sexta-feira, 25 de outubro de 2019

ARZ140.10 O amor que não desapareceu

O jovem montou no que já considerava o seu cavalo e dirigiu-se sem demora para a casa dos arredores onde morava Ingrid. Caso surpreendente, também desta vez não teve necessidade de dirigir o cavalo. O próprio animal tomou tranquilamente o caminho da casa e parou diante dela, como se a conhecesse desde que nascera.
Normalmente, este facto teria chamado a atenção de Larsen; mas ia absorto nos seus pensamentos e não o notou. Quer dizer, teve a sensação de guiar o cavalo de uma forma maquinal, quando, na realidade, fora a montada que não necessitara de ser dirigida.
Quando o animal se deteve diante da casa, Larsen desmontou calmamente e aproximou-se do alpendre. Tinham descido já as sombras da noite e o ar parado dava ao ambiente uma doçura especial.
A casa, branca e limpa, salientava-se na penumbra com uma claridade quase irreal, proporcionando uma sensação de paz que tocou o fundo do coração de Larsen. Mas este disse para consigo que não vinha falar com Ingrid e sim com o seu marido, Devia esquecer tudo o que os ligara noutro tempo.
Ao bater à porta, porém, abriu-lha a própria Ingrid. Trazia um vestido preto, muito cingido às suas formas, e os seus olhos claros brilhavam com tanta limpidez como nos tempos em que os seus destinos foram comuns.


Uma multidão de recordações acudiu bruscamente ao cérebro de Larsen, que teve de desviar a vista para que ela não notasse a expressão, entre nostálgica e ansiosa, que lhe aparecera nos olhos. Depois murmurou, tentando que a sua voz soasse normal:
— Boas noites, Ingrid. Quero falar com Roland.
— Roland não está.
Larsen pestanejou, enquanto a ansiedade — uma ansiedade que não podia evitar — crescia nele e chegava a secar-lhe a boca. Foi então que descobriu que a sensação do amor impossível pode ser tão intensa como a sensação da morte.
— Demora-se muito?
— Não sei, tem andado muito preocupado com o caso do Banco. Não sei se vai fazer diligências para resolver o assunto ou se vai cavalgar pelas montanhas para desabafar as suas preocupações. O caso é que mal o vejo em casa. Eu também estou muito preocupada.
Fez um gesto impreciso e acrescentou:
— Não queres entrar?
— Se julgas que não te comprometo...
— Por favor, entra. És apenas um bom amigo.
Larsen desviou outra vez a vista para que ela não notasse a nuvem de tristeza que lhe toldara os olhos.
Um bom amigo... Só isso, depois de a ter amado tanto. Só isso depois de... Bom, para que pensar?
— Queria falar com Roland.
— Podes esperá-lo, mas talvez não venha esta noite. Não me podes dizer o que tencionavas dizer-lhe a ele?
— Preferiria que só ele o soubesse.
— Como quiseres, embora não compreenda que segredos podes ter com ele. A verdade é que... Roland não sente por ti muita simpatia.
— Trata-se de um assunto muito pessoal e que nada tem a ver com a simpatia que tenhamos um pelo outro. Voltarei quando ele cá estiver, se não vês inconveniente.
Larsen trazia o dinheiro numa velha e pequena maleta que lhe emprestara o dono do «saloon», e que pousara nos joelhos, depois de aceitar o convite de Ingrid para se sentar. Naquele momento, notou que os olhos da rapariga pousavam precisamente naquela maleta.
— Trazes alguma coisa para entregar a Roland? —perguntou.
— Não, nada... O que trago aqui são coisas minhas.
— É tão estranho ver-te com uma maleta na mão que quase não compreendo...
— Vocês, mulheres, são às vezes demasiado curiosas, Ingrid. Bom, talvez volte amanhã de manhã...
Ia a levantar-se, para se dirigir para a porta, quando uma voz rouca disse, da entrada:
— Muito bem, amigo. Talvez voltes, embora, sem dúvida nenhuma, seja com os pés para a frente. Mas a maleta vai ficar aqui.
Ingrid soltou um débil grito de surpresa e Larsen levantou devagar os olhos para olhar para a porta. Naqueles olhos não havia a menor expressão, o menor sentimento. Era, simplesmente, os olhos que teria uma máquina de matar. Mas os dois homens que haviam aparecido no limiar da porta não o souberam notar.
Eram dois tipos secos e altos, quase magros e desengonçados, mas que não tinham nada de cómicos. Não, nem por sombras. Bastava fitá-los nos olhos para ver que eram dois assassinos profissionais, dois autênticos coiotes dispostos a atacar.
Cada um deles empunhava um revólver e ambos apontavam diretamente à cabeça de Larsen. Este notou sem demora que o da direita era o mais perigoso. Adivinhava-se na tensão dos seus músculos que estava disposto a apertar o gatilho de um momento para o outro. Foi ele quem disse:
— Por que não contas à senhora que trazes aí cento e tal mil dólares?
Ingrid abriu a boca, espantada, e os seus olhos pousaram fugazmente em Larsen.
— Queria que só o teu marido soubesse — murmurou o jovem, embaraçado. —É um empréstimo que lhe desejo fazer.
— Então, querias sal...salvá-lo?
— Não disse isso.
—Ias dar-lhe quase tudo o que tem de restituir ao Banco...
— Trata-se de um empréstimo. Não tem importância.
— Sabes que... que Roland te fez muito mal. E, apesar disso, ias ajudá-lo a...
Um dos pistoleiros resmungou, impaciente:
— Esse não vai ajudar ninguém. O dinheiro que está na maleta pertence a um honesto cidadão chamado Percy e ele ganhou-lho jogando com cartas falsas. O lógico é que lhe dêmos agora o que merece e que recuperemos o dinheiro. Vamos, boneco, põe a maleta no chão, para te servir de almofada quando caíres morto...
Nem um músculo se moveu no rosto de Larsen. Dir-se-ia que fora talhado em pedra. Enquanto os seus inimigos falavam, ele fizera um cálculo rápido das possibilidades e convencera-se de que estas eram quase nulas. Não só não trazia revólver, como tinha o lado esquerdo imobilizado, e os seus inimigos estavam atentos e encontravam-se à distância ideal para o abater. Mas, morto por morto, tinha ao menos de tentar alguma coisa. E tentou-a! Fingiu que ia a deixar cair a maleta no chão e, de súbito, atirou-se ao inimigo da direita, ao mesmo tempo que saltava para o lado oposto.
As trajetórias das duas balas cruzaram-se justamente no sítio que ele ocupara um décimo de segundo antes, enquanto Ingrid soltava um grito e caía no chão.
Noutros tempos, Larsen e ela tinham-se encontrado juntos em situações difíceis e a rapariga sabia como devia actuar. O pistoleiro, que recebera todo o peso da maleta no ventre, vacilou um momento, enquanto disparava ao acaso.
Larsen, ao mesmo tempo que saltava, deu um pontapé na mesa que ocupava o meio da sala e fê-la voar em direção aos seus inimigos. A mesa foi atravessada limpamente por uma bala, enquanto os pistoleiros lançavam em uníssono um grito de raiva.
A faca de mato — única arma que Larsen possuía — voou ao encontro do coração de um dos seus inimigos. Este chegou a ver a lâmina de aço rebrilhar no ar e soltou um grito de horror, ao mesmo tempo que fazia um esforço para a evitar. Não o conseguiu, porém, e arqueou--se tragicamente para trás quando a faca se lhe cravou no corpo até ao cabo.
O outro, cego de terror, disparou outra vez, enquanto tentava dar meia volta, e a bala roçou a cabeça de Larsen.
O terror do segundo pistoleiro fora provocado também por Ingrid. A rapariga, habituada àquela espécie de situações, esboçara o gesto de tirar um revólver do decote. Com esse gesto arriscou a vida, pois tal revólver não existia, mas conseguiu o seu propósito de atemorizar o pistoleiro.
Larsen atirou-se ao chão e pegou rapidamente no revólver do morto. Apertou o gatilho quando o fugitivo se dispunha a disparar contra ele, do alpendre. As balas quase se cruzaram, mas só uma acertou no alvo.
O pistoleiro dobrou-se, ao mesmo tempo que soltava um leve gemido, e dois segundos depois ficou espantosamente quieto. A bala atravessara-lhe o cérebro e matara-o sem dor.
Larsen pôs-se em pé, ao mesmo tempo que sentia uma vertigem. A verdade é que ainda não estava bastante forte.
— Acho que vou guardar este revólver — disse, como único comentário, enquanto o introduzia entre a camisa e as calças. — Vou ajudar-te a tirar daqui os mortos, Ingrid.
Ingrid, muito pálida, também se estava a pôr em pé.
— Creio que só vim trazer a morte — acrescentou Larsen, num fio de voz. — Será melhor entregares a maleta a Roland e eu sair quanto antes da povoação.
— Larsen...
A voz de Ingrid era quente e trémula e fez-lhe recordar tempos já distantes, palavras e sentimentos que jamais voltariam, que pertenciam para sempre ao reino do impossível.
— Devo ir-me embora, pequena.
— Larsen... porque queres ajudar o meu marido?
— Porque me parece boa pessoa.
— As tuas palavras destilam tanta amargura que não sei se me deva rir ou desatar a chorar, Larsen.
— Bom, para que mentir? Agora já sabes o que contém essa maleta, e também sabes que ganhei o dinheiro ao jogo, embora sem fazer a menor batota. Quero que sejas feliz, Ingrid, e para que sejas feliz é indispensável que o teu marido saia desse apuro. De contrário, perderiam a casa, perderiam tudo... Mas não estou disposto a ouvir-te pronunciar uma só palavra de gratidão, pequena. Isso é apenas um empréstimo que o teu marido me pagará pouco a pouco.
— Bem sabes que não to devolverá...
Larsen encolheu os ombros.
— Bem, nesse caso pensarei que nem sempre os negócios correm bem a um homem...
Colocou a maleta no chão e arrastou um dos cadáveres até à. saída, mas aos seus ouvidos chegou a voz suave de Ingrid:
— Larsen, tu ainda me tens amor...
— Isso já não interessa agora, pequena.
Carregou um cadáver e depois outro, atravessados no lombo do cavalo. Para isso teve de fazer um esforço tremendo com o seu lado ferido, mas o ferimento resistiu. Começara a cicatrizar.
Pegou na brida do animal, para o conduzir a Deming, mas Ingrid saiu atrás dele, como uma sombra luminosa, quente e branca. Parecia pairar no ar, como uma aparição, e todos os seus pensamentos, todas as suas recordações de dois anos atrás, pareceram pairar com ela.
— Tu ainda me tens amor, Larsen — murmurou com voz entrecortada. — Então, por que me abandonaste? Por que me deixaste, para correr cegamente atrás de outra mulher?
Larsen não respondeu. Não se atreveu a responder. Continuou a caminhar devagar, levando o cavalo pela brida, até ser engolido pelas sombras.

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