sábado, 18 de fevereiro de 2017

BIS130. Epílogo

O forasteiro vinha do deserto. Vinha cheio de pó, sujidade e cansaço. O cavalo manquejava de uma pata. Eden significava para ele uma infinidade de venturas, mas, sobretudo, significava água, alimentos e descanso.
À entrada da povoação viu o pequeno que lhe apontava o revólver. Impressionou-o verificar que não se tratava de um brinquedo. Era uma arma de fogo verdadeira. Um revólver autêntico! Como teria chegado às mãos do pequeno? Esticou as rédeas e dirigiu-lhe um sorriso fatigado.
— Queres matar-me, pequeno? Olha que vais para a cadeia.
— Não — replicou o garoto. — É a brincar. Está descarregado.
O forasteiro perguntou:
— É teu?
O pequeno respondeu:
— Oh, sim! Achei-o.
O cavaleiro perguntou:
— Onde?
O pequeno explicou:
— Na praça. Houve muitos tiros, sabe? Morreram quatro homens e Hardy Fortune está ferido. Uma coisa de nada, senhor. Hardy Fortune é de ferro... A praça estava cheia de gente quando cheguei. Diriam que precisavam de voluntários para enterrar os cadáveres... Ninguém reparou no revólver. É bonito, não é?
-- Muito. Deixas-me pegar nele?
O pequeno concordou:
— Sim, senhor.
O forasteiro examinou a joia mecânica e a artística coronha. Entusiasmado, com um gesto maquinal, armou-o, apontou para longe e disparou contra um inimigo imaginário. Não houve estampido; mas maravilhou-o a sua agilíssima e portentosa facilidade de manejo.
Depois, com certa amargura, poisou a mão no seu coldre vazio. Ia desarmado. Tivera de jogar ao «poker» o revólver para comprar provisões..., e a maldita da sorte levara-o a perder. Passara fome e ficara sem recursos.
— Vendes-mo? — inquiriu de súbito o forasteiro.
— Bem...
— Dou-te um bom preço por ele. Tão estupendo como um amuleto. Olha — tirou a moeda de prata que constituía todo o seu património e mostrou-a ao pequeno. — É um peso mexicano. Circulam do outro lado da raia. Todo de prata. Guardava-o como recordação, porque traz sorte... Mas...
O pequeno perguntou:
— Traz sorte?
— Claro.
— Eu gosto do revólver, senhor...
— Naturalmente. É bonito, mas... que vais fazer com uma arma destas? Só poderá trazer-te desgostos e conflitos. Sé os homens da povoação to veem roubam-to... Mas o peso não. Podes comprar muitas coisas...
— Acho que tem muita razão. Vendo-lhe, senhor.
O forasteiro estendeu-lhe a moeda. Homem e garoto sorriram. Mentalmente, ambos estavam convencidos de ter realizado um ótimo negócio.
O cavaleiro meteu o «Colt» no coldre. Moveu as rédeas e seguiu o seu caminho, penetrando em Eden, enquanto o pequeno se extasiava a contemplar o prateado peso. O forasteiro tinha queimado os últimos recursos, mas agora possuía um revólver. Que curioso! Quanta força e confiança proporcionam as armas de fogo!
Talvez começasse em breve outra aventura protagonizada pelo fatídico «seis tiros» de Lee Dunham. Talvez.
Aquele revólver tinha personalidade.
No Oeste, uma arma é uma personalidade importantíssima. Sobretudo, tratando-se da arma de um pistoleiro famoso como o que morrera cosido de balas na melhor taberna de Winchell...
F I M
 

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

BIS130. Cap X. Violência

Depois de cravar o papel na porta de casa, Hardy Fortune dirigiu-se para o «Nick Saloon», cuja grande tabuleta, erguida sobre a entrada, exibia o péssimo desenho de um revólver azulado com toda a coronha salpicada de gritantes moscas brancas (1). Aquele iria ser o seu refúgio até surgir o imponderável momento.
Pediu uma garrafa de «whisky» e um copo. Não era sua intenção bebê-la toda, é claro; mas estava persuadido de que uns goles serviriam para tonificá-lo e aquecê-lo. Além disso, precisava de justificar a sua presença no estabelecimento, e fazer alguma despesa.
Escolheu uma mesa próxima da janela que dava para a rua. Seria um bom observatório, uma atalaia ideal, para examinar todos quantos por ali passassem. Ninguém escaparia ao seu olhar atento.
Decorreu a tarde. Chegou a noite. Ao aproximar-se a madrugada, Simpson, o dono do «saloon», acercou-se da mesa.
(1) «Nick»: mosca.
— Não costumo fechar — disse —, mas a estas horas é costume já não haver nenhum freguês. Isso permite-me tirar um sono. Você é o último que resta.
— Durma, Simpson — autorizou Hardy.
— Por que não volta para casa?
— Não sabe da notícia? — perguntou ele, por sua vez.
— Claro que sei. Jed Bansson quer curtir-lhe a pele à bala. Também reparei que anda com um revólver, Fortune. Sabe manejá-lo?
— Sim. Essas razões explicam a minha presença aqui. Deixe-me continuar. Faça a sua vida habitual, porque não pretendo incomodá-lo. Os tipos que me procuram devem entrar por este lado da povoação. É a única coisa que pretendo: vê-los entrar.
— Creio que a estas horas já não aparecem por cá.
— Não. É tarde. Mas virão amanhã cedo. Conheço-os. Irão a minha casa para me encontrar. Não suspeitarão de que irei ao encontro deles quando menos o esperem..., escolhendo o lugar mais favorável.
— Um jogo inteligente, hem?
— Uma surpresa. Vá dormir. Eu tratarei de que ninguém lhe leve o estabelecimento.
— E você? Porque não se estica um bocado também?
— Não poderia fechar os olhos. Tenho muitas coisas em que pensar, Simpson. Costuma acontecer isso nos que esperam a morte.
— Bem... — o taberneiro ergueu os ombros. — É lá consigo. Boas-noites, Fortune.
— Adeus, amigo.
Não dormiu, com efeito. Era-lhe impossível descansar. No seu cérebro turbilhonava num oceano de ideias que abarcavam uma gama inquieta de factos passados, presentes e até futuros.
A antiga vida, as aventuras, a vida atual com a plácida existência ao lado de Fay. O porvir — tão incerto agora! — quando a família aumentasse com o bebé...
Perto já do amanhecer, com o corpo dormente pela incómoda posição, e fatigado pelas longas horas vazias, cabeceou um pouco. Sonhos fugazes de minutos.
Cerca das seis da manhã, Simpson começou a tossir com a persistência de um bronquítico. Ouviu-o deambular no interior do estabelecimento e, pouco depois, chegou-lhe ao nariz o inconfundível aroma de café acabado de fazer.
Sem que entre os dois se trocasse uma só palavra, com esse entendimento tácito que se estabelece entre homens de igual ou parecida ideologia, Simpson apareceu minutos depois. Trazia na mão um púcaro de lata de onde se evolava um vapor aromático e tentador. Depositando o recipiente sobre a mesa resmungou:
— Beba agora que está quente. Reconfortá-lo-á. E maldito seja você e o seu lindo problema, Fortune. Sabe o que lhe digo? Também eu não dormi.
— Obrigado.
— Por que me agradeceu?
— Porque você é um tipo curioso de taberneiro, Simpson.
— Oh! Vá para o diabo! — resmungou sem acrimónia. — Vai obrigar-me a chorar de pena quando o matarem.
— Obrigado também pelo café.
Um ronco gutural foi a resposta enquanto se afastava de novo para dentro da loja a fim de iniciar as quotidianas misturas de bebidas.
Hardy bebeu a lentos sorvos o café. Queimava. Mas, como dissera Simpson, era verdadeiramente reconfortante. Ao terminar, enrolou um cigarro e fumou-o com avidez, extraindo fumaças longas e profundas como se fosse o último que lhe permitissem fumar antes da morte.
Não. Não queria pensar em morrer. Fay e o pequeno precisavam dele. Realmente, Bansson escolhera um mau momento para aparecer. Por sorte dispusera de tempo e tinha podido organizar alguns preparativos. Por exemplo a compra do revólver. Wooden, o mesquinho e avaro Wooden, vendera-lhe a arma magnífica.
Sabia distingui-las sem errar e por isso, quando tivera nas mãos o «Colt» de coronha cor-de-rosa, não resistira ao desejo de levá-lo. Como teria ido parar a Eden um revólver daqueles? Pagou vinte e cinco dólares por ele, incluindo o coldre e duas caixas de balas. Valia a pena. Era um revólver que lhe recordava Lee Dunham, um pistoleiro rapidíssimo dos seus tempos passados. Uma imitação, sem dúvida, mas esmeradíssima! Equilibrado e leve como uma pluma.
Havia sol na rua. Infiltrava-se pelas gretas do madeiramento e por baixo das imóveis portas de vaivém. A manhã, lentamente, ia tomando corpo. Os homens que queriam matá-lo deviam encontrar-se já muito próximo de Eden. Talvez a descer a meseta.
Só para verificar que se encontrava em forma moveu a mão direita num gesto rápido.
Foi fulminante e assombroso. O longo «Colt» apareceu na sua mão direita, enquanto o polegar erguia o percutor e o indicador pousava, acariciante, no gatilho. Pronto para disparar.
— Não está mal — mastigou Simpson lá de dentro.
— Você devia ter sido muito rápido..., antes da maré o arrojar à praia de Eden.
— Fui — respondeu Hardy sem petulância. — E espero poder exibir hoje um pouco da antiga agilidade.
— Não gostaria de provocá-lo.
— Mas eles sim... porque são quatro.
Fez girar o «Colt» pelo guarda-mato, baixou o percutor e devolveu a arma ao coldre, sem olhar, automaticamente. Urna exibição de malabarista.
Continuava em forma. A mão obedecia com prontidão às ordens do cérebro. O revólver parecia animado de vida própria.
Então — foi nessa altura, recordá-lo-ia sempre o «chopclop» de cascos de cavalo espalhou-se pela rua, muito fofo, devido à capa de poeira.
Eram vários os cavaleiros. Não tardariam a passar em frente da janela do «saloon». Hardy, tenso como uma mola, manteve os dedos a roçar a coronha e o olhar aguçado como o de um falcão real. Já ali estavam. Pontuais na sua macabra entrevista. Os Bansson!
Não se enganou. Simpson, com a face rugosa crispada num esgar indefinível, esperava também. O primeiro a passar em frente da janela, levemente inclinado na sela, foi Jed Bansson.
O retângulo do caixilho registava a passagem dos forasteiros como numa nítida visão de antecipação fílmica. Havia muito pó nas suas roupas e barba nas faces. Mas os olhos de Jed Bansson brilhavam com o fulgor fanático dos possessos. A vingança seria para ele um ritual de características pagano-religiosas.
Will, alto e despenteado, balanceava-se junto do irmão! Segurava as rédeas com a mão direita, enquanto a esquerda, a sua arrepiante garra de «saque» fulgurante, descansava sobre a coronha do revólver. O canhoto seria um inimigo perigoso. Convinha deixá-lo fora do combate rapidamente. Talvez primeiro do que todos os outros.
Buck Regan cavalgava deitado para trás, como recostando-se na montada. Trazia o chapéu de abas reviradas para os olhos, o lenço suado enrolado ao pescoço e a boca cruel torcida num sorriso canalha.
Por fim, fechando a marcha, vinha Pretty. As luvas de fina pele protegiam-lhe as mãos cuidadíssimas, delicadas. Apesar do tempo decorrido, continuava a manter o seu aspeto enfermiço de ex-jogador. Ganhara muita fama de batoteiro nos tugúrios do Arizona nos seus tempos passados. Vestia casaca cinzenta e colete. As suas botas, além disso, eram as mais limpas do grupo. Apesar da barba e do ar fatigado, destacava-se poderosamente porque a elegância nele era tão natural como as pestanas nas pálpebras.
— São eles? — murmurou Simpson assim que passaram rua abaixo.
— Sim.
— Quatro tipos de perigosa catadura, amigo. Vai precisar de sorte.
— Espero tê-la.
— E agora... que vai acontecer?
— De momento, nada. Irão a minha casa. Lerão a nota que deixei cravada na porta... e correrão para a praça. Eu estarei à espera deles.
— O armazém de Strafford seria um bom lugar para os esperar.
— Certo. Penso entrincheirar-me aí. Poderei fugir pela rua lateral se as coisas se puserem feias.
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— Creio que é o que vai acontecer.
— Eu também —. Hardy afastou a cadeira para trás e depositou uma moeda de cinco dólares ao lado da meia garrafa de «Jhonny Walker». — Adeus, Simpson.
— Se os vencer — resmoneou o taberneiro — conservarei a moeda como recordação de um valente. Se morder o pó... Bom. Também a conservarei em memória de um valente... morto de botas calçadas.
Hardy despediu-se.
— Adeus, amigo.
Hardy Fortune saiu do «Nick Saloon» e andou, colado às fachadas das casas, rumo à praça central de Eden.
Longe, perdendo-se na volta de Main Street, os quatro cavaleiros recortavam-se contra o fundo azul do céu. Uma nuvenzinha de poeira fina e doirada, erguida pelo martelar compassado dos cascos ferrados, flutuava atrás deles. O sol filtrava-a com os seus raios ainda débeis, e 'por isso parecia tão doirada como o próprio oiro.
Na rua, nas janelas e nos alpendres não se via vivalma. Ninguém. O condenado à morte continuava só. Totalmente abandonado às suas forças. Ia dar-se a bata-lha numa povoação momentaneamente fantasma.
Junto ao alpendre do «Strafford General Store», Hardy deteve-se e deitou uma olhadela às cápsulas alojadas no cilindro do revólver. A partir de então, a vida e o futuro de Fay — dependeriam do revólver e da mão que o manobrasse. Sentiu-se completamente tranquilo ao verificar que ambos os fatores continuavam em perfeita ordem.
Faltava pouco para continuar a luta.
Enquanto ele examinava a arma, quatro cavaleiros acabavam de parar os cavalos diante da casa dos Fortune. Cravado na porta, havia um papel. Nele, com letra clara, podia ler-se.
«Espero-os na praça. Há lá mais espaço para morrer. Em casa não está ninguém. Lamento transtornar-te o plano, 7ed».
Os olhos dos quatro mantinham-se fixos na nota como fascinados pela raivosa brancura em contraste com o escuro da madeira. Não era senão um papel. Só um papel. Mas a eles causava-lhes o efeito de uma bofetada em pleno rosto.
Conservavam a primitiva posição, um tanto lânguida, de indiscutível superioridade. Por fim, trocista, Regan comentou:
— Ainda é esperto, Jed. Adivinhou as tuas intenções. Apressou-se a pôr a mulher fora do alcance das nossas garras.
— Não tem graça — rosnou Jed Bansson. — Nenhuma.
— Bem. Então a gente não se ri.
— Dantes gostava de lutar cara a cara como os homens — acrescentou Jed. Mas talvez o casamento com essa boneca o tenha modificado. Andem com cuidado. Talvez nos espere na praça... com um rifle a postos.
— Não vi lá ninguém quando passámos — observou o irmão Will. — Ter-lhe-ia sido facílimo derrubar-nos. Pelo menos a metade de nós.
— Hardy não é um cobarde — disse Pretty. — Consta-me.
— Nem nós tão-pouco — resumiu Jed. — Meia volta. Vamos à praça.
— Um momento — pediu Buck Regan.
— Que mosca te mordeu?
— Por que não bebemos um trago primeiro? Estou morto de sede. À entrada da povoação vi um «saloon»... e a demora pô-lo-ia nervoso.
— A nós também. É esse o mal da sugestão. Não digas loucuras, Buck. O importante é terminar com este assunto de uma vez. Tenho interesse em partir para Sterling City quanto antes. Já sabem porquê.
— Bem, Jed. Tu mandas.
— Pois, em marcha. Esmagaremos o Fortune e toca a andar. Esta terra tão silenciosa é-me indigesta como uma refeição de chumbo.
Hardy, recostado num dos postes que sustinham o alpendre do armazém Strafford, viu chegar os quatro cavaleiros e um músculo da sua cara, de súbito, crispou--lhe as faces. O seu aspeto, no entanto, não deixava transparecer o amálgama de emoções que sentia. Superficialmente parecia de gelo. Só aprofundando-lhe o espírito se poderia apreciar os sentimentos que o embargavam.
Esperou, afetando tranquilidade, que se achassem separados por uns vinte metros.
A sombra do alpendre, em meio da praça inundada de sol, proporcionava-lhe um magnífico escudo. Além disso, em virtude de o edifício se orientar para ocidente, os raios do astro rei davam nos rostos dos seus inimigos. Tinha estudado com calma todos os pormenores. Para que um homem só se defronte com quatro tem de ter a cabeça bem equilibrada... ou fora dos eixos. Hardy julgava que estava em perfeito juízo. Os super-homens só existem no papel, não na realidade. Confiava nesse fator quase tanto como o revólver e na rapidez da mão. Deus e a sorte fariam o resto.
Will Bansson, que começava a evidenciar certa impaciência, foi o primeiro a descobri-lo. Não pôde evitar um estremecimento que lhe percorreu as costas e lhe arrepiou a mão esquerda. Quase ao mesmo tempo, os restantes viram-no também... e respiraram aliviados.
Não tinha rifle. Um revólver metido num coldre baixo e a peito descoberto. Face a face. Muito característico do antigo Hardy Fortune. Que louco!
— Olá, porco delator! — saudou Jed Bansson, puxando as rédeas até parar o cavalo, pronunciando cada palavra com imenso ódio. — Aqui nos tens.
— Sim — replicou Hardy. — Todos em plena reunião. Quem começa primeiro? Não percamos tempo com palavreado.
Falavam sem elevar a voz, tensos, vigilantes, perfurando-se com os olhos.
O silêncio que imperava na praça — e em toda a povoação — era tão denso que teria sido possível ouvir até o silvo das respirações a escapar das bocas apertadas.
— Tens razão — admitiu Jed, soltando as rédeas. — Entre nós está tudo dito. Viemos matar-te.
— Que esperam? Faz o primeiro movimento, Jed. Por minha parte estou pronto.
O mesmo de sempre: frio, tranquilo, como um bloco de granito animado de vida e repleto de músculos ágeis.
Não conseguiram apanhá-lo desprevenido. Nem sequer assustado. Hardy Fortune parecia tão seguro de si mesmo como cinco anos atrás, quando os xerifes dos territórios fronteiriços o consideravam o mais perigoso elemento do bando.
As suas pupilas gélidas, aguçadas, olhavam alternativamente para cada um dos quatro. Devia submetê-los a estreita vigilância porque — sabia-o bem! — de qualquer deles poderia partir o primeiro tiro. Mantinha o braço caído, como lasso, e a mão aberta, a duas polegadas da coronha cor-de-rosa.
Jed não ignorava que um simples gesto, por fugaz que fosse, bastaria para marcar o início do duelo. Hardy sopesou meticulosa e inteligentemente as possibilidades á favor.
Eles estavam a meio da praça, desprotegidos e montados a cavalo. Não lhes permitiria desmontar. Quanto a ele, continuava ao amparo do alpendre, com os pés firmemente assentes na terra, pendente de um mínimo gesto para «sacar».
— Estou pronto — repetiu sibilante. — Vamos, Jed. A tua imobilidade obriga-me a pensar mal.
Jed gritou:
— Pois não penses.
Cuspiu as palavras furiosamente. Enquanto falava, projetou ambas as mãos para o bordo dianteiro da sela e pulou para trás. Caiu limpamente no chão, atrás do cavalo.
O seu salto, tal como Hardy previa, assinalou a loucura da morte tal como um clarim militar tocando à carga com sons estridentes. Pretty e Buck Regan, aturdidos pela vertigem da velocidade, tentaram imitar-lhe o exemplo. Só Will Bansson, velocíssimo, pensou primeiro em matar e depois em procurar abrigo.
A mão esquerda do «alturas» voou para o coldre enquanto Hardy, torcendo o corpo, movia rapidamente o braço caído.
O revólver de Lee Dunham longo e fulgurante pareceu surgir-lhe da mão por artes de magia. Um «saque» maravilhoso! Quase sem apontar, com inaudita facilidade, a boca de aço cuspiu um jato de fogo.
Will, interrompendo o movimento, encolheu-se na sela. Era tão alto que pareceu dobrar-se em harmónio. Os dedos que se aferravam à coronha resvalaram por ela e tentaram, atabalhoadamente, encontrar apoio. Foi inútil, porque a bem dirigida bala de Hardy se incrustou no seu coração, atirando-o rudemente para o chão poeirento. Caiu de costas... e não se moveu mais!
— Will! — uivou Bansson lamentosamente.
— Cobre-te! — avisou o palidíssimo Pretty. — Vai--nos matar!
O remoinho causado pelos espavoridos cavalos impediu Hardy de apontar devidamente. Um turbilhão de pó, arrancado da terra pelos cascos, misturou-se com os prateados fogachos de pólvora recém-disparada. Buck Regan, parapeitando-se neles, fez fogo contra o solitário lutador. Hardy tinha saltado para trás da proteção do poste... que se estilhaçou com ruído ao receber o projétil!
Girando o pulso, com o rosto endurecido e tenaz, Hardy replicou a chumbo com chumbo. Na sua mente, soando como um sino de esperança, uma voz entusiasmada recordava-lhe: «Já caiu o Will! Agora são três!».
Disparou por duas vezes sobre Buck. A primeira bala saiu baixa, e traçou uma linha de pó aos pés do patife, que corria para abrigar-se ao amparo de um alpendre.
A segunda, violentamente, arrancou-lhe o estropeado chapéu da cabeça...
Mas não que fosse um tiro ao acaso ou falhado. Antes de lhe fazer voar o «stetson»... atravessou-lhe selvaticamente o crânio!
Hardy, ofegante, variou de posição. Sem saber porquê, brotando do seu subconsciente, chegou-lhe o pensamento poderoso de que Buck já não assassinaria mais crianças, nem sequer por acidente. O coração batia-lhe doidamente no peito, e no cérebro, em vez do pensamento, a voz vibrante da esperança: «Outro de menos! Só restam dois!».
Os cavalos, espavoridos pelo silvo das balas e pelo eco dos tiros, davam inverosímeis saltos de carneiro. Quando o primeiro deles, relinchando e escoiceando sem cessar, largou a correr para um extremo da praça, os demais seguiam-no a galope.
Isso arejou um pouco a situação. No largo só ficou a massa de poeira... e os corpos inertes, imóveis, de Will Bansson e Buck Regan.
Uma bala zumbidora, voraz, raspou a fachada do armazém de Strafford. O atirador disparava de má posição. Outro fez saltar os vidros da montra. Um terceiro, de ricochete, cravou-se a meio palmo do rosto de Hardy que deu um pulo.
Aos saltos, os nervos tensos, correu para a esquina. A cortina de pó, pousando suavemente, impedia que os inimigos o localizassem. Sabia o que Jed pensava em tais momentos. Se sempre fora cruel, a morte de Will tinha-o convertido numa fera carniceira, simplesmente implacável.
Antes de chegar à esquina, três ou quatro projéteis disparados precipitadamente e sem dúvida com o objetivo de não o deixar escapar do armazém, obrigaram-no a retroceder. A saída fechada! Bloqueada a fuga! Encostou--se ao umbral da porta. Viu Pretty com uma arma em cada mão, hostilizando-o atrás do precário parapeito de um barril para recolher água da chuva.
Ergueu o percutor, girou o cilindro, e sem apontar, disparou um tiro. A bala esmagou-se contra uma das cintas metálicas do barril e saiu projetada para cima, gemendo tão agudamente como uma fantástica alma penada. Pretty acocorou-se um pouco mais. Mas não deixou de fazer fogo.
Não via Jed. Não podia localizá-lo. A impotência corroía-lhe a razão. Conhecia-o o suficiente para esperar qualquer coisa má. Pretty, obstinado, não dava repouso aos gatilhos. Um chumbo mordeu a madeira do umbral e arrancou-lhe um grande bocado. Hardy, de lábios apertados e duros olhos, voltou a fazer fogo da altura do quadril.
Tinha descoberto o braço armado só o necessário para disparar. Velozmente, escondeu-se de novo. O pó dançava preguiçosamente a meio da praça, descendo para o chão. Mas nem por isso aumentava a visibilidade, já que agora as cortinas estavam integradas por densas espirais de pólvora resplandecente ao sol.
Pretty moveu-se atrás do barril. Por espaço de um segundo viu a ponta de um ombro e o revolutear das abas da casaca. Hardy ia disparar, certo de que o derrubaria, mas uma força superior a si próprio deteve-o. Porquê?
Fez um rápido recuo mental. Dir-se-ia que o tempo não passara, porque atuava tal qual como nos agitados tempos de outrora.
Um tiro para derrubar Will. Dois projéteis, um alto e outro baixo para acabar com Buck Regan. Contra o barril também disparara um par de chumbos. Assim, pois, em números infalíveis restava-lhe uma cápsula no cilindro... do seu eficacíssimo «Colt»!
Uma cápsula.
O suor frio, repentino, perlou-lhe a fronte. E ainda havia dois homens à sua frente. Impossível eliminá-los simultaneamente.
Pensou em seguida, com lucidez, que devia recarregar o revólver. Outro pedaço de madeira foi arrancado pelo cruel mordisco do chumbo. E tinham-no seguro, imobilizado no vão da porta. Agora, via claramente a manobra de Jed Bansson!
Uma espera paciente, dominando os nervos e a ânsia assassina de aniquilá-lo... para se converter em senhor absoluto da situação! Se lhe desse para atacar, secundado pelo fogo protetor de Pretty... não haveria escapatória!
Acionou a mola e o cano do «Colt» rodou, deixando a boca de fogo apontada para o chão. Viu o cilindro onde fulguravam os cartuchos. Cinco fulminantes picados pela agulha do percutor e um — um só! — com o cobre intacto.
Moveu a mão esquerda para extrair um cartucho novo da cartucheira repleta. Suava copiosamente. Não lhe dariam tempo para recarregar! Os dedos tremiam — que sensação desconhecida! — dominados pela impaciência febril.
Em meio daquele frenesim de loucura, a voz rouca de Jed Bansson, surgindo do edifício lateral ao de Strafford, gritou em tom estridente:
— Vamos, Pretty, já é nosso! Só lhe resta uma bala!
Hardy, com a unha, expulsou uma das cápsulas servidas e introduziu depois a bala recém-tirada do cinto. Teve o máximo cuidado em que fosse na câmara seguinte à posição de tiro. Realizou a operação com tanta pressa que a unha se partiu.
O revólver estava outra vez carregado com duas balas.
Não importava. Quase sentiu vontade de rir. Fechou o «Colt» e aperrou-o rudemente. Jed voltava a enganar-se com ele. Não lhe restava só uma bala. Já havias duas no tambor.
Era a sua salvação.
Voltando-se furiosamente, a mão colada à coxa e sobressaindo da mão o longo cano do «Colt», o solitário de Eden viu Jed Bansson saltar para o alpendre. Sete ou oito metros separavam-nos!
Hardy sabia agora que tinha de lutar ferozmente para salvar a sua vida e o futuro de Fay.
Pelo canto do olho, instintivamente, observou o movimento cauteloso de Pretty... que também deixara o pançudo barril! Não lhe foi possível captar mais nada. Tinha chegado o momento de arriscar a pele, sem paliativos! Vivo ou morto. Este seria o fim da luta!
Jed tinha-o encurralado.
Bang! Bang! Os revólveres de Jed, atropelando-se, dispararam daquela tão curta distância. Dir-se-ia que era impossível falhar. Que até urna criança acertaria no meio do alvo! Mas Hardy, dobrando um joelho, abaixou-se com a velocidade do raio. Um encolher tão rápido que era impossível segui-lo com a vista.
Jed falhara o tiro.
A primeira bala, zumbindo, passou junto da orelha direita de Hardy, arremessando-lhe em pleno rosto um sopro de ar tórrido. A segunda, cravando-se profundamente, atravessou-lhe o ombro esquerdo — ia dirigida ao seu coração! — empurrando-o contra a fachada do armazém-geral. Dali, mordendo os lábios para não soltar gritos de dor, premiu o gatilho e o revólver de Lee Dunham vomitou uma língua de fogo.
Jed Bansson que sorria feliz, cambaleou como se tivesse bebido.
Não caiu no chão. O sorriso ficou estereotipado no rosto, gelando-se, adquirindo a inexpressividade grotesca de uma careta estúpida. Mas não caiu. Continuou firme. De pé. Olhando com olhos de cadáver um ponto tão indefinível como distante". Mas já tinha perdido a vida.
Hardy sabia que no tambor só restava uma bala. A última! Uma bala vulgar. Um cilíndrico bocado de chumbo endurecido, de que, na realidade, tudo dependia.
Já só restava um.
Pretty, do outro lado da praça, ergueu os percutores e apontou seguro de êxito. Hardy não se incomodou a afinar a pontaria, porque a sua confiança na precisão do extraordinário revólver era ilimitada. Fez fogo. O ombro doía-lhe enormemente; mas ainda teve foças para sorrir ao sentir na mão o coice da coronha, pois estava certo de ter acertado no alvo.
O ex-jogador do Arizona vacilou. Na fronte, nítido, acabava de surgir-lhe um orifício negro. Mesmo ao meio da testa!
Um bom tiro!
Deixou cair os braços, colando-os aos lados do corpo.
Talvez por uma contração digital ambos os revólveres se dispararam ao mesmo tempo, erguendo duas nuvenzinhas de pó a seus pés, junto. às botas lustrosas. Depois, como um pião, Pretty rodou sobre si mesmo, redondamente. E caiu de borco. Já nunca mais pesaria sobre Hardy a ideia da vingança.
A respiração ofegante de Hardy Fortune, atroadora após o silêncio espesso que se formara ao cessarem as infernais detonações, enchia o alpendre do armazém. Uma visão desoladora, um espetáculo dantesco, oferecia-se em torno dele.
Era o único sobrevivente.
Violência pura. Violência no mais alto grau do primitivismo. Violência do Texas e como só no Texas pode acontecer. Acabara a luta. Fim do duelo. Já podia respirar tranquilo e sentir o alívio de ter dissipado, até à última sombra sinistra, a nuvem que pendia sobre a sua errante existência de homem regenerado.
Lentamente, com esforço, começou a erguer-se. O seu olhar tropeçou com o cadáver de Jed Bansson. Ainda mantinha os olhos abertos e fixo, absurdo, o sorriso. Desfalecera sobre o corrimão do varandim que circundava o alpendre de Strafford. Agora, silenciosamente, o corpo sem vida ia resvalando para o chão. O choque amortecido, incolor, rubricou a queda final.
Hardy apanhou o chapéu. Olhou a mão que segurava o revólver. Formoso, longo, perfeito. Fê-lo rodopiar, agilíssimo e ia metê-lo no coldre. Mas não completou o movimento. Nunca mais precisaria de um revólver para defender a sua vida.
— Bem, Fay — murmurou ternamente. — Sei cumprir as minhas promessas... eterna paz para os Fortune... e nada de violências. Tudo terminou, acabaram-se as mortes.
Num gesto olímpico, gesto de renúncia que encerrava algo de desportivo, arremessou o «Colt», para a praça. Ali ficou, meio enterrado na poeira, refletindo o sol matinal com cintilações de um rosado sangrento.
Os habitantes de Eden saíam das casas. Eram como ratos, abandonando as tocas ao desaparecer o gato. Olhavam para o homem solitário, manchado de sangue, que caminhava com passo firme para o outro lado da povoação. Olhavam-no com admiração e horror. Hardy Fortune não via nada nem ninguém.
Sabia que uma mulher, a sua, o estava aguardando com indescritível impaciência em casa do doutor Calbert. Sabia que tinha chorado e rezado. Para ali dirigiu os seus passos. O sol, subindo alto no novo dia, marcava uma etapa de futuro e luz na existência daquele valente com passado negro.
 

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

BIS130. Cap IX. A única solução

Numa aldeia de tão reduzidas dimensões como Eden as notícias não demoravam a espalhar-se. As boas e as más. Correm velozmente elevadas pelo vento e logo chegam aos ouvidos do principal interessado.
Fay demorou-se quase meia hora no seu quarto. Esforçou-se por disfarçar os sinais deixados pelo pranto. Não queria, por nada deste mundo, que Hardy notasse a tormenta mortal que gravitava suspensa sobre o seu espírito.
É claro que tencionava dizer-lho. Naturalmente que o faria. Seria um instante supremo, esmagador e indiscritível. Falaria, mas ainda não. Precisava de se munir de coragem antes de dar o grande passo. E tinha rogado a Deus com intenso fervor que a livrasse da lancinante prova.
Quando saiu do quarto e desceu ao andar térreo para se juntar ao marido, ficou petrificada de ansiedade ao escutar o murmúrio de vozes abafadas. Hardy falava com alguém sem elevar o timbre da voz!
Não esperava visitas. Nem as desejava em tão espinhosos instantes. Tentada esteve a retirar-se rapidamente e evitar assim a tortura moral de estar a suportar a insulsa conversa de qualquer vizinho que se tornaria dolorosa para o seu apoquentado espírito. Uma força superior à dos seus próprios desejos reteve-a, no entanto, no último patamar das escadas. Sabia que não estava certo escutar às escondidas e a sua consciência censurava-lho. Mas prestando atenção e contendo o alento ainda chegou a tempo de captar a despedida.
— Obrigado, Ben — dizia o esposo. — Obrigado do coração. Nestes casos é melhor estar prevenido.
— Não tens de quê, Hardy. Julguei meu dever vir comunicar-te..., ainda que, bem sabe, muito me custe ser o portador de tão más novas. Diz-lho a ela com tato e, por favor, faz caso do meu conselho.
— Não posso. Seria uma cobardia inqualificável que me humilharia até ao fim dos meus dias. O meu lugar é em Eden, junto dela. Tentar uma fuga desnorteada não adiantava muito com esses desalmados. Além do que talvez contribuísse para malograr, com plena consciência dos meus atos, o filho que Fay e eu esperamos para dentro de um mês.
— Mas... é a tua vida que está em jogo!
— Não insistas, Ben. Há outras vidas, além da minha. Obrigado mais uma vez.
Penetrantes e invisíveis punhais cravaram-se em Fay, rasgando-lhe atrozmente a carne, quando Ben Landigton saiu de casa dos Fortune.
Ainda que desejasse acabar de descer os últimos degraus, compreendeu que só mediante um poderoso esforço físico conseguiria desembaraçar-se da imobilidade estatuária que dominava todas as fibras do seu ser. Por fim, num arranque iniciado com decisão, conseguiu vencer os indefiníveis fios que a retinham.
Hardy que voltava da sala de visitas ergueu vivamente a cabeça ao achar-se em face dela.
— Fay... — murmurou.
— Era Ben Lendigton?
— Sim. Veio dizer-me que...
— Já sei.
— Ouviste a conversa? Lamento que tenha sido tão brusca a notícia.
Os dois, muito quietos, olhavam-se com irresistível fixidez. Era o momento temido. Sem máscaras, sem fingimentos, ambos, com a cara, verificaram que o seu problema íntimo se convertera num segredo conhecido de todos.
O belo rosto da mulher cobriu-se instantaneamente de mortal palidez. Não disse nada. Nem confirmou -nem negou a pergunta de Hardy. As suas claras pupilas, brilhantes de ansiedade, começaram a empanar-se com as lágrimas de uma intensa dor.
— Querido... — suspirou.
— Sabia-lo, não é verdade?
— Sim — replicou lamentosamente. — O encarregado da diligência trouxe a notícia.
— Não tiveste coragem para me dizer?
— Tive medo. Um medo infernal, Hardy. Isto pode ser o fim da nossa felicidade.
— Ainda não chegaram a Eden.
— Mas chegarão.
— E depois? — Hardy formulou a pergunta com raiva. — Aqui estaremos a esperá-los.
— Não!
Ela protestou com um grito, de olhos dilatados, os lábios trémulos. Durante uma fração de segundo, vacilante, parecia que um dardo fatal acabava de trespassá-la. A sua palidez cerúlea assustava. Cambaleou e Hardy, rápido, teve de agarrá-la pelos ombros, receando que ela caísse no chão.
— Fujamos — rogou ela em voz transida. — Fujamos daqui, Hardy.
— Para onde? Oh, isso é impossível! Não chegaríamos nem a quinze milhas de distância... pelo deserto dentro! Que • conseguiríamos com isso? Nada, exceto perder a última possibilidade a nosso favor. Na planície acossar-nos-iam como cães a uma lebre. Coser-me-iam com tiros e tu... tu...
Fay chorava abraçada ao homem que era toda a sua vida. Aquelas palavras ditas rudemente acabavam de quebrar o derradeiro pilar da sua resistência.
Já não podia mais. Declarava-se vencida, exausta de argumentos com que rebater a firmeza acerada do marido. Conhecia-o de sobra. Hardy Fortune jamais voltaria as costas aos implacáveis ébrios da vingança!
— Raciocina — acrescentou ele. -- Tomei a minha decisão, a única que existe. Aqui, na aldeia, lutaremos num terreno que eu conheço e eles não. Existem mil maneiras de lhe fazer frente! O teu estado atual não permite valentia... meter-te num carro e fustigar os cavalos a galope seria a mais absurda das tentativas. Não — o seu tom tornou-se inapelável. — Fico em Eden. E tu também. Levar-te-ei para casa do doutor Calbert... até que amaine a tempestade. Eu conheço o modo de jogar com Jed utilizando as suas próprias cartas.
— Violência — sussurrou Fay. — É esse o jogo?
— É. Violência é a única coisa capaz de os fazer parar. A linguagem que aprenderam desde pequenos. Não há outra porta onde bater, por que nem sequer temos xerife. Cada qual tem de solucionar os seus próprios problemas. É assim que sucede desde há muito e eu não posso alterar a tradição. Se vêm em som de guerra, terão guerra.
— Mas... são quatro homens! Quatro feras daninhas cuja única profissão consiste em manejar as armas. — Bem sei, Fay. Cavalgámos juntos durante alguns anos difíceis de olvidar.
— Não permitirei, que cometas uma loucura semelhante!
— Pela primeira vez desde que nos conhecemos... o teu ponto de vista e o meu diferem notavelmente — respondeu rouco e lento. — Deixa-me atuar. Conheço o sistema. Não vão apanhar-me de mãos nos bolsos, nem... assustado. Agora há que lutar por algo mais importante que uma presa, umas cabeças de gado ou uma vida. Tu e o pequeno serão a minha bandeira e o meu credo. Não posso perder.
— Eles matam-te... matam-te...!
— Afasta essa ideia lúgubre. Eles sabem a espécie de inimigo que eu sou. É essa a razão por que vêm em grupo, em bando... confiam no número. Mas temem--me! Será interessante ver o que acontece quando cair o primeiro.
— E se és tu o primeiro?
— Sê-lo-ia no deserto; não em Eden. Aposta pelo teu campeão.
— Não quero apostar. Não me resigno a consentir num crime ante os meus próprios olhos! — Fay agia como tomada de um ataque histérico, roçando o paroxismo da demência. — Tu prometeste não voltar a usar armas de fogo. Se faltas à tua promessa eu pensarei que...
— Fay. Domina os nervos! Ou és incapaz de assimilar a verdade? Bansson e os seus sofreram cinco anos de reclusão. Durante todo esse tempo só uma coisa lhes alegrou a existência: acabar- comigo! Mas agora já não se trata só de mim. Há vocês dois! Crês que me encanta a perspetiva? Nada! Quando prometi abandonar os revólveres, fiz ainda mais do que isso: vendi-os. É verdade ou não?
— Sim, mas...
— Então porque censuras a minha atitude? Não pode haver outra, Fay. Mantive fielmente a promessa desde que nos casámos. Não há em nossa casa outras armas além de uma velha faca de mato. Mas eles vão entrar em Eden dentro de pouco tempo. Ben disse-me uma coisa que tu deves saber se ouviste o encarregado da diligência. Viram--nos por alturas de Ballinger! Mesmo supondo que a diligência foi mais rápida do que eles, não é de admitir que tenha grande vantagem. Devem estar a cair! Compreendes o que significa? Dentro em pouco..., amanhã o máximo... tê-los-emos cá! De que serviria fugir? Que benefício tiraria mantendo a minha atitude pacifista? Sei bem que fiz uma promessa. Agora vou quebrá-la. Pensa de mim o que quiseres! Preciso de um revólver antes de te instalar em casa do doutor Calbert.
A resolução e energia de Hardy contribuíram para serenar a mulher porque a sua cortante resposta significou um rude choque emocional. Os nervos, como sob a ação de um rápido sedativo, acalmaram-se; e transformaram toda a angústia em lágrimas.
Chorou. Chorou muito e profundamente, abraçada ao esposo. Depois, resignada, ainda que não convencida, aceitou com submissão a bárbara e aparentemente exclusiva linha de conduta.
Meia hora depois, levando um pequeno embrulho com o imprescindível, os Fortune encaminhavam-se para o domicílio do doutor Calbert, sendo alvo obrigado de todos os olhares. Os habitantes de Eden, ainda que procurassem disfarçá-lo, conheciam bem a fatalidade daquela sentença selvagem que pesava sobre Hardy Fortune.
intimamente condoíam-se deles. Lamentavam o transe por que tinham de passar sem apelo possível. Não obstante, como bem sabia a própria Fay, nada podiam esperar deles além da inútil compaixão. De nada valeria tentar achar refúgio nos seus corações. Seriam estéreis os esforços ao apelar para a sua amizade. Nada os convenceria a adjuvá-los. Automaticamente, desde que se espalhara a notícia, os Fortune tinham ficado sós.
Jed Bansson, sem dúvida, contara com essa eventualidade e talvez o divertisse extraordinariamente imaginar Hardy mendigando auxílio de porta em porta. Mas Hardy não mendigou.
Considerava-se bastante homem para responder pelos seus próprios atos e levá-los aos últimos extremos se fosse preciso. A esposa e o filho que estava para vir eram os únicos pontos débeis na sua sólida fortaleza moral. Por isso se apressara em pô-los a salvo.
O doutor Calbert, um ancião de cabelos branquíssimos e olhar bondoso, não precisou de ouvir meia dúzia de palavras para entender em que se baseava o pedido. A esposa do médico, tão velha como ele e de temperamento essencialmente maternal, acolheu Fay com carinho.
— Cumpra o senhor o que considera um dever, «mister» Fortune — disse. — A sua esposa fica sob a minha proteção.
— Obrigado — replicou ele, resumindo na simples expressão todo um complexo mundo de sensações e angústias.
A despedida foi breve.
Fay olhou-o chorosa e tentou improvisar um sorris valente.
Não o conseguiu senão de modo parcial, porque nem sentia desejos de rir nem se considerava com coragem para dar ânimo ao homem que, sem grande esforço de imaginação, via já ensanguentado e trespassado pelas balas criminosas de Bansson, Regan e Pretty.
— Tem cuidado conseguiu dizer, suplicante. — E sê prudente.
— Descansa, querida.
— Se não basta por mim, fá-lo pelo men...
— Fá-lo-ei pelos dois — crispou com força as mãos na aba do chapéu que mantinha pendente. — Adeus, Fay, concluiu. — Virei buscar-te quando tudo tiver passado.
— Adeus... minha vida.
Sim. Foi esta a despedida. Os Calbert, mudos, assistiram à luta de paixões que rugia no seu íntimo e que em vão tentavam impedir de transparecer nos olhos.
Quando saiu para a rua, preocupado, dirigiu os seus passos para a loja do omnímodo «mister» Wooden.
Precisava de um revólver, um cinturão-cartucheira e munições. Sabia que a batalha ia ser dura. Depois escreveria a nota que ia deixar à porta de sua casa.
Jed Bansson, quando aparecesse por Eden, iria diretamente ao seu encontro, porque — coisa muito própria dele — devia ter-se informado amplamente antes de empreender o cruel caminho da vingança. Se tinha algum plano previsto, alguma diretriz de conduta preconcebida, a nota deitaria por terra, de certo modo, os seus bem urdidos propósitos. As pessoas viam-no passar e procuravam, com a inabilidade própria dos assustados, desviar os olhos da sua cara. Mesmo alguns amigos mudavam de rumo ou improvisavam absurdas distrações para evitar que Hardy sentisse a tentação de chamá-los.
Hardy, no entanto, não chamou ninguém. Respondeu aos receios com o desprezo e aos tímidos sorrisos de algumas mulheres amigas de Fay com a indiferença.
Sabia que estava só. Só. Toda a extensão de Eden seria o seu campo de batalha. Durante a luta não daria nem pediria quartel. Era como se voltasse aos velhos tempos da fronteira. Ao passado negro e turbulento. Assim o quisera o destino.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

BIS130. Cap VIII. A aterradora notícia

Trinta minutos mais tarde, a diligência partia de Eden, rangendo as suas molas ao sabor dos altos e baixos do caminho.
A muda de cavalos, ansiosos de galope, empreendeu a marcha a um bom ritmo. Uma esteira de pó marcou o seu avanço pelo deserto dentro. Quando a neblina começou a formar-se, os grupos dissolveram-se, as pessoas voltaram às suas ocupações e as últimas notícias circularam de boca em boca pela povoação.
Fay Prescott que saía do consultório do doutor Calbert, depois da visita correspondente ao seu oitavo mês de gravidez, ouviu, por acaso, a espantosa notícia.
Sentiu-se transpirar por todos os poros da pele e os joelhos fraquejaram-lhe. Fazia calor. Insuportável e feroz calor. Atribuiu o mal-estar ao facto de se encontrar grávida.
Mas, querendo ser justa, compreendeu que a origem dos suores estava naquelas palavras que tão diretamente afetavam o seu marido.
— Jed Bansson e os seus homens foram postos em liberdade. Deixaram a penitenciária de Tuscola não há oito dias. O encarregado da diligência garante que os viu perto da Ballinger. Cavalgavam nesta direção. Alguém vai pagar pela condenação que eles sofreram...
Sim. Alguém iria pagar. E esse alguém... era o seu próprio esposo!
Caminhou, sufocada, pelos passeios de tábuas, lutando para evitar que as lágrimas lhe viessem estupidamente aos olhos e com a mão esquerda crispada, amarfanhando o lencinho de linho, sobre o coração. Temia que todos pudessem escutar o seu bater desordenado.
Além disso, não ignorava, tão-pouco, que se tornara, automaticamente, o centro de todos os olhares furtivos, todos os cochichos e todos os maus presságios. Os habitantes de Eden compadecer-se-iam dela, do ainda alheio Hardy e até do fruto do seu amor, o filho das suas entranhas, que em breve iria nascer. Não suportava a compaixão estulta da uns tantos homens e mulheres para quem a liberdade de Jed Bansson representava apenas mais uma notícia! Em contrapartida, para ela... era imensamente trágica!
Conhecia a história.
Datava° de cinco anos antes, aproximadamente os mesmos que Jed Bansson, seu irmão Will, Buck Regan e o elegantíssimo Pretty tinham passado atrás das grades (1). Hardy Fortune, o jovem que chegara um dia a Eden, conquistara-a mal lhe declarara o seu amor e o desejo que sentia de convertê-la em «mistress» Fortune.
— Nem sempre foi bom, Fay — disse Hardy com voz fatigada. — Custa-me confessá-lo; mas tu deves saber; tens direito a isso.
(1) — «Pretty» — lindo, bonito.
— Não me importa o teu passado. Amo-te. Isso basta.
— Pertencia ao bando de Jed Bansson.
A revelação, contra o que Hardy esperava não alterou a cor da sua face sugestiva nem desfez a curva sorridente dos seus lábios túmidos.
— Não me importa — repetiu.
— Mas a mim, sim. Escuta. Tens de conhecer a verdade — insistiu ele.
— Nada te pedi — Hardy. E tu, em troca, queres casar-te comigo. Sinto-me paga com juros. É belo dar muito por nada.
— Ganho com o que te dou porque a tua conduta sempre foi irrepreensível. A minha... — o homem inclinou a cabeça. — Bom, desejo que o saibas, Fay.
Não houve meio de opor-se a isso. Hardy, espaçando cada frase — ou antes: cada palavra — revelou toda a história num esforço difícil e sincero.
— Vivi a sangue e fogo... — começou. — Disparei os meus revólveres contra gente inocente... Fui mau, Fay. Muito mau.
— Mas já não és.
— Não. Ou pelo menos... pretendo mudar. Aspiro a merecer-te e a que me consideres digno de ti. O meu cavalo percorreu muitos caminhos e a pólvora nublou-os. Roubei, vivi do assalto, da ilegalidade. Bem sei que há uma desculpa: sou um produto típico desta terra violenta. Dentro de cinquenta anos não ocorrerão as coisas que hoje estão na ordem do dia. Jed Bansson era o meu chefe. Eu... creio que terás ouvido falar dele.
— Sim.
— Os xerifes dos territórios fronteiros com o México consideravam-me o mais rápido e perigoso do bando. Até
tive a cabeça posta a prémio. Jed orgulhava-se de Hardy Fortune.
— Eu também me orgulho de ti. Renunciaste a tudo isso, Hardy. Lutas pela regeneração... Eu sei que podes reivindicar o teu bom nome e não desistirei de ajudar-te na empresa. Quando fraquejares, quando julgares que o peso do passado te obriga a afundares-te... lembra-te de que contas comigo. O resto, já te disse... não me importa!
— Num assalto, Buck Regan matou um pequenito — continuou ele obstinado na primitiva ideia. — Isso afetou-me muito. Não sei o que ocorreu dentro de mim, mas decidi abandonar os revólveres. Sentia aquele cadáver a pesar-me na consciência dia e noite. Cheguei a odiá-los a todos: a Jed, ao irmão, Will; a Prety sempre tão preocupado com a sua elegância; a Buck Regan, assassino acidental... mas assassino de qualquer forma! •
— Não te martirizes por favor.
— Não é martírio. A sério que não. Às vezes produz um infinito alívio poder aliviar a consciência com alguém que nos compreende e é bastante indulgente para perdoar as maiores faltas. Calou-se, passou os dedos pela boca torcida num jeito de amargura e completou: — Entreguei-me ao xerife de Eagle Pass. Por minha causa, seis meses mais tarde apanharam o resto da quadrilha... quando fugiam para o Norte. Não os enforcaram por falta de provas... e porque a minha declaração de antigo cúmplice foi insuficiente. Mas condenaram-nos a penitenciária. Creio que Jed nunca mais me perdoará.
— Oh, querido! Tu cumpriste já para com a sociedade. Pagaste a tua dívida perante a Lei.
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— Jed tem a sua própria Lei e no que lhe respeita continuo sem castigo. Um dia sairá da cadeia de Tuscola. Então, onde quer que me encontre... irá ter comigo para o ajuste de contas. Agora, tens tu a palavra. Já sabes o risco que te espera, mais tarde ou mais cedo... casando comigo.
— Amo-te — declarou Fay, olhando-o com os seus luminosos e claros olhos de moça feliz. — E admiro o esforço que representou afastares de ti o lastro de um passado negro. Nunca mais voltes a usar armas de fogo, Hardy. Prometes? Ouvi-lo dos teus lábios tornar-me-ia extraordinariamente feliz...
— Claro que prometo. Bem vês... — por fim, Hardy sorrira — até ando desarmado como um trabalhador do campo!
Passaram cinco anos sem se sentir. Cinco anos iluminados por um casamento, o trabalho honrado e o filho que guardava no seio. Cinco anos... Mas Jed Bansson não esquecia. A sua lei selvagem tinha de ser cumprida. Um vento de loucura poderia arrasar as suas vidas e a do inocente ser que ainda não nascera.
O bater do coração ecoava-lhe nas têmporas, estrondosamente. Os passos vacilavam. A gravidez tornava-a hesitante, débil... tornava-a uma carga pesada! Como dizer a Hardy o que acabava de saber? Seria o mesmo que esmagar, reduzindo a poeira, um precioso, apesar de frágil castelo de cristal repleto de ilusões! O maldito Jed Bansson não respeitava nada nem ninguém.
Quando entrou em casa, ofegante da pressurosa caminhada, fechou atrás de si a porta e encostou a ela o peso do corpo.
Ia desfalecer. Pressentia-o. Nunca como agora Hardy precisava de uma mulher forte a seu lado. E, no entanto, nunca se sentira tão débil e horrorizada. Tão incapaz de mostrar bravura!
— És tu, Fay?
Hardy. A agradável e varonil voz chegava-lhe do estábulo. Prestou atenção.
O caos furioso que se formava no seu cérebro impedira-a de ouvir o som do martelo. Seu marido ferrava o «Cinder», um cavalo negro, de pelo luzidio. Lembrou-se de que prometera fazê-lo.
Fez o possível por serenar. Tentaria ganhar tempo. Demoraria a notícia o mais que lhe fosse possível. Era estúpido atirá-la de chofre sem ter pensado numa solução prévia. Na realidade existia solução? Deus bendito, que desgraça!
— Sim — respondeu, dando à voz uma nitidez quase normal. — Não venhas. Já vou ter contigo.
Foi. Hardy Fortune, mantendo ao alto, dobrada pelo joelho, uma das mãos do cavalo, dedicou-lhe um sorriso de boas-vindas. Estava em mangas de camisa, com o colarinho desabotoado e mostrando a parte -superior do tórax. Na mão direita tinha o martelo. Assestou uma pancada seca, fincando o cravo de ferrar, e com outra pancada dobrou a ponta que emergia do casco.
— Acabo já. Como foi?
— Bem... — Fay, avançara e beijara-o na face.
— Que disse o doutor?
— Não há novidade. Tudo normal, querido.
— Belo! — olhou-a sorridente e confundiu a vermelhidão das faces com o rubor próprio da timidez. — Belo, ao que parece! Vocês mulheres não gostam de falar nestas coisas. Julgam-se muito importantes por se encontrarem em futuro transe de maternidade. Mas eu também vou ser pai. Sinto ansiedade... e orgulho.
— Vou mudar de vestido.
— Ouve, Fay.
Ela deteve-se, paralisada pela voz. Não era lógico esperar perguntas difíceis. Hardy desconhecia a notícia. No entanto, o bater do seu coração redobrou de tumulto dentro do seu peito agitado.
— Diz.
Hardy perguntou:
— Armou-se aí um ajuntamento na rua. Chegou a diligência?
Fay confirmou:
— Sim. Via-a, quando vinha a caminho.
Hardy perguntou:
— Novidades?
Fay disse:
— O mesmo... de sempre. O progresso continua a avançar para o Norte e para o Leste. Dizem... dizem que lá as cidades crescem como cogumelos. Pensaste alguma vez que podíamos sair de Eden... e ir viver para outro sítio mais civilizado?
Hardy admitiu-o:
— Já pensei, sim.
Fay começou:
— Então por que não partim...?
— Oh, Fay! — atalhou ele, risonho: — Que ideia! Partir... precisamente agora! No teu estado...!
Fay disse:
— Gostava que o meu filho nascesse num lugar menos selvagem. Não sei como explicá-lo.
Hardy concordou:
— Entendo.
Fay continuou:
— Penso coisas estranhas, à medida que se aproxima o momento de dar à luz.
— Creio que nunca te recusei nada. Se realmente meditaste seriamente na decisão, temos tempo de realizá-la mais tarde. Também me encantava estabelecer-me noutro sítio. Numa terra digna desse herdeiro que vai perpetuar--me o apelido. Falaremos disso com calma... mas não agora. Não é lugar, nem momento oportuno para decidir uma viagem cheia de riscos. A menos que o doutor Calbert acedesse a acompanhar-nos... — concluiu sem desfazer o contagioso sorriso.
— E se...? — Fay desviou a vista. — E se uma circunstância de força maior nos obrigasse?
Hardy perguntou:
— Que circunstância? Não receies. Tudo se resolverá da melhor maneira. Há milhões de anos que as mulheres trazem os seus bebés ao mundo, cumprindo a primordial missão feminina. Há alguma coisa de especial?
— Não, não... — retorquiu Fay. Hardy comentou:
— Parece que estás um pouco... nervosa. Acho-te perturbada.
— Imaginação tua — e improvisou um trejeito cómico, uma expressão que tanto agradava ao marido.
— Até logo. — Até logo — repetiu ele, agarrando com força o cabo do martelo e dispondo-se a acabar o trabalho.
Quase tinha descoberto. Fay subiu para o seu quarto contendo um soluço e, mal fechou a porta, deixou-se cair sentada no leito. Silenciosamente, como gotas de chuva ao resvalar sobre uma superfície de seda, as lágrimas deslizaram-lhe pelas faces e levaram-lhe até às comissuras dos lábios o amargo sabor de uma dramática hesitação. — Deus meu... — soluçou.
— Deus meu... Tem piedade de nós!

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

BIS130. Cap VII. Eden

Eden era um desses lugares perdidos na vastidão esmagadora do Texas. Formavam-na setenta e oito casas, um estábulo, um armazém, duas tabernas e a loja do todo-poderoso «mister» Wooden, macabra notabilidade da povoação. Ficava-se por aqui. Nada mais havia a acrescentar.
Não tinha xerife, não tinha novidades, quase não tinha história. Fundara-a uma caravana de imigrantes, pobres visionários que viajavam para a Califórnia em busca de um rico éden ubérrimo de terras e promessas. Algo lhes sucedeu capaz de interromper a viagem; mas passara-se havia tanto tempo que nem os mais velhos do lugar se lembravam ao certo.
Uns diziam que tinha sido a pouca sorte; outros, a peste... A verdade, o irrefutável é que Eden nascera a oitenta milhas do mais próximo local habitado: o agora em ruínas Old Fort Concho.
Talvez fosse a peste, porque como empestados viveram os seus improvisados fundadores. Ergueram as casas, formaram a primeira rua e trataram de converter aquele infame terreno em algo digno de esforço. Conseguiram-no vinte cinco anos depois, graças à tenacidade e ao esforço coletivo ali desbaratado.
Agora, ainda que Eden continuasse a ser uma aldeia perdida atrás da meseta do deserto, os habitantes podiam orgulhar-se de duas coisas: o gado gozava de certa fama e a «Tex Coach Line» estabelecera na rua principal urna posta ou estação de trajeto, na qual quinzenalmente se mudavam os tiros (1) da diligência que efetuava o percurso de Sweetwaler, em Nolan County, até Bandera, no condado do mesmo nome.
Os vetustos carroções vermelhos da «Tex Coach Line» contribuíram, sem o pretenderem, para que o nome de Eden fosse conhecido por alguns centros de texanos. Não muitos, claro, visto que o conhecimento era restrito aos usuários da linha. Mas, pelo menos, a peregrina ideia daquela caravana fundadora que assentara a primeira pedra — na realidade o primeiro madeiro — não caiu em saco roto.
Eden, com as suas reses e com a estação, adquiriu carta de cidadania e ganhou direito ao seu microscópico pontinho geográfico no gigantesco mapa do Texas, o maior estado territorial da União.
Era uma aldeia pacífica, de gente simples e trabalhadora, onde todos se conheciam pelo nome de batismo.
Sete ou oito completavam as personalidades da povoação: o médico, o armazenista Strafford, os irmãos Conted, donos dos estábulos... e também, evidentemente, «mister» Wooden.
Este era considerada a personagem principalíssima de
(1) Conjunto de animais que puxam os veículos. (N. do T.).
Eden. Tinha dinheiro. Costumava emprestar... e cobrava juros exorbitantes pelo favor. Também abria créditos.
Por isso, ainda que não passasse de um usurário, consideravam-no quase como um banqueiro no seu estádio mais primitivo e defeituoso. Mas necessário.
Peter Brown desmontou da égua. À sua frente, destacando-se pela brancura, estava a fachada do estabelecimento e o seu inconfundível emblema: cinco bolas amarelas (1). «Mister» Wooden — podia-se vê-lo através do vidro da montra — estava lá dentro com a atenção concentrada num dos seus ímpios livros de escrita.
Atou a égua à barra. Subiu para o alpendre. Na montra, heteroclitamente misturado, exibia-se um oceano de díspares artigos. óculos, colares, relógios de sala, corno-cópias de jade bafiento... Restos malbaratados de fortunas alheias. Recordações que a gana de Wooden filara por matuta e meia. Peter respirou fundo antes de entrar. Depois, de cabeça erguida, franqueou o umbral.
A campainha, suspensa sobre a porta repicou. Wooden ergueu a cabeça e o olhar agudo dos seus olhos perscrutou-o através dos vidros das lunetas, desnudando-o.
— Bons-dias, «mister» Wooden.
— Bons-dias, Peter. Vens comprar... ou vender?
— Vender.
— Ah! — afirmou sentenciosamente como quem assegura uma verdade já pressentida. — Vejamos então.
— Trata-se disto... Não me faz falta.
Colocou o coldre com a arma sobre o balcão. Wooden pousou a caneta no rebordo do tinteiro. Não estendeu a
(1) Cinco bolas douradas é o distintivo das casas de penhores nos E. U.
mão. Olhando o pretenso vendedor por cima das brilhantes lentes, inquiriu com suavidade.
— É teu?
— Agora, é. Ofereceu-mo um cavaleiro que passou pelo rancho... há dias. Não tinha dinheiro, e pagou-me com isto a ajuda que eu e Maria lhe prestámos.
— Ah! — a voz melosa conservou o tom anterior. — Entendido.
— Examine-o por favor. Agradecia-lhe que desse o melhor preço.
Brown falava humildemente, como quem implora urna esmola. Intimidavam-no um pouco os olhos frios do prestamista, porque sabia que nada escapava à sua crua agudeza. Não havia dúvida que conseguia ler até os seus mais íntimos pensamentos. Wooden, pelo contrário, replicou com bastante secura imprópria dele:
— Sempre sou justo nas minhas transações. Ninguém pode dizer que eu o vigarizei alguma vez.
Pedro sentia-se constrangido.
Fazendo caso omisso do cinto, Wooden extraiu o revólver do coldre. Bom conhecedor da profissão, não se incomodou a evitar o brilho gasoso das pupilas. Magnífico revólver. Bem tratado, limpíssimo, sem uma mancha de óxido.
Aquele revólver era uma joia.
Acionou o cano imóvel e dedicou, depois, a sua atenção ao cilindro fixo. Expulsou as cápsulas com o extrator de estrela. Fez girar o tambor. Montou o percutor, premiu o gatilho e deleitou-se a escutar a música suave do cuidado e lubrificado mecanismo disparador.
Tudo isso sem pressas, desesperadoramente calmo, avaliando a joia mortífera que sustinha nas mãos.
— Bem, Pedro. Vejamos. Quanto pedes? — murmurou. Pedro disse:
— Não sei... Creio que o senhor é que deve oferecer, «mister» Wooden.
Este disse:
— Doze dólares pelo «Colt» e quatro pelo coldre e pelo cinto. É um bom preço.
Pedro estava satisfeito com a sua venda.
Dezasseis dólares representavam para Brown uma fortuna fabulosa. Maria fá-los-ia esticar e tiraria um substancioso sumo de cada cêntimo. Esteve tentado a prorromper em exclamações jubilosas. A emoção, porém, deixou-o mudo.
Wooden perguntou:
— Que dizes?
Pedro titubeou ao responder:
— Bem...
Wooden instou:
— Fala.
Pedro anuiu.
— Estou conforme!
Wooden disse, satisfeito:
— Acabas de realizar um bom negócio. Espera um momento enquanto passo o recibo.
Peter aguardou. Dezasseis dólares! A Providência tinha ocorrido em auxílio da sua laboriosa família. Quase achava simpático o rosto de réptil de Wooden, e, naturalmente, começou a venerar a memória do desconhecido encontrado no deserto e que não pudera salvar apesar dos seus esforços.
Wooden estava satisfeito com a sua compra.
Com dedos trémulos pela impaciência enrolou o cigarro com uma folha de milho. Ao acendê-lo, apercebeu-se do rebuliço que chegava da rua, e compreendeu que a diligência quinzenal de Sweetwater-Abilene-Bandera acabava de aparecer envolta em nuvens de pó, pela rua central de Eden.
Como sempre, traria notícias, novidades frescas do mundo distante situado no outro extremo do grande deserto.
Era a única coisa que os ligava ao resto do mundo.
Para Eden a carruagem representava um laço de união com a quimérica civilização das populosas e selvagens cidades texanas. Os que se congregavam em torno da estação de posta, assediariam com perguntas os empregados e passageiros da «Tex Coach Line». Tudo aquilo que averiguassem não tardaria a propalar-se por toda a aldeia como o fogo aplicado a um rastilho de pólvora.
Wooden disse:
— Aqui tens o dinheiro. Conta-o. Se estás de acordo assina o recibo.
Sim. Estava de acordo.
Assinou, guardou o dinheiro numa algibeira e, com gratidão, dedicou um fugaz olhar ao revólver de coronha de nácar que Wooden colocava numa das prateleiras atafulhada de artigos de todas as cores e feitios.
— Obrigado, «mister» Wooden — disse em despedida.
Wooden retribuiu:
— Adeus, Peter.
Já no exterior, no alpendre, Brown aspirou uma golfada do ar tórrido que emanava da terra cozida pelo sol áspero. Ao longe, viu deter-se a carruagem poeirenta e ficar cercada pela ansiosa assistência que a esperava havia catorze dias. Na diligência, além das notícias, vinham também jornais do Norte, boletins do famoso centro ganadeiro de Abilene, e encomendas diversas.
Pedro dirigiu-se para onde tinha a montada.
Desatou as rédeas, saltou para a sela e meteu tacões à égua. Na realidade podia dizer-se que não tardaria a esquecer o revólver recém-vendido. Os dezasseis dólares eram a única coisa que contava agora para o chefe da sempre atribulada família Brown.
Ignorava, naturalmente, a loucura e o barulho que a arma de Lee Dunham promoveria, dentro em pouco, na pacífica povoação de Eden.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

BIS130. Cap VI. A família pobre

Os homens do tipo de Link Grinter não se parecem muito com as pessoas normais. Contra todos os prognósticos, desafiando as leis da lógica mais elementar, o fugitivo chegou longe.
Suportou uma semana a cavalo. Subiu pela pradaria até Doole, onde adquiriu provisões. Chegou a Millersview. Cavalgou, à beira da morte, para Paint Rock.
Tudo isso a marchas forçadas, sem repousar, infligindo-se um tratamento brutal para estancar a hemorragia, e sentindo, como animados de vida, o peso dos dois chumbos incrustados nas costas.
A cura aprendera-a com um velho rato do deserto que conduzia carroças pela Rota do Oregão. Não era muito ortodoxa nem representava um medicamento eficaz. Mas servia para casos de urgência como o seu.
Quando chegasse a Paint Rock, fora do alcance dos xerifes da comarca, entregar-se-ia nas mãos de um médico e este extrairia as balas. Tinha dinheiro, e com dinheiro... não se conseguem as coisas mais impossíveis? Há médicos de poucos escrúpulos e acostumados a fechar a boca, se lhes pagarem bem.
Só, confiando exclusivamente nas suas forças, foi recordando as palavras do «trailman» Loving. Parecia-lhe escutar a sua voz rascante, penosa, repetindo as instruções entre cuspidela e cuspidela de tabaco de mascar.
«— Ouve bem isto, filho. Nós, os que viajamos pelo deserto, devemos aprender a desembaraçar-nos sem ajuda de ninguém. Gostas de cirandar por aí, não? Pois não tenho nada a opor. Viverás muitos anos se te afizeres à ideia de que não existe mais ninguém no mundo senão tu... Não é preciso grande talento, filho. Só um pouco de habilidade. Segue o exemplo dos animais. Eles sabem... tratam-se das suas doenças sem remédios e sem médico. Entendes-me?»
— Sim, Loving — replicava ele.
«— Pois é. O pior das feridas de bala não é o chumbo em si. Há outras duas coisas fatais: a hemorragia e a infeção. Qualquer pessoa pode tirar-te a bala com a ponta de uma faca, desinfetando-a ao fogo. Isso é simples, mas o sangue? Se sai muito um tipo pode ficar seco em meia hora. Primeiro é preciso parar o jorro. Como? Com isto!» — e mostrava uma cápsula do seu longo «sharps» mata-búfalos, capaz de trespassar um bisonte de lado a lado. — «Presta atenção, filho».
— Diga.
«— Aí vai. Pega-se no cartucho e tira-se o projétil do invólucro. Uma vez separado, empregas a pólvora para cobrir a ferida. Em certas ocasiões, sangra tanto que são precisas várias cargas de pólvora... Quando o ferimento está bem coberto de pólvora, aplica-lhe um fósforo. Grande invento os fósforos: basta esfregar! Bom. Custa um bocado. Cheira a carne de vitela chamuscada. E é a nossa carne, filho! Mas que mais pode pedir-se? Assim, a ferida transforma-se num bife grelhado... e não sai nem urna pinga de sangue! Com respeito à infeção, conheces as oito ervas comanches que evitam a formação de pus? Eu ensino-te...»
Naquele deserto salino não havia ervas comanches de nenhuma espécie, porque as manifestações vegetais escasseavam assombrosamente, e reduziam-se a murchas plantas vasculares da família das cactáceas.
Para atalhar a hemorragia e não acabar exangue, Link despojou-se da camisa. Utilizando uma pedra, esmagou alguns cartuchos e formou_ um regular montinho de pólvora. Com ela regou a dorida espádua.
Ato contínuo, aplicou um fósforo, berrou de dor ao sentir-se assar vivo, o irritante cheiro a carne queimada nublou-lhe a razão... e perdeu os sentidos.
Um tratamento selvagem, completamente bárbaro. Mas, quando recuperou os sentidos, verificou que as dores tinham cessado e que se encontrava muitíssimo melhor. O simiesco Loving dissera a verdade. Todavia — é bom explicá-lo — o mal ficara no interior. Dentro da ferida cujos bordos tinham sido fechados com pólvora e fogo.
Meio recomposto da sua prostração de chumbo, cavalgou até Doole onde se abasteceu. As pessoas olhavam com estranheza o seu primoroso revólver. Aquela coronha... esteve tentado a desfazer-se da arma. No entanto, ainda que fosse estúpido, devia confessar que lhe ganhara estima.
Nunca encontrara um instrumento para matar com um acabamento tão perfeito. Agora o «Colt» fazia parte de si próprio. Perdê-lo seria como se lhe arrancassem um dedo, uma orelha, o nariz...
De Doole seguiu para Millersview. Ali o perigo era muito maior. Viu cartazes com a sua descrição pregados em algumas paredes!
Os avisos da Lei cavariam a sua desgraça ao menor descuido. Voltava a sentir-se mal, extremamente fraco. Mas empreendeu o caminho para a distante Paint Rock. Só nessa cidade poderia considerar-se completamente a salvo.
Durante a cavalgada desmaiou duas vezes. Dois avisos certos sobre a gravidade do seu estado. Não lhes deu atenção. O primeiro foi breve. O segundo demasiado prolongado para pressagiar senão funestas consequências.
No entanto, não havia remédio. Tarde demais para assustar-se e pensar em retroceder. O deserto estendia-se, dominador, pelos quatro pontos cardiais.
Ardiam-lhe os castigados olhos. Sabia que tinha febre. Os lábios gretados, a pele a escaldar, o olhar lânguido, sem luz, davam-lhe ao rosto uma expressão de completo abatimento.
Ainda que nunca chegasse a inteirar-se disso, Link Grinter perdeu a partida por obstinar-se em prosseguir na fuga. Em Millersview — não obstante o risco de ser detido — desprezara a salvação. Necessitava de cuidados médicos; nada de bruxarias bestiais de carroceiro. Continuando a viagem, lavrou a sua desgraça e assinou a inexorável sentença de morte. Se pudesse contemplar-se a um espelho, não daria pela sua pele nem cinco cêntimos falsos.
Além disso, sem reparar, desviou-se da rota. Deixou a direção noroeste. Por aquele caminho nunca alcançaria Paint Rock. Nunca.
O terceiro desmaio, o verdadeiramente perigoso, atacou-o a um anoitecer. As estrelas, lutando contra o pôr do sol, esforçavam-se por brilhar sobre a abóboda impressionante do firmamento. Uma dor forte, lancinante, perfurou-lhe a cabeça. Uma dor interna, recôndita, mil vezes pior que a física. Não pôde manter o equilíbrio... e resvalou da sela.
A cem metros de distância, talvez por um desses prodígios da natureza que mais parecem milagres, corria um regato de pequeno caudal. Os sinais da humidade entraram pelos dilatados olhos do alazão que iniciou um trote rápido, acicatado pela promessa líquida que atuava como um íman sobre o seu sedento ser.
Link, caído no chão, ouviu o retumbar do galope e gritou roucamente. O saco do dinheiro estava nos alforges. Fugia com o animal. Fugia.
Não conseguiu mover-se de onde estava. Nem sequer sacar o revólver. Caiu a noite. No escuro as suas dores recrudesceram. Teve medo. Um pânico irracional e louco. As trevas horrorizavam-no. O cavalo não voltou para o seu lado. Uma vez acalmada a sede, livre do cavaleiro, pôs-se a correr para onde o levava a vontade, mordiscou uns rebentos raquíticos que cresciam junto às margens do arroio... e perdeu-se no deserto.
Quando nasceu o sol, Link Grinter desistiu dos seus inúteis esforços para mover-se. Tudo lhe era indiferente! Entre névoas, baçamente, verificava que não continuava a cavalo. Que o animal tinha fugido... levando os maços de notas!
Mal respirava. O calor que tombava do céu e o daquele chão de forno consumiam-no. Dinheiro? Bah!... Para que queria o dinheiro no deserto? Só Paz. Uma morte tranquila e sem dor.
As costas eram uma autêntica brasa. Uma chaga candente e insuportável. Anoiteceu outra vez antes de que no seu dorido cérebro entrasse a evidência. O vagabundo admitiu então, dominado por brumas mentais, que se acabara o seu errar por sendas ignotas. Que chegara ao final da viagem. O sol calcinaria os seus ossos e os corvos debicariam o seu cadáver. A ideia já não o aterrorizou. Morrer era uma libertação, entre tantas torturas.
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O homenzinho miúdo, de cara de rato e fato miserável, cavalgava em pelo uma égua velha, esquálida, com o desenho das costelas marcando-lhe o esqueleto em pronunciado relevo. Peter Brown estranhou ver o alvoroçado bando de corvos. Ato contínuo meteu calcanhares à égua.
O trote cansado do animal afugentou as aves de rapina e revelou aos olhos do cavaleiro o vulto que alterava a lisura do deserto. Desmontou e aproximou-se do cadáver. Sem escrúpulos, colou-lhe o ouvido ao peito. Sorriu, mostrando os dentes amarelos e desiguais.
Link ainda vivia. Talvez guardasse no coração urna reserva inesgotável de energias. Peter Brown viu-lhe as costas de pele esticada pela carne esponjosa. Viu as bicadas dos corvos. A inflamação purulenta. E a gangrena.
Apesar disso, não consentiu em deixar morrer o desconhecido.
Carregou-o na égua e levou-o até ao regato. Humedeceu-lhe a testa, fê-lo beber água e esperou em vão que ressuscitasse do letargo.
O ferido queimava como o rescaldo de uma fogueira. Era, na verdade, um rescaldo do fogo vivo e crepitante de antanho. Resolvido a salvá-lo ou pelo menos a tentá-lo, voltou a atravessá-lo na égua que tomou o caminho do seu rancho.
Maria e os sete pequenos — mais esfarrapados do que o pai — fizeram-lhe uma receção de boas-vindas, cheia de gritos e risos. Era sempre assim no seu regresso.
Pouco a pouco, assim que foram atentando, na figura oscilante que pendia da sela, a euforia decresceu. Maria, consciente do seu duplo dever de esposa e mãe, ordenou aos pequenos que se retirassem. Quando Peter parou a égua em frente do casebre de adobe que constituía o seu humilde rancho, estavam sós, frente a frente, com um moribundo entre eles.
— Encontrei-o a duas milhas daqui — explicou o marido.
— Morto?
— Pouco lhe falta.
— Faremos por ele o que for necessário — resolveu a mulher. — É o que tu queres, Peter. Tens alma de samaritano. Conhece-lo?
— Não. Deve ter vindo de longe. Mas não encontrei o cavalo. Sem dúvida, trotou ao longo do ribeiro e extraviou-se.
— Que tem?
— Dois tiros nas costas — disse Peter, indicando com um gesto que o ajudasse a descê-lo do cavalo. — É o primeiro que recolhemos nestas condições. O sol, a sede e o pó fizeram o resto. A ferida cicatrizou. Creio que deve ter utilizado o fogo para cicatrizá-la... Contudo, continua infetada por dentro.
— Gangrena?
Brown fez que sim. Não voltaram a falar até o colocarem na velha cama de coinfecção caseira.
Os rapazitos, que revoluteavam em torno num borboletear de curiosidade, foram afugentados por Maria. Ela, eficiente e pressurosa — porque uma mãe carregada de filhos nunca perde a serenidade e se curtiu em tarefas que abarcam todo o caseiro caleidoscópio de prementes necessidades —, acendeu o lume, pôs a ferver um grande caldeiro com água e dispôs tiras de pano branquíssimo que ia rasgando de um lençol. Água esterilizada e ligaduras. Constituíam cinquenta por cento da primária assepsia operatória. Os outros cinquenta — na opinião de Maria — conseguiram-se acendendo uma velinha ao pé de uma imagem da Virgem, talhada em vermelha madeira de cedro.
Peter, fumando um cigarro, contemplava a próxima perspetiva do deserto, árido, enorme, devorador como umas fauces malignas.
Eles, na sua pobreza, tinham ajudado mais de um viajante perdido na imensidão estéril. Link Grinter não fora o único a receber cuidados das mãos ásperas mas carinhosas de Maria, a mestiça.
Sim. A esposa de Peter era mestiça. Por isso viviam ali. Longe das povoações e afastados da sociedade. Extraindo à terra dura parcas colheitas de milho e centeio. Tal como renegados.
Os seus filhos ainda não conheciam Eden, a aldeia mais próxima, distante umas quinze milhas — porque quando tinham que efetuar compras de sementes ou vendas de frutos, o próprio Peter se ocupava disso.
— A água está pronta, Peter — anunciou Maria. —Começamos?
Chamava-lhe, indistintamente, Peter ou Pedro. Maria jamais poderia esquecer a sua ascendência hispânica. Tinha imensas saudades do México natal. Mas compreendia que a sua obrigação era estar junto do marido, onde quer que fosse.
— Sim. Traz as facas para abrir. E a garrafa de aguardente. Cuidado, Pedro. As lâminas estão ao rubro.
— Diz aos pequenos que não venham para aqui. Não é espetáculo para eles.
— Já pus o Tomás em chefe do bando. Dando poderes a um, deixam-nos logo em paz.
— Não sei o que faria sem ti neste mundo complicado.
Ela agradeceu a lisonja com um leve franzir de lábios. Como pessoa prática no ofício, Maria despiu a camisa a Link. As cicatrizes, completamente ulceradas, infundiam pânico. O pulso batia muito debilmente, apagando-se. Ardia em febre.
As condições físicas não aconselhavam a intervenção e o casal, de um modo tão rudimentar como intuitivo, presumia que as chagas absorveriam qualquer tipo de germes patogénicos. No entanto, como Peter observou com acerto, não existia outra opção.
— Não vai durar muito, Maria — disse. — Estes chumbos estão a matá-lo a toda a velocidade. Extraí-los é o único remédio. Se suportar a operação, talvez se salve.
— Confiemos em Deus. Confiemos n'Ele. Vamos.
A afiada faca praticou uma punção, por onde brotou um jorro de líquido amarelo-esverdeado. A aguardente atuou como desinfetante, e as ligaduras de Maria — pobres compressas daquela não menos pobre sala de operações — estancaram o sangue.
Peter Brown sondou, remexeu, e usou os dedos como pinças. As duas balas, depois de impaciente manobrar, foram extraídas do seu alojamento orgânico. Os lábios Link não deixaram escapar nem um gemido. O seu esta de completa inconsciência constituía a melhor das anestesias.
Naquela noite, Maria velou-o sem lamentações. Os pequenos dormiam. Aquela mulher possuía o dom maravilhoso de se multiplicar à vontade sem descurar nenhum detalhe. Peter, inquieto, fumava, deitado ao fresco do deserto, no alpendre da casita, sobre a manta multicor, de tecido índio. As horas pareciam ter-se detido. A espera acabou por abater-lhes o ânimo.
Quando amanheceu, Grinter continuava pálido, sem sentidos, e consumido por uma febre elevada.
— Morre — repetiu ela com o fatalismo esmagador dos convencidos.
Puseram-lhe panos molhados na testa. Fizeram-lhe uma sangria. Inútil. A febre não desceu. Link, cadavérico continuava com as pálpebras cerradas e o coração batendo com força. Consumia-se em crispações silenciosas, como o toco final de uma vela de sebo.
Dois dias e duas noites durou a agonia. A família Brown, do primeiro ao último dos seus membros, viveu pendente do desconhecido. Jamais souberam o seu nome. Por fim, sempre em silêncio, começou a adquirir rigidez e o seu corpo perdeu calor, esfriando, até ficar gelado de todo.
O vagabundo Grinter morreu tão ignorado como vivera.
Na sepultura aberta perto do casebre só houve uma cruz tosca, confecionada por Maria com dois paus torcidos. Não inscreveram nenhum nome. O coldre com o revólver de coronha cor-de-rosa foi tudo quanto restou do forasteiro.
E como os Brown eram uma família pobre, necessitada e esfomeada, Peter compreendeu que nada ganharia se guardasse essas duas coisas como recordação.
Na semana seguinte, na sua viagem a Eden para vender os sacos de centeio no armazém geral «Strafford», iria visitar «mister» Wooden, o prestamista e trataria de conseguir alguns dólares. Os pequenos gastavam mais do que Peter conseguia tirar das suas mirradas colheitas.
O revólver de Lee Dunham trazia a desgraça aos seus possuidores. Mas modificar-se-ia alguma vez aquela má estrela para conceder, ao menos, uma pálida centelha de felicidade? Talvez.
Em Eden, dias mais tarde, um homem bom iria precisar daquele revólver para vender caro a vida.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

BIS130. Cap V. Um presente para Grinter

Desde o primeiro momento que gostou de Brady. Casas grandes, de madeira — construídas por pessoas que tinham pressa de se incorporar à nascente civilização do Oeste —ruas amplas, muitos armazéns, estábulos públicos, «saloons» atraentes, e hotéis à escolha.
Link Grinter escolheu o de melhor aspeto. A tabuleta era um verdadeiro poema, pois nela podia ler-se: «PARADISE HOUSE».
O alpendre, o passeio de tábuas, o local para atar os cavalos, a fachada resplandecente e as janelas com vidros sem poeira, gritavam aos quatro ventos hábitos de esmerada limpeza. Era exatamente do que ele precisava...
Boa comida, banho abundante, lençóis limpos... e descanso. Semicerrou os olhos voluptuosamente. Umas férias pagas pelo cadáver do deserto. Uma paragem no incerto caminho da sua vida incómoda. Ria feliz, satisfeito do mundo ao pôr o pé em terra.
O sorriso ainda lhe pairava nos lábios quando apoiou os cotovelos no balcão da Receção.
— O melhor quarto — pediu.
O empregado farejou o futuro cliente e não conseguiu
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definir se se encontrava em frente de um produto híbrido de ovelha e ser humano... ou se era o próprio diabo, com barba e pó, quem lhe atanazava o nariz com uma mistura de eflúvios absolutamente malcheirosos.
O empregado perguntou:
— O melhor?
— Bom. Ficarei com outro se esse estiver ocupado — condescendeu Link.
— Reservamo-lo sempre, mas...
— Mas?
— Quero dizer... talvez tenha sido mal encaminhado. Precisamente ao fim da rua há o «Hotel dos Viajantes». Creio que lá o senhor encontraria...
— O hábito não faz o monge, amigo — atalhou de bom humor. — Este senhor que aqui está, e que sou eu, nada em abundância. Ponha uma pinça no nariz, deixe de olhar-me como uma alma do outro mundo... e inscreva-me aí no livro. O aspeto modifica-se. Pagarei um mês adiantado se isso lhe dá alguma tranquilidade. Quanto?
O empregado não falou. Link acabava de colocar o saco sobre o balcão de nogueira polida e extraiu um maço de notas. Estendendo-o com um gesto olímpico, perguntou:
— Chega?
— Sim, sim. Inscrevê-lo-ei no registo por sessenta dias. Se o senhor deixar de honrar-nos com a sua presença antes de se cumprir o prazo, a direção do hotel tratará de devolver-lhe a importância respetiva.
— Bem — resmungou Link. — Entendido. Quero tomar banho. Com água quente e sabão, hem? E tudo à larga. Diga a um barbeiro para vir dentro de duas
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horas. Que traga o necessário para cortar-me o cabelo convenientemente.
— Sim, sim...
— Lembre-se disto: não se assuste mesmo que me veja comer por dois, dormir horas a fio c divertir-me à barba longa. Até é possível que apanhe uma bebedeira fenomenal.
— Muito bem, senhor. O seu nome?
— Link — riu-se de orelha a orelha. — Link Grinter.
Os seus desejos foram ordens para o eficiente pessoal do «Paradise House». Teve banho, barbeiro, comida de rei e descanso num leito nupcial quase tão alto como ele, com. dois enormes colchões de lã tão fofa como algodão. O porteiro fez correr o aviso para não incomodarem «mister» Grinter mesmo que o vissem cometer algumas excentricidades. Talvez tivesse encontrado um filão de oiro. No Oeste nunca é seguro julgar as pessoas simplesmente pelo seu aspeto físico.
À tarde, no «General Store» de Brady, o forasteiro adquiriu um fato novo, incluindo chapéu e botas. Tudo da melhor qualidade. À noite, depois de um jantar em que correu abundantemente o champanhe, sentou-se à mesa de «poker» do «Flame Saloon», e esteve a jogar com uma sorte tão maravilhosa que ganhou um apetitoso monte de notas. De um «cavalheiro elegante» ninguém se atreveu a suspeitar que marcasse as cartas com as unhas. Lá diz o rifão: o dinheiro corre sempre para onde há dinheiro. Assim acontecia.
Mas foi ali, no «Flame Saloon», que um jovem de olhos perscrutadores e aspeto duro passou quase uma hora a observá-lo. Parecia deleitar-se a arquivar mentalmente todos os seus gestos. De certo modo era tão pouco
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perspicaz como os jogadores de «poker», visto que não se apercebeu das habilíssimas trapaças do sorridente forasteiro.
Chamava-se Hanson. Fumava cigarros, chupando-os até quase queimar as pontas dos dedos. No coldre tinha um belo revólver com seis cápsulas de «45» no cilindro. E, além disso, brilhava-lhe na camisa uma insígnia de prata.
O comissário Hanson, cumprida a sua inspeção ocular, fez algumas perguntas subtis, agradeceu e saiu do «Flame Saloon» sem pressas. Ninguém reparou na sua saída.
A pé, passeando e desfrutando da serenidade da noite estival, encaminhou-se até ao escritório do xerife Cameron.
O veterano Cameron encontrava-se ali, lubrificando um rifle de repetição, cujo mecanismo disparador aparecia disseminado sobre a mesa, no meio de uma garrafa de óleo parafinado, camurças secas e cartuchos extraídos da câmara.
— Olá, Hanson — saudou. — Ainda levantado?
— Olá, xerife. Fiz a ronda do regulamento. Bom costume..., pelo menos por esta vez. Deu fruto. Creio que temos cá o tipo que assaltou o comboio.
Disse-o com o mesmo rosto impassível. Lenta e conscienciosamente.
— Sim?
Cameron também não denunciou emoção alguma. Simplesmente, deixou de esfregar o conjunto lubrificado do gatilho, mola e percutor. Era pessoa cauta e tranquila. Segura como o caminhar das tartarugas.
— Sim — confirmou o comissário.
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— Vejamos. Que é que te levou a essa suposição?
— Tudo. Jovem, alto, com um revólver de folhas de nácar cor-de-rosa. Perguntei a vários clientes de Merkel. Chegou esta manhã. Trazia barba e pó de três anos.... Hospeda-se no «Paraíso». Trocou as suas roupas velhas por um fato citadino. Os que o viram garantem que trazia um casaco de couro. E alguém, suponho eu, deve ter-lhe visto o dinheiro, dado que obteve um quarto naquele hotel.
— Podíamos perguntar a «mister» Livermor. Tem boa vista. E é o dono do hotel.
— Pois podíamos, xerife. Permite que me ocupe do assunto?
— Está bem. Mas com calma. Ele ainda agora chegou. Não há-de pôr-se já a andar. Temos tempo para fazer averiguações. Senta-te, Hanson.
— Não estou cansado.
— Senta-te — insistiu. — Monto o rifle e saímos a dar urna volta. Acabo em dez minutos.
— Muito bem.
Cameron montou o rifle como um perfeito técnico. Guardou-o. Dez minutos certos. Saíram, então, a dar a volta, e fizeram averiguações.
Não havia uma falha na versão de Hanson. Assim, pois, de mútuo acordo, dirigiram os seus passos para o «Paradise House».
«Mister» Livermore, proprietário do hotel, e o empregado, «mister» Bastow, corroboraram também quanto já sabiam: casaco de cabedal, revólver inconfundível e um saco de lona. O dinheiro com que pagara antecipadamente a hospedagem era — que coincidência! — todo em notas
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de dez dólares. No ânimo de Cameron já não restavam dúvidas.
— Obrigado — disse. — Queiram retirar-se, por favor. Tentaremos prendê-lo sem armar escândalo... para bem dos senhores e da clientela do hotel. Boas noites, «mister» Livermore. Boas noites, «mister» Bastow.
Compreendendo a velada ordem encerrada na despedida, obedeceram submissamente. Link Grinter encontrava-se em cima, no amplo quarto do segundo andar. Num hotel de Dallas, Santo António ou Fort Worth seria considerado esplêndido. Ali, em Brady, era a mais régia «suíte» de que a povoação dispunha para agasalhar os seus visitantes distintos.
O xerife sacou o revólver e verificou a carga do cilindro de ação lateral. Em ordem. Voltou a encaixar o cilindro e devolveu a arma ao coldre.
— Eu subo — disse.
— Quatro olhos veem mais do que dois, xerife.
— Não discuto, Hanson. Mas, às vezes, quatro olhos são inúteis se olham na direção errada. Sai para a rua, e fica no passeio oposto, de vigia. Talvez esse Grinter seja um «águia». Poderás detê-lo se ele tentar fugir.
Hanson tinha por norma acatar as ordens de Cameron. O chefe não constituía nenhuma notabilidade na profissão. A calma outorgava-lhe um certo ar de pouca inteligência. Disparava medianamente, e, de resto, nunca atuava com violência se o delinquente se entregava em paz.
Mas num lugar como o Texas, onde os xerifes mor riam jovens e com as botas calçadas, Cameron estava naquela profissão há doze anos consecutivos. Hanson dispôs-se a cumprir o que lhe ordenava. Saiu para a rua, instalou-se num alpendre mergulhado em trevas e esperou. Se o xerife decidia assim, por certo que contava com poderosas razões de previsão. E homem prevenido...
Entretanto, degrau a degrau, Cameron subiu ao segundo andar.
O corredor estava iluminado pela luz avermelhada dos candeeiros de petróleo, instalados nos suportes da parede. Algum criado tinha baixado as torcidas e, por isso, a iluminação tornara-se mortiça. Cameron acionou a rosca do mais próximo do quarto de Grinter, e, ao subir a torcida, a luz tornou-se mais clara e límpida.
Então, suavemente, bateu à porta com os nós dos dedos. Usou a mão esquerda. A direita, caída sobre a coxa, roçava no coldre, pronta para «sacar».
Link contava os seus ganhos ao «poker» com um brilho cobiçoso nas pupilas. O facto de lhe baterem à porta a horas tão intempestivas, e a meio do silêncio noturno, sobressaltou-o.
— Que quer?
— Abra, por favor. Preciso de falar-lhe, «mister» Grinter.
— Não pode deixar isso para amanhã?
— Não. Lamento. É importante.
Guardou o punhado de notas na algibeira do casaco que tinha atirado descuidadamente para cima da cama. Perto, pendente da cabeceira, estava o cinto e o revólver metido no coldre. Libertara-se de ambas as coisas, assim que regressara, por motivos de comodidade.
Abriu a porta sem suspeitar do que avizinhava. A luz do petróleo arrancou centelhas da estrela do xerife. Não tinha contas abertas com a Justiça, mas não gostou de
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vê-lo. O brilho de uma insígnia legal é sempre incómodo para um vagabundo.
— Link Grinter? — Sou eu.
— Chamo-me Cameron.
— Estimo conhecê-lo, xerife.
— Não sei... talvez não estime tanto como julga. Você é forasteiro.
— Sim. E depois?
Cameron, vendo-o desarmado, foi afastando a mão do coldre.
— Lamento incomodá-lo — disse. — Mas deve acompanhar-me ao meu escritório. Preciso de cumprir uma formalidade. Preferia que o fizesse sem ruído. É tarde e...
— De que me acusa?
O xerife olhou-o bem nos olhos. Procurava observar neles sinais inequívocos de culpabilidade e surpreendeu-o a serenidade com que Grinter acolheu a pergunta.
— Assalto a um comboio — declarou.
— Enganaram-se no homem...
— Isso veremos no meu escritório. Tem de acompanhar-me, «mister» Grinter. Se justificar a procedência do dinheiro pedir-lhe-ei sinceramente desculpas. Nada me encantaria mais do que demonstrar a sua inocência.
O cérebro de Link funcionava com vertiginosa rapidez. Assalto a um comboio! Aquilo esclarecia as coisas. E de que maneira! O cadáver do deserto não era um «pony express»... nem nada semelhante.
Era um salteador. Um tipo perseguido pela Lei. Iam atirar-lhe para cima com as culpas alheias. E isso não era nada agradável.
— Dê-me o seu revólver — acrescentou o xerife. — Se
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é tão inocente como garante, não se preocupe. A Lei não julga levianamente. Dou-lhe a minha palavra de honra.
— Bem, eu... — Link encolheu os ombros. — Entre. A arma está ali pendurada na cama... entrego-me e acompanhá-lo-ei, naturalmente. Mas é um erro. Juro-lhe xerife.
— Acredito. Vejo logo quem mente e quem fala verdade. Uma série de lamentáveis coincidências, suponho. Esclareceremos tudo isso.
— Posso vestir o casaco?
— Sim. E obrigado pela compreensão. Simpatizo com as pessoas inteligentes...
Link, ainda que não o aparentasse, convertera-se num excitado feixe de nervos. A sua vida, vagabunda e aventureira, cheia de contínuos azares, proporcionara-lhe grandes ensinamentos.
Sempre, mesmo nos momentos mais tranquilos, permanecia alerta. Era como esses cães sem dono, espancados por todos, que acabam tão ariscos e perigosos como os coiotes. Sabia o que as pessoas pensavam dos vagabundos... e qual era o veredicto habitual. Não pagaria as culpas de ninguém. Tal como o pensou... o fez!
— Oiça... — começou o xerife surpreendido.
Paf! O punho direito, matemático, atingiu-o na ponta do queixo.
Cameron abriu os braços, cambaleou e esteve por um triz a cair na cama. Antes de conseguir recompor-se, o outro punho veio sobre ele com a violência de um coice de mula. Recebendo no estômago o impacto selvagem, dobrou-se para a frente e expeliu todo o ar que tinha nos pulmões.
Link firmou-se nas pernas. Não estava alterado. Desde criança que as brigas eram prato obrigatório na sua incerta existência. Um terceiro soco carregado de dinamite enviou o xerife contra a parede. Derrubou uma cadeira, caiu de bruços e permaneceu de barriga para baixo, imóvel.
Três golpes. E acabara-se a Lei!
Antes de se resolver a examiná-lo, Link empunhou o «Colt» e ergueu o percutor. O girar do cilindro, fixando uma bala na câmara e o ruído metálico do mecanismo de disparo foram para ele uma música angelical.
Voltou o polícia de rosto para cima. O sangue escorria-lhe do nariz e das comissuras dos lábios. Aqueles punhos acostumados ao atrito áspero da soga e às lides com o gado eram duros corno martelos. O xerife permaneceria inconsciente por algum tempo.
Tempo... Eis do que precisava! Tempo e distância.
Brady tornara-se-lhe subitamente aborrecida. Nem as casas, nem as ruas, nem o «Paradise House» tinham já atrativo algum. Desejou encontrar-se longe, nas rotas infindas da vagabundagem. No deserto. Junto aos catos, artemísias e creosotos. Sob a luz das estrelas que ilumina a maior habitação que existe: a planície infinita.
Não perdeu tempo. Enfiou o casaco, cingiu o cinturão--cartucheira e pegou no saco de lona. Puxando o chapéu para os olhos, saiu do quarto e enfiou pelo corredor. Um momento!
Não. Decididamente, não podia sair pela porta principal. Cameron talvez não tivesse vindo só. Retrocedeu e foi até à escada de serviço. Um vagabundo nato possui o dom do instinto em toda a sua extensão e finura. Chegou ao andar de baixo sem novidade. Depois, saltando por uma janela, penetrou no estábulo.
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Cheiro a cavalo. A coiro curtido e suado. A esterco.
Viu seis animais deitados. O seu, por contraste, parecia uma ruína de quatro patas. Os clientes do «Paraíso» não se distinguiam pela sua pobreza, e as montadas iam a par com a categoria dos proprietários. Link, disse de si para si.
— Se me hão-de prender por um assalto que não cometi..., cometerei agora algo que mereça realmente a corda de cânhamo. De vagabundo passara a grão-senhor. De grão-senhor, por paradoxo, convertera-se em ladrão de cavalos.
Escolheu um alazão de nobre aspeto. Fê-lo levantar com uma palmada na anca. Agitar de corpos. Um relincho. Dois...
Antes do terceiro, Link deitou-lhe sobre o lombo crespo a manta. Depois, enquanto os animais se remexiam assustados, colocou a sela, passou a cilha e meteu-lhe o freio.
Enfiou o saco num dos alforges. Apoiou o pé no estribo e saltou para o selim. Um roçar de esporas bastou para que o cavalo arrancasse. Bom cavalinho! Tinha asas nos cascos!
Não perdeu tempo a abrir a cancela do estábulo. Picou de esporas e soltou as rédeas... o alazão saltou-a com toda a limpeza! Sentiu-se feliz. Caramba, que cavalo! Era um cisne de patas ferradas.
O ressoar rítmico dos cascos foi, para o comissário Hanson, o mesmo que uma chicotada no rosto. Deu um salto no escuro do alpendre fronteiro ao hotel. Desatou a correr loucamente, aturdido por um pressentimento pungente, para donde lhe vinha o som do galope.
A cerca de metade da rua lateral que corria ao longo do «Paradise House», viu o cavaleiro. Cavalgava ao estilo vaqueiro, escarranchado e muito direito na sela. Não hesitou nem um segundo. Devia aproveitar agora que o alvo ainda lhe oferecia certa facilidade.
Deixou de correr. Apontou devagar, contendo a respiração. O ponto de mira centrou-se nas costas da silhueta móvel que se afastava. O braço esticado. A mão firme. A coronha colada à palma, o indicador curvado em torno do gatilho, sentindo o frio do guarda-mato. Pulso. Pulso e pontaria, Hanson!
Um, dois, três, quatro. Corriam os segundos e o bater do coração. Hanson comprimiu os lábios. Repugnava-lhe fazer aquilo. Disparar à traição é de cobarde. Mas quem lhe garantia que aquele bandido que maltratara dois empregados dos correios não tinha acabado com Cameron?
Bang! Um tiro. Bang! Outro. Bang! Um terceiro precipitando-se para sair do cano fumegante.
O galope interrompeu-se subitamente, denotando desconcerto. Foi um instante apenas, enquanto durou a oscilação do cavaleiro cujas mãos fortes se agarraram ao rebordo dianteiro da sela.
Quase em seguida, os cascos retomaram o seu matraquear. E o cavaleiro perdeu-se ao virar a esquina!
Não dispunha de meios para persegui-lo. Julgavam a captura tão fácil que tinham ido a pé até ao hotel. Onde arranjar um cavalo àquela hora? Além disso, o xerife podia achar-se ferido, agonizante. Hanson acabou por correr em auxílio do chefe.
O fugitivo não o preocupava. Dar-lhe-ia caça ao amanhecer. Em Brady, dispunham de um bom seguidor de pistas, um índio com faro. de cão. Tinha a certeza de que pelo menos uma das três balas atingira o alvo. Link Grinter fugia com um pesado presente de chumbo no corpo. Apostava o ordenado de um mês.
Na planície, voando literalmente sobre ela, um vagabundo afastava-se rapidissimamente da povoação. Voltava aos espaços imensos, abertos. Ao ar, ao sol e ao pó. Às regiões desabitadas. E voltava com dinheiro, com revólver, com liberdade. Link escapara vivo de um difícil atoleiro.
Mas havia sangue nas suas costas. Muito. Fluía aos borbotões. Não iria muito longe.