sábado, 11 de fevereiro de 2017

BIS130. Cap IV. O vagabundo

A noite foi terrível. Mesmo que Joe Bliss vivesse mil anos nunca poderia esquecê-la. Tinha ouvido falar do Inferno. Sua mãe lia-lhe em voz alta a Bíblia quando era pequeno.
Com certeza que no Inferno, para castigar os pecadores, os condenavam a ficar caídos ao sol ou ao relento da noite no meio de uma planície inóspita..., e cem a perna esquerda partida. Não podia imaginar suplício maior.
No dia seguinte, de rastos, tentou chegar até umas rochas. O sol assava-o vivo, fazendo-lhe ferver o sangue, e a perspetiva de morrer desidratado alucinava-o. Levou quatro horas para alcançar as benéficas sombras, ao fim das quais, totalmente exausto, só teve energias para se cair na terra poeirenta, mergulhar o rosto nela, e cravar--lhe as impotentes unhas com todo o desesperado ódio de que era capaz. Por fim, soluçando, mergulhou num torpor que não era sono, mas um demoníaco prólogo dos atrozes, longos e desagradáveis pesadelos que padeceria.
Ao despertar, com pó até às pestanas, soprava um vento irregular e tórrido, típico da planície. A perna doía-lhe espantosamente; mas a fome e a sede tiveram a particularidade de insensibilizá-lo a qualquer sofrimento.
Durante a noite teve frio. Um frio indescritível, cortado às vezes por ondas de febre. Tiritava ou transpirava indistintamente. Os seus dentes castanholavam ou sentia, logo a seguir, resvalar o suor pelas faces barbudas. Fisicamente, Joe Bliss sofrera uma cruel metamorfose.
Já não era rude, nem audaz, nem arrojado. Era uni farrapo, uma miséria, uma casca aferrada, como lapa obtusa, à terra sem fim.
Depois, enlouquecido pelo sofrimento, começou a delirar. Gritava, injuriava, arrancava grunhidos roucos da 'garganta empedernida. Por fim, já não conseguia produzir qualquer som.
Assim, com o saco repleto de dinheiro a seu lado, passou outro dia; e outra noite, e outra ainda.
Depois, sem saber como, sentiu-se cair num poço negro, num abismo insondável e dramático... de onde nunca mais regressou. Para Joe Bliss acabava de soar a «sua hora», a hora que espera qualquer mortal.

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Chamava-se Link Grinter e não tinha profissão, nem domicílio nem, talvez, aspirações. Considerava-se a si próprio um vagabundo, um homem sem lar.
A vida não se mostrara benévola para com ele. Dera--lhe muitos pesares e poucas alegrias. Desde muito jovem aprendera uma dura lição moral: os párias são olhados por cima do ombro... e todos lhes voltam as costas. Uma infeliz e desagradável realidade.
Não lançara raízes. em nenhum sítio; nem com as reses, nem com as ovelhas; nem nos ranchos nem nos «rodeos»; nem em pastos nem em searas. Tentou mil ofícios; mas os mil acabaram por reenviá-lo, num violento regresso, ao único para que parecia predestinado: a vagabundagem.
Todo o seu património consistia num cavalo magrizela, de patas trôpegas e pelagem suja; uma manta; um esquálido saco de provisões... e o pobre equipamento de viagem que trazia vestido. Além disso, como brilhante coroa dos seus paupérrimos pertences, trazia uma velha «Evans» de oito tiros e a munição precisa para recarregar o depósito três vezes.
Entrou no Estado pelo Sul, atravessando os desfiladeiros de Comstock, procedente da província mexicana de Coahuila.
Viajou para o Norte sem pressas, detendo-se constantemente para ganhar alguns centavos laçando bezerros, marcando gado e até... tosquiando pestilentas «lanzudas» (1). Elas impregnaram-lhe a roupa de fortíssimo cheiro... e teve de queimar uns cartuchos para defender-se de uns «cow-boys» bêbedos que pretendiam tirar--lhe a pele a quando da sua passagem por Hondo.
Percorria o Texas como podia andar por Kansas, Arizona ou Califórnia. O destino dera-lhe o estigma de vagabundo e para ele, fleumaticamente, era o mesmo encontrar-se em Grinter nas frescas mesetas do Salt Lake como nas infernais depressões do Vale da Morte.
Talvez fosse a sorte — pela primeira vez na vida — quem guiou os seus passos ao vadear o rio Llano. Continuou a rota para o Norte, deixando para trás os limites
 
(1) Ovelhas. Expressão depreciativa dos vaqueiros.
do condado de San Saba. A linha do comboio, cujo traçado corria atravessando sempre as terras menos acidentadas porque disso se encarregavam os agrimensores dos Caminhos de Ferro — induziu-o a segui-la.
E uma manhã, também casualmente, encontrou o cadáver de Joe Bliss... e o seu esplêndido legado de quase mil dólares.
As rochas, alçadas na planície ébria de sol e de calor, atraíram-no para acampar. Como trazia a casa às costas não precisou de muitos requisitos. Quando tirava os arreios ao cavalo, o animal, absurdamente aterrado, começou a piafar.
Grinter adivinhou logo que cheirava a mortos. Os relinchos confirmaram esta intuitiva impressão.
— Calma, calma, companheiro — recomendou com voz carinhosa. Se está morto, pouco dano poderá causar--nos. Se está vivo os nossos tesouros só lhe provocarão riso. Calma.
Encontrou-o à primeira olhadela. Era evidente que estava morto. Pergaminhado e seco. Sem uma gota de humidade no corpo.
— Bolas! — sorriu o vagabundo. — Tal qual uma múmia. Que louco! Meter-se por este deserto sem cantis nem provisões para o cavalo. Oh! — Grinter inclinou-se e pegou no saco. Hum!
E a partir de então manteve-se silencioso por um bom bocado.
Contou as notas. Novecentos e onze dólares. No saco de lona podia ler-se: «U. S. Mail». Isso inclinou-o a pensar num correio especial. Um «poney express» encarregado de determinada missão importante.
Fosse o que fosse, o dinheiro não tinha marca de propriedade e a legenda avisava, muito claramente, de que o Tesouro dos Estados Unidos pagaria a quantia indicada em cada papel impresso. Ele era o atual possuidor. O resto...
— Hum! Creio que devo enterrá-lo. A herança vale o pequeno esforço.
Enterrou Bliss junto às rochas. Até rezou uma oração improvisada.
Primeiro, tivera o especial cuidado de trocar a sua suja labita de cotim pelo resistente casaco de cabedal propriedade de Bliss. Também se apoderara do cinto, do coldre e do precioso revólver.
— Que maravilha! — exclamou. Eu diria que o fabricaram de prata... Não pesa nem um grama. Leve, suave no gatilho, com esta coronha tão primorosamente adornada por folhas de nácar — olhou para o pequeno montículo funerário onde descansava o seu providencial benfeitor. — Como poderia morrer de sede tendo dinheiro, boas roupas e urna arma assim? Você é um mistério, amigo. Descanse em paz.
Quando declinou a maior intensidade do sol, atou as suas coisas, selou o cavalicoque e retomou o seu caminho. Um sexto sentido prudente aconselhou-o a afastar-se da via férrea.
A trote, bamboleando-se na velha sela que há muito não era cuidada, cavalgou para Oeste, em busca dos férteis campos de Brady, regados pelo riacho do mesmo nome, afluente do vermelho San S aba.
Em Brady entrou seis dias depois — como de costume viajava sem pressas —, completamente ignorante da mensagem telegráfica que Klein e Tommy tinham enviado uma semana antes assim que chegaram à estação de Fredonia Junction.
Daquele entroncamento ferroviário foi expedida ordem telegráfica a todos os xerifes dos próximos condados de Llano, Mason, San S aba, McCulloch, Concho e Menard. O telegrama inicial comunicava:
«Assalto comboio correio. Indivíduo jovem, vestindo jaqueta cabedal, magro, armado revólver prateado folhas nácar rosa».
O telégrafo, passando aviso aos mantenedores da Lei e da Ordem nos seis condados do Texas ampliou o texto com estas poucas mas eloquentes palavras:
«Detenham-no. Vivo ou morto. Delito federal».
O revólver de Lee Dunham trazia sorte declarara Joe Bliss. Talvez. Mas, de momento, só trazia o extermínio dos seus possuidores. Como Lee, quem o trazia ao cinto morria cedo, de uma forma ou de outra.
 

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