quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

BIS130. Cap VIII. A aterradora notícia

Trinta minutos mais tarde, a diligência partia de Eden, rangendo as suas molas ao sabor dos altos e baixos do caminho.
A muda de cavalos, ansiosos de galope, empreendeu a marcha a um bom ritmo. Uma esteira de pó marcou o seu avanço pelo deserto dentro. Quando a neblina começou a formar-se, os grupos dissolveram-se, as pessoas voltaram às suas ocupações e as últimas notícias circularam de boca em boca pela povoação.
Fay Prescott que saía do consultório do doutor Calbert, depois da visita correspondente ao seu oitavo mês de gravidez, ouviu, por acaso, a espantosa notícia.
Sentiu-se transpirar por todos os poros da pele e os joelhos fraquejaram-lhe. Fazia calor. Insuportável e feroz calor. Atribuiu o mal-estar ao facto de se encontrar grávida.
Mas, querendo ser justa, compreendeu que a origem dos suores estava naquelas palavras que tão diretamente afetavam o seu marido.
— Jed Bansson e os seus homens foram postos em liberdade. Deixaram a penitenciária de Tuscola não há oito dias. O encarregado da diligência garante que os viu perto da Ballinger. Cavalgavam nesta direção. Alguém vai pagar pela condenação que eles sofreram...
Sim. Alguém iria pagar. E esse alguém... era o seu próprio esposo!
Caminhou, sufocada, pelos passeios de tábuas, lutando para evitar que as lágrimas lhe viessem estupidamente aos olhos e com a mão esquerda crispada, amarfanhando o lencinho de linho, sobre o coração. Temia que todos pudessem escutar o seu bater desordenado.
Além disso, não ignorava, tão-pouco, que se tornara, automaticamente, o centro de todos os olhares furtivos, todos os cochichos e todos os maus presságios. Os habitantes de Eden compadecer-se-iam dela, do ainda alheio Hardy e até do fruto do seu amor, o filho das suas entranhas, que em breve iria nascer. Não suportava a compaixão estulta da uns tantos homens e mulheres para quem a liberdade de Jed Bansson representava apenas mais uma notícia! Em contrapartida, para ela... era imensamente trágica!
Conhecia a história.
Datava° de cinco anos antes, aproximadamente os mesmos que Jed Bansson, seu irmão Will, Buck Regan e o elegantíssimo Pretty tinham passado atrás das grades (1). Hardy Fortune, o jovem que chegara um dia a Eden, conquistara-a mal lhe declarara o seu amor e o desejo que sentia de convertê-la em «mistress» Fortune.
— Nem sempre foi bom, Fay — disse Hardy com voz fatigada. — Custa-me confessá-lo; mas tu deves saber; tens direito a isso.
(1) — «Pretty» — lindo, bonito.
— Não me importa o teu passado. Amo-te. Isso basta.
— Pertencia ao bando de Jed Bansson.
A revelação, contra o que Hardy esperava não alterou a cor da sua face sugestiva nem desfez a curva sorridente dos seus lábios túmidos.
— Não me importa — repetiu.
— Mas a mim, sim. Escuta. Tens de conhecer a verdade — insistiu ele.
— Nada te pedi — Hardy. E tu, em troca, queres casar-te comigo. Sinto-me paga com juros. É belo dar muito por nada.
— Ganho com o que te dou porque a tua conduta sempre foi irrepreensível. A minha... — o homem inclinou a cabeça. — Bom, desejo que o saibas, Fay.
Não houve meio de opor-se a isso. Hardy, espaçando cada frase — ou antes: cada palavra — revelou toda a história num esforço difícil e sincero.
— Vivi a sangue e fogo... — começou. — Disparei os meus revólveres contra gente inocente... Fui mau, Fay. Muito mau.
— Mas já não és.
— Não. Ou pelo menos... pretendo mudar. Aspiro a merecer-te e a que me consideres digno de ti. O meu cavalo percorreu muitos caminhos e a pólvora nublou-os. Roubei, vivi do assalto, da ilegalidade. Bem sei que há uma desculpa: sou um produto típico desta terra violenta. Dentro de cinquenta anos não ocorrerão as coisas que hoje estão na ordem do dia. Jed Bansson era o meu chefe. Eu... creio que terás ouvido falar dele.
— Sim.
— Os xerifes dos territórios fronteiros com o México consideravam-me o mais rápido e perigoso do bando. Até
tive a cabeça posta a prémio. Jed orgulhava-se de Hardy Fortune.
— Eu também me orgulho de ti. Renunciaste a tudo isso, Hardy. Lutas pela regeneração... Eu sei que podes reivindicar o teu bom nome e não desistirei de ajudar-te na empresa. Quando fraquejares, quando julgares que o peso do passado te obriga a afundares-te... lembra-te de que contas comigo. O resto, já te disse... não me importa!
— Num assalto, Buck Regan matou um pequenito — continuou ele obstinado na primitiva ideia. — Isso afetou-me muito. Não sei o que ocorreu dentro de mim, mas decidi abandonar os revólveres. Sentia aquele cadáver a pesar-me na consciência dia e noite. Cheguei a odiá-los a todos: a Jed, ao irmão, Will; a Prety sempre tão preocupado com a sua elegância; a Buck Regan, assassino acidental... mas assassino de qualquer forma! •
— Não te martirizes por favor.
— Não é martírio. A sério que não. Às vezes produz um infinito alívio poder aliviar a consciência com alguém que nos compreende e é bastante indulgente para perdoar as maiores faltas. Calou-se, passou os dedos pela boca torcida num jeito de amargura e completou: — Entreguei-me ao xerife de Eagle Pass. Por minha causa, seis meses mais tarde apanharam o resto da quadrilha... quando fugiam para o Norte. Não os enforcaram por falta de provas... e porque a minha declaração de antigo cúmplice foi insuficiente. Mas condenaram-nos a penitenciária. Creio que Jed nunca mais me perdoará.
— Oh, querido! Tu cumpriste já para com a sociedade. Pagaste a tua dívida perante a Lei.
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— Jed tem a sua própria Lei e no que lhe respeita continuo sem castigo. Um dia sairá da cadeia de Tuscola. Então, onde quer que me encontre... irá ter comigo para o ajuste de contas. Agora, tens tu a palavra. Já sabes o risco que te espera, mais tarde ou mais cedo... casando comigo.
— Amo-te — declarou Fay, olhando-o com os seus luminosos e claros olhos de moça feliz. — E admiro o esforço que representou afastares de ti o lastro de um passado negro. Nunca mais voltes a usar armas de fogo, Hardy. Prometes? Ouvi-lo dos teus lábios tornar-me-ia extraordinariamente feliz...
— Claro que prometo. Bem vês... — por fim, Hardy sorrira — até ando desarmado como um trabalhador do campo!
Passaram cinco anos sem se sentir. Cinco anos iluminados por um casamento, o trabalho honrado e o filho que guardava no seio. Cinco anos... Mas Jed Bansson não esquecia. A sua lei selvagem tinha de ser cumprida. Um vento de loucura poderia arrasar as suas vidas e a do inocente ser que ainda não nascera.
O bater do coração ecoava-lhe nas têmporas, estrondosamente. Os passos vacilavam. A gravidez tornava-a hesitante, débil... tornava-a uma carga pesada! Como dizer a Hardy o que acabava de saber? Seria o mesmo que esmagar, reduzindo a poeira, um precioso, apesar de frágil castelo de cristal repleto de ilusões! O maldito Jed Bansson não respeitava nada nem ninguém.
Quando entrou em casa, ofegante da pressurosa caminhada, fechou atrás de si a porta e encostou a ela o peso do corpo.
Ia desfalecer. Pressentia-o. Nunca como agora Hardy precisava de uma mulher forte a seu lado. E, no entanto, nunca se sentira tão débil e horrorizada. Tão incapaz de mostrar bravura!
— És tu, Fay?
Hardy. A agradável e varonil voz chegava-lhe do estábulo. Prestou atenção.
O caos furioso que se formava no seu cérebro impedira-a de ouvir o som do martelo. Seu marido ferrava o «Cinder», um cavalo negro, de pelo luzidio. Lembrou-se de que prometera fazê-lo.
Fez o possível por serenar. Tentaria ganhar tempo. Demoraria a notícia o mais que lhe fosse possível. Era estúpido atirá-la de chofre sem ter pensado numa solução prévia. Na realidade existia solução? Deus bendito, que desgraça!
— Sim — respondeu, dando à voz uma nitidez quase normal. — Não venhas. Já vou ter contigo.
Foi. Hardy Fortune, mantendo ao alto, dobrada pelo joelho, uma das mãos do cavalo, dedicou-lhe um sorriso de boas-vindas. Estava em mangas de camisa, com o colarinho desabotoado e mostrando a parte -superior do tórax. Na mão direita tinha o martelo. Assestou uma pancada seca, fincando o cravo de ferrar, e com outra pancada dobrou a ponta que emergia do casco.
— Acabo já. Como foi?
— Bem... — Fay, avançara e beijara-o na face.
— Que disse o doutor?
— Não há novidade. Tudo normal, querido.
— Belo! — olhou-a sorridente e confundiu a vermelhidão das faces com o rubor próprio da timidez. — Belo, ao que parece! Vocês mulheres não gostam de falar nestas coisas. Julgam-se muito importantes por se encontrarem em futuro transe de maternidade. Mas eu também vou ser pai. Sinto ansiedade... e orgulho.
— Vou mudar de vestido.
— Ouve, Fay.
Ela deteve-se, paralisada pela voz. Não era lógico esperar perguntas difíceis. Hardy desconhecia a notícia. No entanto, o bater do seu coração redobrou de tumulto dentro do seu peito agitado.
— Diz.
Hardy perguntou:
— Armou-se aí um ajuntamento na rua. Chegou a diligência?
Fay confirmou:
— Sim. Via-a, quando vinha a caminho.
Hardy perguntou:
— Novidades?
Fay disse:
— O mesmo... de sempre. O progresso continua a avançar para o Norte e para o Leste. Dizem... dizem que lá as cidades crescem como cogumelos. Pensaste alguma vez que podíamos sair de Eden... e ir viver para outro sítio mais civilizado?
Hardy admitiu-o:
— Já pensei, sim.
Fay começou:
— Então por que não partim...?
— Oh, Fay! — atalhou ele, risonho: — Que ideia! Partir... precisamente agora! No teu estado...!
Fay disse:
— Gostava que o meu filho nascesse num lugar menos selvagem. Não sei como explicá-lo.
Hardy concordou:
— Entendo.
Fay continuou:
— Penso coisas estranhas, à medida que se aproxima o momento de dar à luz.
— Creio que nunca te recusei nada. Se realmente meditaste seriamente na decisão, temos tempo de realizá-la mais tarde. Também me encantava estabelecer-me noutro sítio. Numa terra digna desse herdeiro que vai perpetuar--me o apelido. Falaremos disso com calma... mas não agora. Não é lugar, nem momento oportuno para decidir uma viagem cheia de riscos. A menos que o doutor Calbert acedesse a acompanhar-nos... — concluiu sem desfazer o contagioso sorriso.
— E se...? — Fay desviou a vista. — E se uma circunstância de força maior nos obrigasse?
Hardy perguntou:
— Que circunstância? Não receies. Tudo se resolverá da melhor maneira. Há milhões de anos que as mulheres trazem os seus bebés ao mundo, cumprindo a primordial missão feminina. Há alguma coisa de especial?
— Não, não... — retorquiu Fay. Hardy comentou:
— Parece que estás um pouco... nervosa. Acho-te perturbada.
— Imaginação tua — e improvisou um trejeito cómico, uma expressão que tanto agradava ao marido.
— Até logo. — Até logo — repetiu ele, agarrando com força o cabo do martelo e dispondo-se a acabar o trabalho.
Quase tinha descoberto. Fay subiu para o seu quarto contendo um soluço e, mal fechou a porta, deixou-se cair sentada no leito. Silenciosamente, como gotas de chuva ao resvalar sobre uma superfície de seda, as lágrimas deslizaram-lhe pelas faces e levaram-lhe até às comissuras dos lábios o amargo sabor de uma dramática hesitação. — Deus meu... — soluçou.
— Deus meu... Tem piedade de nós!

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