quinta-feira, 13 de outubro de 2016

KNS074. CAP II. A beldade que não apreciava fanfarronices

Revigorizado e fresco depois de se lavar na água gelada da bomba, Roy acabava de se barbear quando começaram a aparecer os primeiros de entre os seus camaradas, a quem cumprimentou alegremente.
— Caíste da cama, ou não estava bastante macia para ti?... — perguntou um rapagão bem parecido, de pernas compridas e ombros fortíssimos.
— O que aconteceu foi que tive de dormir encolhido... — respondeu Roy, no mesmo tom. — O dormitório não foi feito para pezudos, de maneira que, quando te estendes, não há lugar para mais ninguém. Devias dormir em pé, com uma perna dobrada.
Os outros rapazes riram-se.
— É boa ideia... — disse uma voz. — Com os pés que tens, não é fácil perderes o equilíbrio.
O visado atirou-lhe com água, e um momento depois armava-se uma batalha campal, entre risadas. Roy apressou-se a desandar dali.
De novo no dormitório, estava a acabar de abotoar uma camisa lavada, quando apareceu o moreno Frank.
Embora magro e de estatura meã, o rapaz dava uma impressão de agilidade e de força. Os seus olhos negros tinham um brilho penetrante; a face delgada parecia talhada em pedra, mas por um artista consciencioso e enamorado dos pormenores. Uma mulher considerá-lo-ia bonito, sem qualquer dúvida, e era precisamente a dureza das suas feições o que evitava que ele parecesse bonito demais. Estava já completamente vestido, e da cintura delgada pendiam dois revólveres negros, bastante baixos.
— Pronto?... — perguntou.
Roy tirou o cinturão-cartucheira do prego onde estava suspenso, e afivelou-o rapidamente.
— Pronto... — respondeu.
— Pois então mais vale tomarmos posições junto do refeitório. Estava na cozinha quando te vi sair, e vão chamar de um momento para o outro. Verás como se lançam todos para lá, piores do que uma manada de búfalos em fuga.
Os homens entravam de novo no dormitório, em grande algazarra, atirando com as toalhas e acabando de vestir-se a toda a pressa. Quase no mesmo instante ouviu-se o som vibrante de um «gong», que provocou alvoroço.
Entre risos, gracejos e empurrões, correram todos para o refeitório, sentando-se em volta da comprida mesa maciça que ia quase de um extremo ao outro do compartimento.
A comida era abundante, simples e nutritiva, acompanhada com café escuro e aromático. Os homens falaram pouco enquanto comiam, e acabaram rapidamente. Depois prepararam-se para a tarefa diária, selando os cavalos e verificando o equipamento.
Roy dispunha-se a fazer o mesmo quando o capataz o chamou.
— Vamos lá a ver, rapaz. Disseste-me que era o melhor cavaleiro do mundo, não foi?
Donovan olhou-o com alguma desconfiança, mas o capataz não parecia gracejar naquela altura.
— Bem, sei aguentar-me sobre uma sela, se é isso que quer saber... — respondeu, com cautela.
— Temos no curral alguns cavalos por domar. Três, exatamente. Sentes-te capaz da tarefa?
— Posso tentar.
— Muito bem. Será esse o teu trabalho de hoje. Se acabares depressa, podes descansar durante o resto do dia.
— Não me fio em você, chefe... — resmungou Roy, olhando-o com desconfiança. — Tanta amabilidade põe--me a pedra no sapato.
Uma ruidosa gargalhada, atrás dele, fê-lo voltar-se rapidamente, deparando com o ganadeiro e a filha...
— Bons-dias... — cumprimentou o rapaz, tirando o chapéu.
— Faz bem em não se fiar em Tap, rapaz... — disse Marvin, ainda a rir-se.— É um velho matreiro, e entregou-lhe um osso duro de roer. Um desses animais vai ser muito difícil de domar.
A jovem estava encantadora naquela manhã, fresca numa blusa branca e de mangas curtas, que lhe deixavam a descoberto os braços morenos e bem torneados. Uma das suas pequenas e cuidadas mãos empunhava uma curta chibata com a qual batia ao de leve nas botas, e parecia muito distraída a olhar os rapazes que se preparavam para partir, alguns já a cavalo.
Olhando-a, Roy lembrou-se bruscamente que ainda não a tinha ouvido falar, e sentiu curiosidade de conhecer a voz dela, pensando se estaria de acordo com a perfeição do resto.
— Naturalmente não será uma novidade para si, presentear o trabalho de domar um cavalo bravo. «miss» Marvin... — disse ele. — Mas há alguma coisa de excitante em todas as lutas, não é verdade?
— Sim... — respondeu ela, secamente, com um ar desatento, sem o olhar.
Roy não se sentiu satisfeito. O monossílabo era insuficiente para apreciar a voz, e por outro lado desejava que ela o olhasse para definir de uma vez a cor dos olhos, agora que estava suficientemente perto.
— Não me parece que esteja muito interessada... — comentou.
A rapariga fitou nele os seus belos olhos que eram verdes e pareciam ter raios de sol, segundo o deslumbrado Roy os classificou mentalmente — embora a sua expressão fosse distante e indiferente, aqueles lagos de luz traíram-na por um instante, com um súbito brilho de admiração, ao olhar o novo vaqueiro, barbeado e limpo.
Roy tinha boa estatura e era magnificamente constituído. As suas feições eram firmes, e o queixo voluntarioso, quase agressivo, ao mesmo tempo que os olhos grandes e azuis, de expressão irónica, e o permanente sorriso, lhe davam um ar juvenil. Livre do pó e da barba do dia anterior, parecia dez anos mais novo, mal aparentando os vinte e três que então contava. Na sua face correta e bronzeada, destacavam-se os dentes perfeitos, brancos e fortes; e tanto isso como a sua figura bem proporcionada impressionaram profundamente a jovem. Todavia, por uma estranha reação, tratou-o sem a afabilidade e simpatia que lhe eram habituais quando falava com os vaqueiros ao serviço de seu pai.
— Toda a luta contém sempre alguma forma de brutalidade... — respondeu desabridamente, embora o tom não desfigurasse o timbre harmonioso da sua voz — ...e a brutalidade não me agrada, em nenhuma das suas manifestações.
 Roy notou claramente o antagonismo que havia na maneira de falar da jovem, e alargou o seu sorriso.
— Isso depende sempre dos contendores... — argumentou.— Seja como for, se ficar para assistir, tentarei evitar a cambalhota, para não a sobressaltar.
Ela lançou-lhe um olhar indecifrável porque as escuras e longas pestanas velaram a expressão dos seus olhos luminosos.
— Não pensava em si, mas sim no cavalo... — disse, sarcástica. — O animal é quem fica sempre pior.
Roy deixou escapar uma gargalhada alegre e forte, que era quase de desafio. Era um riso agradável, de homem novo e seguro de si mesmo.
Tanto o ganadeiro como o seu corpulento capataz tinham-se afastado, e naquele momento os vaqueiros partiam para as pastagens. Donovan mal o notou.
— Não se preocupe por isso... — disse ele, trocista, olhando ousadamente a rapariga. — Ninguém ainda me acusou de tratar com rudeza os cavalos... nem as mulheres.
Os olhos dela cintilaram, indignados.
— Decerto que não... — assentiu. — Duvido muito de que tenha saído do seu estábulo, antes de agora.
Furiosa, deu meia volta e afastou-se num passo vivo e airoso, que o trajo masculino acentuava, seguido pelo riso alegre do vaqueiro. E esse riso não contribuiu, decerto, para atenuar a sua irritação.
Roy ficou a vê-la afastar-se até que desapareceu no interior da casa, e mesmo depois continuou por momentos imóvel.
— Cuidado, rapaz... — disse ele de si para si, pensativamente. — Esse diabinho é a criatura mais bonita que encontraste na tua vida, e não deves esquecer-te que, agora, está numa situação muito superior à tua. Parece-me que o melhor será desandares daqui, quanto antes.
— Venha comigo, Roy. Vou mostrar-lhe os cavalos e poderá começar a trabalhar quando quiser.
A voz do ganadeiro arrancou o rapaz à sua meditação, sobressaltando-o ligeiramente.
— Agora mesmo... — respondeu, voltando-se para Daniel Marvin.
Foram juntos até um pequeno curral, rodeado por uma cerca forte e alta, ligado a outro maior e menos alto. O ganadeiro içou-se para uma das traves horizontais.
— Que tal lhe parecem?... —perguntou.
Roy imitou o patrão e olhou para os três cavalos que ali se encontravam. Os animais tinham-se refugiado no lado oposto cio curral e olhavam-nos entre receosos, desafiantes e curiosos.
Eram animais selvagens, disso não havia dúvida, e um deles ressentia-se da pata dianteira do lado esquerdo, sem dúvida porque lha tinham amarrado, dobrado, segundo o bárbaro costume de alguns caçadores. Contudo não se tratava, de «caudas de vassoura», como se designavam, no Oeste, os cavalos selvagens descendentes dos animais que os espanhóis levaram para a América, mas sim de três bons exemplares que tinham conservado a pureza do seu sangue através de muitas gerações. Um deles, sobretudo, uma égua não alto alta, mas de fina estampa e orgulhosa cabeça, ¡alhas pequenas e peito largo, era um soberbo animal pelagem castanha. Uma vez domada, limpa e bem cuidada, valeria à vontade cento e cinquenta ou duzentos dólares.
— Magníficos animais... — admirou Roy, sinceramente. — A égua, principalmente, é esplêndida.
— Paguei-os caros... Cento e cinquenta dólares pelos três.
— Só a égua valerá isso, quando estiver domada.
— O osso está aí. Não vai ser fácil domá-la, porque a destino à minha filha e não a quero aleijada. Bastante a maltrataram os caçadores a quem a comprei. Repare como lhe tremem os músculos, e o modo assustado como nos olha. Tem uma ferida na cabeça, consequência, sem dúvida, de uma pancada. Devem ter querido domá-la à paulada. Vai dar-lhe trabalho, Roy.
— Sem dúvida. Vou começar pelo alazão. O outro não pode ser montado agora, porque tem a pata magoada. Penso que devia ser visto por um veterinário.
Marvin concordou, com um aceno de cabeça.
— Ocupe-se agora do alazão, e depois do almoço pode ir à povoação e trazer o veterinário para ver o rosilho. O veterinário é um bom amigo, e há-de gostar de ver você montar a égua. Tem a certeza de que o conseguirá?
— Tenho a certeza de que o tentarei... — sorriu o rapaz.
— Bem, veremos como se entende com o alazão. Se, realmente, sabe manter-se na sela, poderemos preparar uma pequena festa para esta tarde. Temos poucas distrações por aqui, e um trabalhe desses merece alguma atenção.
Donovan pulou agilmente para o chão.
— Vou buscar a sela... — disse.
Não tardou em estar de volta com os arreios, e o próprio ganadeiro o ajudou a separar o alazão, levando-o para o curral contíguo onde o chão era mais macio e arenoso.
A atividade dos dois homens atraiu a atenção do cozinheiro, de um rapaz sardento que o ajudava e de alguns «peones» mexicanos que trabalhavam no rancho, além de umas quantas mulheres ou filhas dos mexicanos.
Um relance de olhos para a casa principal, um belo edifício de dois andares e largo portal, revelou a Dono-van um vulto feminino assomado a uma das janelas altas, de onde se dominava perfeitamente o curral.
Isso fê-lo sorrir.
Com a ajuda de dois «peones», que seguraram a cabeça do alazão, selou o animal que se agitava violentamente, tentando soltar-se. Quando acabou, montou de um salto, sem tocar nos estribos.
— Larguem-no!... — ordenou.
Os dois «peones» soltaram o alazão e lançaram-se em corrida para a cerca, onde treparam rapidamente. Mas apesar de toda a sua rapidez, quando ficaram a salvo já o alazão pulava como uma cabra, a cabeça baixa, as patas rígidas e o dorso arqueado.
O animal era forte e tinha ímpetos de luta, mas enfrentava pela primeira vez um cavaleiro e não tinha má índole, de maneira que Roy não encontrou grande dificuldade em manter-se na sela.
Durante toda a manhã ocupou-se do cavalo, passeando-o, cuidando dele, desmontando e voltando a montar. Durante algum tempo ainda, evidentemente, o animal defender-se-ia de cada vez que alguém o montasse, mas antes do almoço já estava praticamente domado.
— Bom trabalho... — felicitou-o Marvin, quando ele deixou o alazão entregue aos «peones». — Vejo que não nos enganou quando disse que sabia montar.
Donovan olhou de relance para a casa e viu que a jovem já não estava à janela, mas não se importou porque a tinha visto lá até quase ao fim do seu trabalho.
— Gosto de fanfarronar um pouco, mas não sou um mentiroso... — disse ele, a sorrir. — Conheço o meu ofício.
— Bem o vejo. Bom, suponho que você quererá ir arranjar-se antes de almoçar. Não tem muito tempo, e por isso é melhor apressar-se.
Roy apressou-se, efetivamente, banhando-se no rio e mudando de roupa. Não era um presumido, mas gostava de cuidar do seu aspeto e de andar limpo.
Não estava qualquer vaqueiro no rancho e por isso Roy almoçou sozinho, visto que os mexicanos preferiam os seus guisados e, além disso, quase todos eles tinham família e viviam em casitas afastadas, na base da colina ao alto da qual se erguiam a casa do rancho e as outras instalações.
Ao sair do refeitório viu o ganadeiro e a filha sentados no portal da casa. A um sinal de Marvin, foi reunir-se a eles.
— Pronto, Roy?... — perguntou Marvin, ainda antes de ele alcançar a escada.
— Quando mandar, patrão... — respondeu ele, embora só tivesse olhos para a jovem que, ao que sabia agora, se chamava Arabella Marvin.
Era a primeira vez que a via com trajos femininos, e sem dúvida valia a pena. Se o tinha impressionado quando parecia um rapazote esbelto, com as calças e o cabelo solto, agora, com um gracioso chapéu e um vestido simples, de busto cingido, que a fazia parecer um pouco mais alta, o efeito era deslumbrante. Não devia ter mais de dezanove anos, mas era já uma mulher. E que mulher!
Donovan soltou um assobio mudo.
— Minha filha também precisa de ir à povoação para fazer umas compras. Assim, atrele o carro ligeiro e venha buscá-la... — dizia Marvin.
Roí fez um esforço para esconder a satisfação que lhe causava a perspetiva de um longo passeio de carro, em companhia da jovem.
— Volto num momento... — disse.
Em poucos minutos atrelou um bonito trotador ao leve carro de altas rodas e dois lugares, que estava quase novo e muito bem pintado.
Parou o carro em frente da casa e, apeando-se, tirou o chapéu, numa reverência graciosa.
— Quando quiser, menina.
— Ela estava já de pé e disposta a subir para o carro, usas parou ao ver o brilho alegre que havia nos olhos azuis do vaqueiro.
— Será melhor que sele o seu cavalo... — disse friamente, levantando a cabecita orgulhosa. — Gosto de guiar, e à volta tenho alguns embrulhos a trazer. Não haverá lugar para si.
O entusiasmo de Roy sofreu um rude golpe, mas encolheu os ombros e dirigiu-se para as cavalariças.
— Que tens contra esse rapaz, Arabella?... — perguntou Marvin, quando o vaqueiro se afastou. — Pareces antipatizar com ele.
— É um fanfarrão insuportável... — respondeu ela.
Daniel Marvin curvou a cabeça, pensativo.
— Creio que não o julgaste bem... — disse ele, depois de uma breve pausa. — É claro que gosta de fanfarronar, mas nunca conheci um texano que não gostasse disso. Mas fá-lo de um modo alegre, como a rir-se dele próprio e dos outros, e não como tu dás a entender, visto que não tenta enganar ninguém. Eu gosto do rapaz.
— Pois eu não... — volveu ela, categórica. Talvez demasiado categórica.
O pai olhou-a, com os olhos semicerrados, como se quisesse averiguar o que havia de verdade na sua afirmação.
— Seja como for, deves evitar que a tua antipatia dê nas vistas... — aconselhou, com calma. — Trabalha para nós, e enquanto o fizer satisfatoriamente, tem direito a ser tratado com consideração. Mas... ai vem ele.
Pai e filha desceram os degraus do portal, e o ganadeiro ajudou a jovem a subir para o carro.

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