, tratando-o por tu.
— Não, eles não. Eles alegrar-se-ão. As minhas terras, os meus ranchos, ficam nas garras dos Bancos, que são as garras deles. A maioria dos meus amigos, dos que me sorriam e davam palmaditas amistosas nas costas, é acionista das empresas bancárias que não me permitiram um alargamento de créditos. Esses ficarão contentes por eu partir.
— Já sabem?
— Vou hoje anunciar-lhes... E até o festejaremos. Restam-me cinco mil pesos.
— Guarda-os.
— Para quê? Prefiro chegar à União sem nada nos bolsos. Se as coisas me correrem bem, poderei sentir-me orgulhoso de ter começado do nada.
— Que farás lá?
— Jogar... Não sirvo para outra coisa. Sei manejar o laço para que nenhuma rês se me escape, sei disparar e acertar no gargalo de uma garrafa a trinta metros de distância..., mas sei jogar e ganhar. Não posso fazer outra coisa.
— Não me agrada...
— Eu sei, Marina.... És a única pessoa que me fala com sinceridade. Os que estão lá dentro sorrirão satisfeitos e esperarão a minha morte, depois de terem tomado conta dos meus bens.
— E ela?
— Maria Luísa? Oh! Não tem importância! Já está farta de mim... ou da minha penúria. Deixar-me-ia na primeira altura; esquecer-me-á rapidamente. Quando começámos a dar-nos, eu tinha um pouco mais do que longos apelidos. Agora, é a única coisa que me resta e está demonstrado que no México isso não basta para viver. São precisos pesos.
— Às vezes, pode-se ser muito feliz sem dinheiro.
— Sim, com amor... Mas, isso dizem os que nunca conheceram a riqueza. A mim, que fui o que pode chamar-se um rico fazendeiro, não me convencem esses argumentos. No México, vivi como um homem abastado e, portanto, não posso viver como um pobre. Na União, as coisas serão diferentes. Lá, ninguém me conhece e viverei de uma maneira muito diferente.
— E mais perigosa.
— E que me importa isso? Viverei ao ritmo da vida do Oeste: com o «Colt» na mão, um sorriso nos lábios e o coração sem penas... Será uma coisa linda. Anda, pequena, deseja-me boa sorte.
— Sim, Luís, desejo-te sinceramente muita sorte. Agora, que te vais embora, posso dizer-te que...
— Não, não, Marina, não me digas.... Adivinhei-o desde o primeiro dia, mas preferi ignorá-lo. Causar-me-ias mal se aclarasses o que eu já sei... Adeus, Marina.
— Adeus, Luís.
O rapaz separou-se da empregada do clube e penetrou no salão principal.
No «Novo México», um luxo transbordante imperava por toda a parte. O local era requintado em extremo e nele se reuniam os grandes proprietários mexicanos, que viviam na capital, longe das suas terras, deixadas ao cuidado de capatazes e feitores. Também ali apareciam os cultivadores de tabaco, os diretores das empresas de navegação e das grandes firmas construtoras.
Para ser sócio do clube «Novo México» eram precisas duas condições: dinheiro e apelidos ilustres. Aqueles a quem faltava uma ou as duas coisas estavam excluídos do círculo mais fechado e selecionado da capital mexicana.
Ainda se permitia que Luís Kinsey de Acertes y de Mejias franqueasse as portas do clube, mas a sua fortuna, como era do domínio público, havia-se desmoronado e não lhe restava quase nada.
Quando entrou no salão principal, o mordomo saudou-o, com urna cortês reverência.
— Olá, Chano! Deixa-te de mesuras. Não é necessário cumprimentares um homem como eu, que possui o mesmo dinheiro que tu possas ter.
— Menos, senhor — replicou o mordomo do clube.
— Sim, é verdade. Tenho menos. Cinco mil pesos ao todo, e arranjei-os vendendo a carruagem e os dois cava-los. Amanhã, já não serão meus... Sabes que não te conhecia como homem sincero? Estava acostumado a ver-te dobrar a espinha por um peso.
— É a vida, senhor... Mas, há vezes em que sou fraco e digo a verdade, o que penso.
Não te acostumes, homem, não te acostumes. Pode custar-te caro. Se' há alguma coisa que a Humanidade não deixa dizer é a verdade. Se fores um hipócrita, triunfarás.
— O senhor é muito sincero.
— Sim e por isso me arruinei. Tentei jogar limpo e já vês o resultado: sem um peso. Se tivesse feito como outros que passeiam os seus milhões pelo clube, estariam agora a prestar-me homenagens. E os únicos que se aproximam agora são vocês.... Queres tomar alguma coisa, Chano? Convido-te.
— É-me proibido, senhor... De bom grado brindaria pelo seu futuro.
— Já sabes que me vou embora? — perguntou, admirado.
— Não, ignorava-o... Mas, sei que querem expulsá-lo do clube. Na última reunião, a direção foi do parecer de que não era digno de pertencer ao clube porque está arruinado.
— Nem me perdoam que o meu pai fosse um súbdito da União. Não tenho dinheiro nem sangue totalmente mexicano. Não sou homem, Chano... Anda, vamos tomar um copo.
— Impossível, senhor... Talvez, mais logo, lhe faça um brinde.
— Fico-te muito grato.
Luís Kinsey atravessou o salão, cumprimentando à direita e à esquerda. Verificou que era retribuído com maior frieza do que a que tinham empregado nos últimos dias.
Sim, pensou, tinham-no expulsado do clube, em deliberação conjunta. E o encarregado de lho dizer tinha sido Chano, o bom Chano, que entrara como paquete e ascendera até mordomo, à força de repartir muitos sorrisos, escovar muitas casacas e prestar-se a missões muitas vezes de natureza duvidosa.
— Que quer tomar, senhor? — perguntou o empregado do bar.
— «Tequila», a bebida nacional, o que bebem os nossos trabalhadores.
— Sinto muito, senhor, mas não temos «tequila».
— Então, rapaz, em vista do maravilhoso espírito nacional que possuímos, que nos impede de beber o que é e sempre foi bem nosso, arranja-me um uísque, do escocês, do melhor, do mais caro... Do que bebem os ricos que, no fundo, desprezam o México.
O empregado sorriu, ao escutá-lo, e encheu um fino copo de uísque escocês. Com ele na mão, Luís entrou na sala de jogo.
Ninguém o fitou, ou melhor, todos olharam para ele, mas de soslaio, como se fosse um indivíduo que estivesse ali a mais, que os incomodasse. Todos o temiam pelo seu espírito trocista e haviam-no suportado enquanto fora senhor de teres e haveres. Quando tudo se acabara, Luís Kinsey convertera-se num amigo impertinente, sempre indesejado.
Acercou-se de uma mesa e deixou cair uma nota de quinhentos pesos. O encarregado da mesa mirou-o, como se quisesse perguntar-lhe aonde fora arranjar o dinheiro.
Pegou nas cartas e voltou a largá-las. Nem esperou que o jogador da casa mostrasse o seu jogo. Até a sorte lhe virava as costas.
Aproximou-se de outra mesa, esta de roleta, e fez igual aposta. Quando a bola de marfim parou no seu inquieto rodopiar, o «croupier» arrebatou a nota de quinhentos pesos com a pá.
Luís bebeu o uísque e voltou ao bar.
Três sócios do clube, com os quais meses antes o unia uma boa amizade, abandonaram o recinto quando ele chegou. Compreendeu tudo.
— Sou um indesejável... Parece que tenho peste —murmurou para o empregado. — Atreves-te a servir-me outra bebida? — perguntou, colocando ao mesmo tempo uma nota de cem pesos sobre o balcão.
O empregado serviu-lhe o uísque e devolveu-lhe o dinheiro.
— Está tudo pago, senhor.
— Como?
— É como digo. A direção resolveu convidá-lo, para despedida.
— Que amabilidade! — ironizou. — São uns perfeitos cavalheiros... Porque não bebes tu? Convido-te também, já que é a casa que paga.
— Não posso, senhor.
— Ah! Sim, já não me recordava de que para eles pertences à classe pobre e não te deixariam pôr os lábios nos seus copos de ricaços, nem beber os seus licores exóticos... Vou experimentar outra vez a roleta. Ali, ao menos, deixam-me pagar.
Entrou de novo na sala de jogo e, aproveitando a altura em que um jogador se levantava da mesa da roleta, ocupou o seu lugar.
Colocou uma nota de cem pesos no cinco vermelho e esperou.
Perdeu.
Voltou a apostar cem pesos. O «croupier» convidou o resto dos jogadores, com as suas frases em mau francês, mas ninguém foi a jogo e cinco dos jogadores abandonaram os seus lugares.
Luís Kinsey voltou a perder. Insistiu e pôs mais cem pesos sobre o pano, no mesmo número e cor.
Repetiu-se a lengalenga do «croupier» e, então, todos os restantes jogadores desistiram e afastaram-se da mesa.
Luís sorriu.
— Amigo, vamos jogar os dois, até se me acabarem os cinco mil pesos.
— As suas ordens, senhor.
A bolita de marfim parou de novo, mas dessa vez no cinco vermelho. Luís Kinsey retirou o dinheiro e voltou a apostar.
— Estou a ver que isto vai demorar um bom par de horas. Não me levantarei enquanto não estiver arruinado.
— Receio que não lhe custe muito, senhor — replicou o «croupier», sorridente.
Mas, enganava-se. Às três da manhã, Luís ainda possuía trezentos pesos. Às três da manhã, Luís ainda possuía trezentos pesos. As três e meia, voltava a ter dois mil.
Já não havia ninguém nos salões. As mesas de jogo estavam cobertas e os empregados bocejavam, aguardando que terminasse a partida.
O mordomo em pessoa enchia o copo de Luís Kinsey cada vez que estava vazio.
— Bebam, amigos, bebam todos comigo — convidou. Ninguém respondeu.
— Agora, estamos sozinhos.... Somos todos iguais, somos mexicanos pobres, depenados... aceitem o meu oferecimento.
— Senhor, não podemos... — começou o mordomo a dizer.
— Chano, deixa-te de disparates e de me tratar por senhor. Conhecemo-nos há uma porção de anos. Era eu um rapazola quando tu já eras ajudante de mordomo.... Trata-me por tu e bebe comigo.... Bebam, bebam todos.
— Bem, Luís, como queiras — respondeu o mordomo, servindo-se de uísque.
O resto dos empregados fez o mesmo. O «croupier» despiu a casaca negra e Luís o casaco.
As quatro da manhã, tinha quatrocentos pesos. Todos bebiam e conversavam animadamente. Luís Kinsey nem prestava atenção ao que sucedia sobre a mesa de jogo. Limitava-se a pôs notas de cem pesos e a retirar os ganhos, se os havia.
Às cinco, o sol despontou no horizonte e uma suave claridade começou a iluminar a sala de jogo do clube «Novo México».
Alguns empregados dormitavam, estendidos nas poltronas, e só Chano não perdera a compostura.
Luís Kinsey atirou a última nota para cima da mesa. — Onze negro — murmurou.
O «croupier», mecanicamente, repetiu as frases da praxe, como se convidasse hipotéticos jogadores, e lançou a bola. Quando esta parou, sorriu.
— Trinta e seis vermelho, Luís. Perdeste. Estás arruinado.
— Sim, amigo, arruinado... Temos de celebrar a minha ruína.
Chano voltou a encher os copos e o rapaz pôs-se em pé sobre a mesa de jogo.
— Brindo pela minha nova vida, pela União, pelo Oeste e pelo que lá me esperal... Brindo por vocês, que são pobres como eu, que sabem viver sem dinheiro e são felizes!... E brindo pelos meus ex-amigos, os ricos, os adoradores do bezerro de ouro, os ególatras, os fátuos, os que consolidaram fortunas à custa do suor alheio, os que nada merecem e tudo têm!... Brindo pelo México!.
— Brindemos por Luís Kinsey de Acertes y de Mejias, o novo arruinado!
— Não, não, Chano, não...! Estou arruinado, completamente arruinado; tira-me também os apelidos pomposos, os títulos... Sou Luís Kinsey, entendes?
— Sim... Brindo por Luís Kinsey!
— Viva!
Os copos esvaziaram-se num segundo e voltaram a encher-se imediatamente.
Luís saltou da mesa e encaminhou-se para a porta, seguido dos empregados e do mordomo.
Saíram juntos para os jardins do clube, com as garrafas na mão, e dirigiram-se para a rua.
Às seis da manhã, Luís entrava em casa, na casa que já não lhe pertencia.
Lá fora, na rua, ficava um grupo singular. Empregados e mordomo, todos trajando os seus uniformes de servidores do clube «Novo México», cantavam aos gritos:
— É um rapaz excelente, é um rapaz excelente... É um rapaz excelente... E sempre o será, e sempre o será!
Era verdade.

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