Depois de cravar o papel na porta de casa, Hardy Fortune dirigiu-se para o «Nick Saloon», cuja grande tabuleta, erguida sobre a entrada, exibia o péssimo desenho de um revólver azulado com toda a coronha salpicada de gritantes moscas brancas (1). Aquele iria ser o seu refúgio até surgir o imponderável momento.
Pediu uma garrafa de «whisky» e um copo. Não era sua intenção bebê-la toda, é claro; mas estava persuadido de que uns goles serviriam para tonificá-lo e aquecê-lo. Além disso, precisava de justificar a sua presença no estabelecimento, e fazer alguma despesa.
Escolheu uma mesa próxima da janela que dava para a rua. Seria um bom observatório, uma atalaia ideal, para examinar todos quantos por ali passassem. Ninguém escaparia ao seu olhar atento.
Decorreu a tarde. Chegou a noite. Ao aproximar-se a madrugada, Simpson, o dono do «saloon», acercou-se da mesa.
(1) «Nick»: mosca.
— Não costumo fechar — disse —, mas a estas horas é costume já não haver nenhum freguês. Isso permite-me tirar um sono. Você é o último que resta.
— Durma, Simpson — autorizou Hardy.
— Por que não volta para casa?
— Não sabe da notícia? — perguntou ele, por sua vez.
— Claro que sei. Jed Bansson quer curtir-lhe a pele à bala. Também reparei que anda com um revólver, Fortune. Sabe manejá-lo?
— Sim. Essas razões explicam a minha presença aqui. Deixe-me continuar. Faça a sua vida habitual, porque não pretendo incomodá-lo. Os tipos que me procuram devem entrar por este lado da povoação. É a única coisa que pretendo: vê-los entrar.
— Creio que a estas horas já não aparecem por cá.
— Não. É tarde. Mas virão amanhã cedo. Conheço-os. Irão a minha casa para me encontrar. Não suspeitarão de que irei ao encontro deles quando menos o esperem..., escolhendo o lugar mais favorável.
— Um jogo inteligente, hem?
— Uma surpresa. Vá dormir. Eu tratarei de que ninguém lhe leve o estabelecimento.
— E você? Porque não se estica um bocado também?
— Não poderia fechar os olhos. Tenho muitas coisas em que pensar, Simpson. Costuma acontecer isso nos que esperam a morte.
— Bem... — o taberneiro ergueu os ombros. — É lá consigo. Boas-noites, Fortune.
— Adeus, amigo.
Não dormiu, com efeito. Era-lhe impossível descansar. No seu cérebro turbilhonava num oceano de ideias que abarcavam uma gama inquieta de factos passados, presentes e até futuros.
A antiga vida, as aventuras, a vida atual com a plácida existência ao lado de Fay. O porvir — tão incerto agora! — quando a família aumentasse com o bebé...
Perto já do amanhecer, com o corpo dormente pela incómoda posição, e fatigado pelas longas horas vazias, cabeceou um pouco. Sonhos fugazes de minutos.
Cerca das seis da manhã, Simpson começou a tossir com a persistência de um bronquítico. Ouviu-o deambular no interior do estabelecimento e, pouco depois, chegou-lhe ao nariz o inconfundível aroma de café acabado de fazer.
Sem que entre os dois se trocasse uma só palavra, com esse entendimento tácito que se estabelece entre homens de igual ou parecida ideologia, Simpson apareceu minutos depois. Trazia na mão um púcaro de lata de onde se evolava um vapor aromático e tentador. Depositando o recipiente sobre a mesa resmungou:
— Beba agora que está quente. Reconfortá-lo-á. E maldito seja você e o seu lindo problema, Fortune. Sabe o que lhe digo? Também eu não dormi.
— Obrigado.
— Por que me agradeceu?
— Porque você é um tipo curioso de taberneiro, Simpson.
— Oh! Vá para o diabo! — resmungou sem acrimónia. — Vai obrigar-me a chorar de pena quando o matarem.
— Obrigado também pelo café.
Um ronco gutural foi a resposta enquanto se afastava de novo para dentro da loja a fim de iniciar as quotidianas misturas de bebidas.
Hardy bebeu a lentos sorvos o café. Queimava. Mas, como dissera Simpson, era verdadeiramente reconfortante. Ao terminar, enrolou um cigarro e fumou-o com avidez, extraindo fumaças longas e profundas como se fosse o último que lhe permitissem fumar antes da morte.
Não. Não queria pensar em morrer. Fay e o pequeno precisavam dele. Realmente, Bansson escolhera um mau momento para aparecer. Por sorte dispusera de tempo e tinha podido organizar alguns preparativos. Por exemplo a compra do revólver. Wooden, o mesquinho e avaro Wooden, vendera-lhe a arma magnífica.
Sabia distingui-las sem errar e por isso, quando tivera nas mãos o «Colt» de coronha cor-de-rosa, não resistira ao desejo de levá-lo. Como teria ido parar a Eden um revólver daqueles? Pagou vinte e cinco dólares por ele, incluindo o coldre e duas caixas de balas. Valia a pena. Era um revólver que lhe recordava Lee Dunham, um pistoleiro rapidíssimo dos seus tempos passados. Uma imitação, sem dúvida, mas esmeradíssima! Equilibrado e leve como uma pluma.
Havia sol na rua. Infiltrava-se pelas gretas do madeiramento e por baixo das imóveis portas de vaivém. A manhã, lentamente, ia tomando corpo. Os homens que queriam matá-lo deviam encontrar-se já muito próximo de Eden. Talvez a descer a meseta.
Só para verificar que se encontrava em forma moveu a mão direita num gesto rápido.
Foi fulminante e assombroso. O longo «Colt» apareceu na sua mão direita, enquanto o polegar erguia o percutor e o indicador pousava, acariciante, no gatilho. Pronto para disparar.
— Não está mal — mastigou Simpson lá de dentro.
— Você devia ter sido muito rápido..., antes da maré o arrojar à praia de Eden.
— Fui — respondeu Hardy sem petulância. — E espero poder exibir hoje um pouco da antiga agilidade.
— Não gostaria de provocá-lo.
— Mas eles sim... porque são quatro.
Fez girar o «Colt» pelo guarda-mato, baixou o percutor e devolveu a arma ao coldre, sem olhar, automaticamente. Urna exibição de malabarista.
Continuava em forma. A mão obedecia com prontidão às ordens do cérebro. O revólver parecia animado de vida própria.
Então — foi nessa altura, recordá-lo-ia sempre o «chopclop» de cascos de cavalo espalhou-se pela rua, muito fofo, devido à capa de poeira.
Eram vários os cavaleiros. Não tardariam a passar em frente da janela do «saloon». Hardy, tenso como uma mola, manteve os dedos a roçar a coronha e o olhar aguçado como o de um falcão real. Já ali estavam. Pontuais na sua macabra entrevista. Os Bansson!
Não se enganou. Simpson, com a face rugosa crispada num esgar indefinível, esperava também. O primeiro a passar em frente da janela, levemente inclinado na sela, foi Jed Bansson.
O retângulo do caixilho registava a passagem dos forasteiros como numa nítida visão de antecipação fílmica. Havia muito pó nas suas roupas e barba nas faces. Mas os olhos de Jed Bansson brilhavam com o fulgor fanático dos possessos. A vingança seria para ele um ritual de características pagano-religiosas.
Will, alto e despenteado, balanceava-se junto do irmão! Segurava as rédeas com a mão direita, enquanto a esquerda, a sua arrepiante garra de «saque» fulgurante, descansava sobre a coronha do revólver. O canhoto seria um inimigo perigoso. Convinha deixá-lo fora do combate rapidamente. Talvez primeiro do que todos os outros.
Buck Regan cavalgava deitado para trás, como recostando-se na montada. Trazia o chapéu de abas reviradas para os olhos, o lenço suado enrolado ao pescoço e a boca cruel torcida num sorriso canalha.
Por fim, fechando a marcha, vinha Pretty. As luvas de fina pele protegiam-lhe as mãos cuidadíssimas, delicadas. Apesar do tempo decorrido, continuava a manter o seu aspeto enfermiço de ex-jogador. Ganhara muita fama de batoteiro nos tugúrios do Arizona nos seus tempos passados. Vestia casaca cinzenta e colete. As suas botas, além disso, eram as mais limpas do grupo. Apesar da barba e do ar fatigado, destacava-se poderosamente porque a elegância nele era tão natural como as pestanas nas pálpebras.
— São eles? — murmurou Simpson assim que passaram rua abaixo.
— Sim.
— Quatro tipos de perigosa catadura, amigo. Vai precisar de sorte.
— Espero tê-la.
— E agora... que vai acontecer?
— De momento, nada. Irão a minha casa. Lerão a nota que deixei cravada na porta... e correrão para a praça. Eu estarei à espera deles.
— O armazém de Strafford seria um bom lugar para os esperar.
— Certo. Penso entrincheirar-me aí. Poderei fugir pela rua lateral se as coisas se puserem feias.
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— Creio que é o que vai acontecer.
— Eu também —. Hardy afastou a cadeira para trás e depositou uma moeda de cinco dólares ao lado da meia garrafa de «Jhonny Walker». — Adeus, Simpson.
— Se os vencer — resmoneou o taberneiro — conservarei a moeda como recordação de um valente. Se morder o pó... Bom. Também a conservarei em memória de um valente... morto de botas calçadas.
Hardy despediu-se.
— Adeus, amigo.
Hardy Fortune saiu do «Nick Saloon» e andou, colado às fachadas das casas, rumo à praça central de Eden.
Longe, perdendo-se na volta de Main Street, os quatro cavaleiros recortavam-se contra o fundo azul do céu. Uma nuvenzinha de poeira fina e doirada, erguida pelo martelar compassado dos cascos ferrados, flutuava atrás deles. O sol filtrava-a com os seus raios ainda débeis, e 'por isso parecia tão doirada como o próprio oiro.
Na rua, nas janelas e nos alpendres não se via vivalma. Ninguém. O condenado à morte continuava só. Totalmente abandonado às suas forças. Ia dar-se a bata-lha numa povoação momentaneamente fantasma.
Junto ao alpendre do «Strafford General Store», Hardy deteve-se e deitou uma olhadela às cápsulas alojadas no cilindro do revólver. A partir de então, a vida e o futuro de Fay — dependeriam do revólver e da mão que o manobrasse. Sentiu-se completamente tranquilo ao verificar que ambos os fatores continuavam em perfeita ordem.
Faltava pouco para continuar a luta.
Enquanto ele examinava a arma, quatro cavaleiros acabavam de parar os cavalos diante da casa dos Fortune. Cravado na porta, havia um papel. Nele, com letra clara, podia ler-se.
«Espero-os na praça. Há lá mais espaço para morrer. Em casa não está ninguém. Lamento transtornar-te o plano, 7ed».
Os olhos dos quatro mantinham-se fixos na nota como fascinados pela raivosa brancura em contraste com o escuro da madeira. Não era senão um papel. Só um papel. Mas a eles causava-lhes o efeito de uma bofetada em pleno rosto.
Conservavam a primitiva posição, um tanto lânguida, de indiscutível superioridade. Por fim, trocista, Regan comentou:
— Ainda é esperto, Jed. Adivinhou as tuas intenções. Apressou-se a pôr a mulher fora do alcance das nossas garras.
— Não tem graça — rosnou Jed Bansson. — Nenhuma.
— Bem. Então a gente não se ri.
— Dantes gostava de lutar cara a cara como os homens — acrescentou Jed. Mas talvez o casamento com essa boneca o tenha modificado. Andem com cuidado. Talvez nos espere na praça... com um rifle a postos.
— Não vi lá ninguém quando passámos — observou o irmão Will. — Ter-lhe-ia sido facílimo derrubar-nos. Pelo menos a metade de nós.
— Hardy não é um cobarde — disse Pretty. — Consta-me.
— Nem nós tão-pouco — resumiu Jed. — Meia volta. Vamos à praça.
— Um momento — pediu Buck Regan.
— Que mosca te mordeu?
— Por que não bebemos um trago primeiro? Estou morto de sede. À entrada da povoação vi um «saloon»... e a demora pô-lo-ia nervoso.
— A nós também. É esse o mal da sugestão. Não digas loucuras, Buck. O importante é terminar com este assunto de uma vez. Tenho interesse em partir para Sterling City quanto antes. Já sabem porquê.
— Bem, Jed. Tu mandas.
— Pois, em marcha. Esmagaremos o Fortune e toca a andar. Esta terra tão silenciosa é-me indigesta como uma refeição de chumbo.
Hardy, recostado num dos postes que sustinham o alpendre do armazém Strafford, viu chegar os quatro cavaleiros e um músculo da sua cara, de súbito, crispou--lhe as faces. O seu aspeto, no entanto, não deixava transparecer o amálgama de emoções que sentia. Superficialmente parecia de gelo. Só aprofundando-lhe o espírito se poderia apreciar os sentimentos que o embargavam.
Esperou, afetando tranquilidade, que se achassem separados por uns vinte metros.
A sombra do alpendre, em meio da praça inundada de sol, proporcionava-lhe um magnífico escudo. Além disso, em virtude de o edifício se orientar para ocidente, os raios do astro rei davam nos rostos dos seus inimigos. Tinha estudado com calma todos os pormenores. Para que um homem só se defronte com quatro tem de ter a cabeça bem equilibrada... ou fora dos eixos. Hardy julgava que estava em perfeito juízo. Os super-homens só existem no papel, não na realidade. Confiava nesse fator quase tanto como o revólver e na rapidez da mão. Deus e a sorte fariam o resto.
Will Bansson, que começava a evidenciar certa impaciência, foi o primeiro a descobri-lo. Não pôde evitar um estremecimento que lhe percorreu as costas e lhe arrepiou a mão esquerda. Quase ao mesmo tempo, os restantes viram-no também... e respiraram aliviados.
Não tinha rifle. Um revólver metido num coldre baixo e a peito descoberto. Face a face. Muito característico do antigo Hardy Fortune. Que louco!
— Olá, porco delator! — saudou Jed Bansson, puxando as rédeas até parar o cavalo, pronunciando cada palavra com imenso ódio. — Aqui nos tens.
— Sim — replicou Hardy. — Todos em plena reunião. Quem começa primeiro? Não percamos tempo com palavreado.
Falavam sem elevar a voz, tensos, vigilantes, perfurando-se com os olhos.
O silêncio que imperava na praça — e em toda a povoação — era tão denso que teria sido possível ouvir até o silvo das respirações a escapar das bocas apertadas.
— Tens razão — admitiu Jed, soltando as rédeas. — Entre nós está tudo dito. Viemos matar-te.
— Que esperam? Faz o primeiro movimento, Jed. Por minha parte estou pronto.
O mesmo de sempre: frio, tranquilo, como um bloco de granito animado de vida e repleto de músculos ágeis.
Não conseguiram apanhá-lo desprevenido. Nem sequer assustado. Hardy Fortune parecia tão seguro de si mesmo como cinco anos atrás, quando os xerifes dos territórios fronteiriços o consideravam o mais perigoso elemento do bando.
As suas pupilas gélidas, aguçadas, olhavam alternativamente para cada um dos quatro. Devia submetê-los a estreita vigilância porque — sabia-o bem! — de qualquer deles poderia partir o primeiro tiro. Mantinha o braço caído, como lasso, e a mão aberta, a duas polegadas da coronha cor-de-rosa.
Jed não ignorava que um simples gesto, por fugaz que fosse, bastaria para marcar o início do duelo. Hardy sopesou meticulosa e inteligentemente as possibilidades á favor.
Eles estavam a meio da praça, desprotegidos e montados a cavalo. Não lhes permitiria desmontar. Quanto a ele, continuava ao amparo do alpendre, com os pés firmemente assentes na terra, pendente de um mínimo gesto para «sacar».
— Estou pronto — repetiu sibilante. — Vamos, Jed. A tua imobilidade obriga-me a pensar mal.
Jed gritou:
— Pois não penses.
Cuspiu as palavras furiosamente. Enquanto falava, projetou ambas as mãos para o bordo dianteiro da sela e pulou para trás. Caiu limpamente no chão, atrás do cavalo.
O seu salto, tal como Hardy previa, assinalou a loucura da morte tal como um clarim militar tocando à carga com sons estridentes. Pretty e Buck Regan, aturdidos pela vertigem da velocidade, tentaram imitar-lhe o exemplo. Só Will Bansson, velocíssimo, pensou primeiro em matar e depois em procurar abrigo.
A mão esquerda do «alturas» voou para o coldre enquanto Hardy, torcendo o corpo, movia rapidamente o braço caído.
O revólver de Lee Dunham longo e fulgurante pareceu surgir-lhe da mão por artes de magia. Um «saque» maravilhoso! Quase sem apontar, com inaudita facilidade, a boca de aço cuspiu um jato de fogo.
Will, interrompendo o movimento, encolheu-se na sela. Era tão alto que pareceu dobrar-se em harmónio. Os dedos que se aferravam à coronha resvalaram por ela e tentaram, atabalhoadamente, encontrar apoio. Foi inútil, porque a bem dirigida bala de Hardy se incrustou no seu coração, atirando-o rudemente para o chão poeirento. Caiu de costas... e não se moveu mais!
— Will! — uivou Bansson lamentosamente.
— Cobre-te! — avisou o palidíssimo Pretty. — Vai--nos matar!
O remoinho causado pelos espavoridos cavalos impediu Hardy de apontar devidamente. Um turbilhão de pó, arrancado da terra pelos cascos, misturou-se com os prateados fogachos de pólvora recém-disparada. Buck Regan, parapeitando-se neles, fez fogo contra o solitário lutador. Hardy tinha saltado para trás da proteção do poste... que se estilhaçou com ruído ao receber o projétil!
Girando o pulso, com o rosto endurecido e tenaz, Hardy replicou a chumbo com chumbo. Na sua mente, soando como um sino de esperança, uma voz entusiasmada recordava-lhe: «Já caiu o Will! Agora são três!».
Disparou por duas vezes sobre Buck. A primeira bala saiu baixa, e traçou uma linha de pó aos pés do patife, que corria para abrigar-se ao amparo de um alpendre.
A segunda, violentamente, arrancou-lhe o estropeado chapéu da cabeça...
Mas não que fosse um tiro ao acaso ou falhado. Antes de lhe fazer voar o «stetson»... atravessou-lhe selvaticamente o crânio!
Hardy, ofegante, variou de posição. Sem saber porquê, brotando do seu subconsciente, chegou-lhe o pensamento poderoso de que Buck já não assassinaria mais crianças, nem sequer por acidente. O coração batia-lhe doidamente no peito, e no cérebro, em vez do pensamento, a voz vibrante da esperança: «Outro de menos! Só restam dois!».
Os cavalos, espavoridos pelo silvo das balas e pelo eco dos tiros, davam inverosímeis saltos de carneiro. Quando o primeiro deles, relinchando e escoiceando sem cessar, largou a correr para um extremo da praça, os demais seguiam-no a galope.
Isso arejou um pouco a situação. No largo só ficou a massa de poeira... e os corpos inertes, imóveis, de Will Bansson e Buck Regan.
Uma bala zumbidora, voraz, raspou a fachada do armazém de Strafford. O atirador disparava de má posição. Outro fez saltar os vidros da montra. Um terceiro, de ricochete, cravou-se a meio palmo do rosto de Hardy que deu um pulo.
Aos saltos, os nervos tensos, correu para a esquina. A cortina de pó, pousando suavemente, impedia que os inimigos o localizassem. Sabia o que Jed pensava em tais momentos. Se sempre fora cruel, a morte de Will tinha-o convertido numa fera carniceira, simplesmente implacável.
Antes de chegar à esquina, três ou quatro projéteis disparados precipitadamente e sem dúvida com o objetivo de não o deixar escapar do armazém, obrigaram-no a retroceder. A saída fechada! Bloqueada a fuga! Encostou--se ao umbral da porta. Viu Pretty com uma arma em cada mão, hostilizando-o atrás do precário parapeito de um barril para recolher água da chuva.
Ergueu o percutor, girou o cilindro, e sem apontar, disparou um tiro. A bala esmagou-se contra uma das cintas metálicas do barril e saiu projetada para cima, gemendo tão agudamente como uma fantástica alma penada. Pretty acocorou-se um pouco mais. Mas não deixou de fazer fogo.
Não via Jed. Não podia localizá-lo. A impotência corroía-lhe a razão. Conhecia-o o suficiente para esperar qualquer coisa má. Pretty, obstinado, não dava repouso aos gatilhos. Um chumbo mordeu a madeira do umbral e arrancou-lhe um grande bocado. Hardy, de lábios apertados e duros olhos, voltou a fazer fogo da altura do quadril.
Tinha descoberto o braço armado só o necessário para disparar. Velozmente, escondeu-se de novo. O pó dançava preguiçosamente a meio da praça, descendo para o chão. Mas nem por isso aumentava a visibilidade, já que agora as cortinas estavam integradas por densas espirais de pólvora resplandecente ao sol.
Pretty moveu-se atrás do barril. Por espaço de um segundo viu a ponta de um ombro e o revolutear das abas da casaca. Hardy ia disparar, certo de que o derrubaria, mas uma força superior a si próprio deteve-o. Porquê?
Fez um rápido recuo mental. Dir-se-ia que o tempo não passara, porque atuava tal qual como nos agitados tempos de outrora.
Um tiro para derrubar Will. Dois projéteis, um alto e outro baixo para acabar com Buck Regan. Contra o barril também disparara um par de chumbos. Assim, pois, em números infalíveis restava-lhe uma cápsula no cilindro... do seu eficacíssimo «Colt»!
Uma cápsula.
O suor frio, repentino, perlou-lhe a fronte. E ainda havia dois homens à sua frente. Impossível eliminá-los simultaneamente.
Pensou em seguida, com lucidez, que devia recarregar o revólver. Outro pedaço de madeira foi arrancado pelo cruel mordisco do chumbo. E tinham-no seguro, imobilizado no vão da porta. Agora, via claramente a manobra de Jed Bansson!
Uma espera paciente, dominando os nervos e a ânsia assassina de aniquilá-lo... para se converter em senhor absoluto da situação! Se lhe desse para atacar, secundado pelo fogo protetor de Pretty... não haveria escapatória!
Acionou a mola e o cano do «Colt» rodou, deixando a boca de fogo apontada para o chão. Viu o cilindro onde fulguravam os cartuchos. Cinco fulminantes picados pela agulha do percutor e um — um só! — com o cobre intacto.
Moveu a mão esquerda para extrair um cartucho novo da cartucheira repleta. Suava copiosamente. Não lhe dariam tempo para recarregar! Os dedos tremiam — que sensação desconhecida! — dominados pela impaciência febril.
Em meio daquele frenesim de loucura, a voz rouca de Jed Bansson, surgindo do edifício lateral ao de Strafford, gritou em tom estridente:
— Vamos, Pretty, já é nosso! Só lhe resta uma bala!
Hardy, com a unha, expulsou uma das cápsulas servidas e introduziu depois a bala recém-tirada do cinto. Teve o máximo cuidado em que fosse na câmara seguinte à posição de tiro. Realizou a operação com tanta pressa que a unha se partiu.
O revólver estava outra vez carregado com duas balas.
Não importava. Quase sentiu vontade de rir. Fechou o «Colt» e aperrou-o rudemente. Jed voltava a enganar-se com ele. Não lhe restava só uma bala. Já havias duas no tambor.
Era a sua salvação.
Voltando-se furiosamente, a mão colada à coxa e sobressaindo da mão o longo cano do «Colt», o solitário de Eden viu Jed Bansson saltar para o alpendre. Sete ou oito metros separavam-nos!
Hardy sabia agora que tinha de lutar ferozmente para salvar a sua vida e o futuro de Fay.
Pelo canto do olho, instintivamente, observou o movimento cauteloso de Pretty... que também deixara o pançudo barril! Não lhe foi possível captar mais nada. Tinha chegado o momento de arriscar a pele, sem paliativos! Vivo ou morto. Este seria o fim da luta!
Jed tinha-o encurralado.
Bang! Bang! Os revólveres de Jed, atropelando-se, dispararam daquela tão curta distância. Dir-se-ia que era impossível falhar. Que até urna criança acertaria no meio do alvo! Mas Hardy, dobrando um joelho, abaixou-se com a velocidade do raio. Um encolher tão rápido que era impossível segui-lo com a vista.
Jed falhara o tiro.
A primeira bala, zumbindo, passou junto da orelha direita de Hardy, arremessando-lhe em pleno rosto um sopro de ar tórrido. A segunda, cravando-se profundamente, atravessou-lhe o ombro esquerdo — ia dirigida ao seu coração! — empurrando-o contra a fachada do armazém-geral. Dali, mordendo os lábios para não soltar gritos de dor, premiu o gatilho e o revólver de Lee Dunham vomitou uma língua de fogo.
Jed Bansson que sorria feliz, cambaleou como se tivesse bebido.
Não caiu no chão. O sorriso ficou estereotipado no rosto, gelando-se, adquirindo a inexpressividade grotesca de uma careta estúpida. Mas não caiu. Continuou firme. De pé. Olhando com olhos de cadáver um ponto tão indefinível como distante". Mas já tinha perdido a vida.
Hardy sabia que no tambor só restava uma bala. A última! Uma bala vulgar. Um cilíndrico bocado de chumbo endurecido, de que, na realidade, tudo dependia.
Já só restava um.
Pretty, do outro lado da praça, ergueu os percutores e apontou seguro de êxito. Hardy não se incomodou a afinar a pontaria, porque a sua confiança na precisão do extraordinário revólver era ilimitada. Fez fogo. O ombro doía-lhe enormemente; mas ainda teve foças para sorrir ao sentir na mão o coice da coronha, pois estava certo de ter acertado no alvo.
O ex-jogador do Arizona vacilou. Na fronte, nítido, acabava de surgir-lhe um orifício negro. Mesmo ao meio da testa!
Um bom tiro!
Deixou cair os braços, colando-os aos lados do corpo.
Talvez por uma contração digital ambos os revólveres se dispararam ao mesmo tempo, erguendo duas nuvenzinhas de pó a seus pés, junto. às botas lustrosas. Depois, como um pião, Pretty rodou sobre si mesmo, redondamente. E caiu de borco. Já nunca mais pesaria sobre Hardy a ideia da vingança.
A respiração ofegante de Hardy Fortune, atroadora após o silêncio espesso que se formara ao cessarem as infernais detonações, enchia o alpendre do armazém. Uma visão desoladora, um espetáculo dantesco, oferecia-se em torno dele.
Era o único sobrevivente.
Violência pura. Violência no mais alto grau do primitivismo. Violência do Texas e como só no Texas pode acontecer. Acabara a luta. Fim do duelo. Já podia respirar tranquilo e sentir o alívio de ter dissipado, até à última sombra sinistra, a nuvem que pendia sobre a sua errante existência de homem regenerado.
Lentamente, com esforço, começou a erguer-se. O seu olhar tropeçou com o cadáver de Jed Bansson. Ainda mantinha os olhos abertos e fixo, absurdo, o sorriso. Desfalecera sobre o corrimão do varandim que circundava o alpendre de Strafford. Agora, silenciosamente, o corpo sem vida ia resvalando para o chão. O choque amortecido, incolor, rubricou a queda final.
Hardy apanhou o chapéu. Olhou a mão que segurava o revólver. Formoso, longo, perfeito. Fê-lo rodopiar, agilíssimo e ia metê-lo no coldre. Mas não completou o movimento. Nunca mais precisaria de um revólver para defender a sua vida.
— Bem, Fay — murmurou ternamente. — Sei cumprir as minhas promessas... eterna paz para os Fortune... e nada de violências. Tudo terminou, acabaram-se as mortes.
Num gesto olímpico, gesto de renúncia que encerrava algo de desportivo, arremessou o «Colt», para a praça. Ali ficou, meio enterrado na poeira, refletindo o sol matinal com cintilações de um rosado sangrento.
Os habitantes de Eden saíam das casas. Eram como ratos, abandonando as tocas ao desaparecer o gato. Olhavam para o homem solitário, manchado de sangue, que caminhava com passo firme para o outro lado da povoação. Olhavam-no com admiração e horror. Hardy Fortune não via nada nem ninguém.
Sabia que uma mulher, a sua, o estava aguardando com indescritível impaciência em casa do doutor Calbert. Sabia que tinha chorado e rezado. Para ali dirigiu os seus passos. O sol, subindo alto no novo dia, marcava uma etapa de futuro e luz na existência daquele valente com passado negro.