segunda-feira, 17 de junho de 2019

BUF089.03 Um perigoso delinquente

Os vaqueiros do rancho «Quatro Ventos» estavam realmente assombrados ao comprovar a enorme capacidade ativa de Hugh Hallowan. A sua habilidade como cavaleiro resultava maravilhosa; manejando o laço era um consumado mestre e não tinha rival no uso do revólver. As «mouches» (1) que fez em várias ocasiões, sempre a pedido dos seus companheiros, chegaram a assombrar o próprio Comei Johnson.
Forjaram-se as mais descabeladas hipóteses com respeito à verdadeira personalidade daquela singular personagem. Houve quem, num excesso de mal-intencionada fantasia, o supusesse fora-da-lei, talvez um dos ladrões de gado que tantos «golpes» tinham dado na fazenda, enviado ali pelos seus companheiros de façanhas para estudar bem o terreno e planear futuras «operações». Naturalmente que quem assim pensava, evitava exteriorizar os seus pensamentos, com receio de que chegassem aos ouvidos do interessado.
Comei, o homem mais velho da equipa e, como é natural, o de mais experiência, não sabia o que pensar.
Não deixava de parecer-lhe estranho que um homem como Hugh, capaz de dar sota e ás ao melhor dos «cowboys», chegasse ao «Quatro Ventos» num estado tão miserável e se comprometesse a trabalhar por pouco menos do que por amor à arte.


Rusty Fremor, um dos vaqueiros cuja estatura e corpulência eram muito parecidas às de Hugh, emprestou-lhe um trajo de vaqueiro já bastante usado, mas que ao lado das roupas que vestia o vagabundo, podia considerar-se como um trajo de gala.
O esfarrapado pôs algumas objeções, alegando que aquilo era abusar da bondade das pessoas, mas acabou aceitando as reiteradas ofertas de Rusty.
Vestido daquela forma e uma vez liberto daquela espessa pelagem que cobria por inteiro as suas feições, Hugh parecia uma pessoa completamente diferente. Qualquer mulher não teria vacilado em catalogá-lo como um homem varonilmente elegante, apesar da dureza dos seus traços fisionómicos e dos maxilares qua-deados.
Depois de poucos dias de permanência no rancho, Hugh trocou com Rusty Fremor algumas palavras a respeito da sua verdadeira identidade. Foi Fremor quem iniciou a conversa, intentando levá-la imediatamente para o terreno das confidências.
— Vamos, Hugh, a mim não me enganas tu nem ninguém. Não és, com certeza, um agente federal ou um ganadeiro?
Hugh moveu a cabeça e sorriu-lhe com afeto.
— És um menino grande, Rusty, e a tua imaginação peca pela sua exuberância. O que te leva a crer que eu não sou o que aparento?
O vaqueiro coçou a cabeça, como se intentasse acelerar o curso da sua capacidade dedutiva.
— Pois... não posso dizer-to com exatidão. Parece inexplicável que um homem capaz de vencer Walter Grinnell e que conhece tão a fundo o ofício de vaqueiro chegasse ao rancho morto, de fome e...
— Não digas disparates, rapaz. Venci aquele tipo porque a sorte me ajudou e conheço o ofício porque... bem, porque o conheço. Além disso os agentes federais não entendem de fainas campestres nem montam cavalos como o «Esqueleto».
— Diabo! Isso não diz nada. O teu cavalo pode ter só ossos, mas é veloz como o vento e tem mais inteligência do que muitas pessoas. Eu trocá-lo-ia pelo meu, de olhos fechados.
Hugh permaneceu uns instantes em silêncio. De repente, ficando completamente sério e olhando em todas as direções como se temesse ser ouvido, disse quase a meia voz:
— Olha, Rusty, vou dizer-te quem na realidade sou. Pareces bom rapaz, como demonstra o facto de me teres presenteado com estas roupas e devo corresponder ao teu cavalheirismo. Serás capaz de guardar o segredo que quero comunicar-te?
O grandalhão de Rusty esforçou-se em dar ao seu rosto uma expressão de solenidade que por pouco não fez ao seu companheiro soltar uma gargalhada.
— Serei silencioso como um túmulo, Hugh! — exclamou o vaqueiro.
-- Nesse caso, ouve bem: eu sou um evadido do presídio, Rusty. A Justiça de vários Estados procura-me para me rodear o pescoço com uma boa corda de Cânhamo...
Rusty abriu muito os olhos e olhou o seu companheiro com infinito assombro. A revelação antolhou-se-lhe algo de excecional importância, uma vez que qualquer palavra sua podia levar o seu amigo ao patíbulo.
— Mas... mas... — logrou tartamudear. — É possível que tu... que tu sejas um perigoso delinquente?
— E que perigoso — juntou o jovem, dando à sua voz um tom lúgubre. — Incendiei ranchos, matei seres indefesos... Bem, não quero continuar a enumerar delitos, pois acabarias por ficar horrorizado. Qualquer pessoa que possuísse uma pequena dose de senso comum não teria acreditado uma palavra de quanto o forasteiro estava dizendo. Mas Rusty Fremor tinha tanto de grande como de simples.
— Eu não direi uma palavra a ninguém, Hugh, juro-te. Antes deixaria matar-me do que denunciar-te às autoridades de Valley Smoky... Porque tu estás arrependido, não é verdade?
Hugh, que tantos esforços tinha feito para conter o riso, apressou-se a responder:
— Podes estar completamente seguro disso, Rusty. Daqui por diante serei uma pessoa honesta em todos os sentidos. Agora, companheiro, vamos reintegrar-nos no nosso trabalho. Aquelas reses intentam tresmalhar--se e não devemos permitir que se aproximem do «Círculo de Prata>.
Os dois cavaleiros galoparam na direção indicada, sem pronunciarem uma palavra mais, atentos só em impedir que o grupo dos cornúpetos se afastasse mais do que a conta.
E foi desta forma que Rusty Fremor, o mais bruto e ao mesmo tempo o mais inocente dos vaqueiros do «Quatro Ventos», se inteirou do «terrível segredo» que se continha na vida .de Hugh Hallawan, a mais discutida personagem que jamais se apresentara em Valley Smoky.
(1) Tiro ao alvo.

Proposta de casamento que termina a murro
Wanda Kallings desmontou no pórtico do «Círculo de Prata>, fazenda confinante com a sua e propriedade de Edmund Kendall, o mais endinheirado fazendeiro da comarca. A jovem tinha matutado durante longuíssimas horas, tratando de achar uma solução para o difícil problema que se lhe apresentava, mas tudo resultara inútil. E decidiu visitar o seu credor. Talvez este, num arranque de nobreza que jamais tivera com ninguém, acedesse em conceder-lhe uma prorrogação, embora por uns dois meses, durante os quais ela poderia reunir o dinheiro de que necessitava e cancelar a hipoteca.
Saiu a recebê-la um vaqueiro com cara de salteador de diligências, que ficou a contemplá-la como se se tratasse de um ser extraterreno.
—Que deseja? — perguntou com uma voz na qual não vibrava nem uma nota de cordialidade.
— Ver o senhor Kendall. Está em casa?
O homem pareceu titubear uns instantes.
— Espere. Dar-lhe-ei o recado.
Voltou costas à jovem e internou-se no amplo saguão, sem pronunciar mais palavra. Wanda sentiu-se humilhada pelo tratamento depreciativo do indivíduo, mas teve de conformar-se, já que de nada lhe serviria incompatibilizar-se com ele, atirando-lhe à cara umas quantas palavras que lhe estavam a vir à boca.
Dois minutos depois voltou a aparecer o mesmo sujeito. O seu rosto não tinha perdido o ricto de hostilidade que adotara para receber a jovem.
— Pode subir. O patrão espera-a.
Deu meia volta e afastou-se. Sem lhe dar a menor importância, Wanda penetrou no edifício e começou a subir as escadas que davam acesso ao piso superior. Deteve-se ante uma porta de luxuosa aparência e bateu com os nós dos dedos.
— Entre.
Wanda reconheceu a voz do rancheiro. Empurrou a porta e penetrou no interior de um escritório mobilado com gosto. Apoiado na borda de uma mesa atestada de livros e papéis, estava um homem elegantemente vestido. Aparentava uns trinta e cinco anos. Era alto e de aspeto atraente, louro, de feições corretas, que se tornariam muito mais agradáveis se não fosse o eterno sorriso hipócrita e cínico que se afivelava nelas.
Ao ver a jovem, que se tinha detido a dois passos da porta, acentuou a cínica expressão do seu rosto e deu vários passos com a mão estendida em direção à porta.
— Caramba, menina Kollings, que surpresa tão agradável! Como está? Entre, entre e sente-se, por favor.
A jovem correspondeu ao cumprimento com a coragem de que era capaz, roçando apenas com os seus dedos a mão que o outro lhe oferecia. Não obstante, esboçou um princípio de sorriso.
— Estou muito bem, senhor Kendall — respondeu ela — se se quer referir à minha integridade física. O senhor também apresenta um aspeto esplêndido, pelo que vejo.
— Oh! Sim... Eu estou sempre bem no que se refere à minha saúde. Já o mesmo não posso dizer com respeito aos negócios.
A jovem esteve a ponto de responder-lhe que nada tinha perguntado sobre o assunto. Mas conhecia sobejamente o fazendeiro e não tardou em compreender o significado das suas palavras. Indubitavelmente, Kendall preparava- se para contra-atacar, antes de receber o primeiro ataque inimigo. Sem dúvida tinha compreendido os motivos da intempestiva visita e intentava preparar o terreno.
— Correm-lhe mal os negócios, senhor Kendall?
Fez-se um curto parêntesis de silêncio.
—Os negócios, menina, não costumam nunca ir à medida dos nossos desejos. E a mim, há um tempo a esta parte, torceram-se-me muito... Se a coisa continuar assim, qualquer dia venderei as minhas propriedades e partirei para sempre de Valley Smoky.
Wanda fez um tremendo esforço para não proferir um disparate. Tornava-se inconcebível aquela facilidade que o seu interlocutor tinha para dizer mentiras de tamanha natureza. Todos sabiam que Edmund Kendall era o homem mais rico da comarca. Possuía várias fazendas em cada uma das quais podiam contar-se por milhares as cabeças de gado. Mas todos sabiam, também, que a avareza do fazendeiro era muito superior à sua fortuna, embora esta fosse muito avultada. Wanda decidiu não dar largas ao assunto que a tinha levado a visitar o rancheiro.
— Vim precisamente para falar de negócios, senhor Kendall. É sobre alguma coisa relativa à hipoteca que meu pai, quando vivia, combinou consigo. O semblante do rancheiro pareceu iluminar-se.
— Muito bem, muito bem, menina. Suponho que vem para cancelar a dívida, não é verdade? Sendo assim, eu...
—Não vim pagar-lhe. Sabe o senhor melhor do que eu as coisas que estão correndo no «Quatro Ventos» desde há algum tempo. Vim solicitar-lhe uns meses de prorrogação, pois, como muito bem sabe, a data caduca dentro de dez dias. Tomei severas medidas contra os roubos que os ladrões de gado vinham realizando nas minhas propriedades e espero poder pagar-lhe quando vender os novilhos desta remonta. Por enquanto não estão em condições de serem levados para o Exército.
O sorriso desapareceu do rosto de Kendall, substituindo-se a sua habitual expressão de regozijo por outra de bem fingida angústia, como se o que acabava de escutar o afetasse diretamente.
— Não há dúvida de que é uma contrariedade, menina Kollings. Eu não tinha o menor conhecimento sobre o que me está falando — mentiu descaradamente — pois estou sempre atarefado com o que diz respeito aos meus assuntos particulares. Repito que é uma verdadeira pena isso que me conta.
—Pois bem, supondo que não esteja inteirado do que sucede na minha fazenda, que ignora por completo a terrível situação que estou atravessando, que responde ao meu pedido?
Kendall não respondeu imediatamente. Afastou-se da mesa e deu uns quantos passos pelo aposento, levando as mãos atrás das costas. O seu rosto tinha-se tornado de uma gravidade extrema. Por fim, detendo-se perante a jovem, disse em voz que em vão se esforçava por ser amável:
— Sinto profundamente não poder ser-lhe agradável, menina Kollings. Como anteriormente lhe disse, o rumo dos meus negócios deixa muito a desejar. Contava com esse dinheiro para efetuar alguns pagamentos, e isso traz-me uma amarga deceção... A culpa não é minha, acredite...
Fazendo um enorme esforço de vontade, Wanda manteve uma expressão de serenidade que em nada concordava com e sua angústia interior. Devia parecer forte ante os olhos daquele homem avaro e sem entranhas, que tinha ditado a desgraça de mais de uma família, guiado pelo seu afã de entesourar dinheiro, dinheiro...
— Sinto, então, tê-lo incomodado, senhor Kendall — disse a jovem com um tom de voz que ela mesma estranhou, ao mesmo tempo que se recompunha. — Se tivesse sabido que o senhor se encontrava numa situação parecida com a minha, não teria saído do «Quatro Ventos» para lhe falar deste assunto.
Quando se dirigia para a porta, foi detida pela voz do rancheiro:
— Não vê nenhuma outra forma de regularizar este aborrecido assunto, menina?
A rapariga voltou-se admirada.
—Não compreendo aonde quer chegar. Esgotei todos os recursos. As pessoas a, quem podia dirigir-me em semelhante transe acham-se em situação análoga à minha. A verdade é que não vejo forma de solucionar esta questão, só tenho pena de que o senhor não me conceda essa prorrogação que lhe pedi.
Edmund Kendall olhou fixamente a jovem, cravando os dardos dos seus olhos duros nas pupilas cinzentas dela. Fez-se um silêncio embaraçoso, que foi quebrado pelo rancheiro para perguntar:
— Wanda Kollings, quer casar comigo?
Disse-o assim, com a maior tranquilidade, como quem acaba de expor um negócio sem a menor importância e espera uma resposta categórica. Wanda ficou como se caísse das nuvens. Podia esperar tudo do opulento rancheiro, menos aquela proposta que acabava de fazer-lhe. Estaria a brincar com ela? Pestanejou umas quantas vezes, engoliu a saliva que tinha ficado armazenada na sua boca e tratou de dar à sua voz o tom mais firme com que foi capaz de falar.
— O senhor... o senhor zomba, não é verdade? Não posso tomar a sério...
Kendall interpretou erradamente a confusão da jovem. Julgou que Wanda estava perturbada pela emoção que lhe tinha produzido o que ele qualificava interiormente de «rasgo generoso».
— Eu não costumo zombar quando se trata de uma questão de índole tão delicada como a presente. Que responde? Aceita a minha proposta matrimonial ou rejeita-a? Não creio que a coisa lhe possa parecer assim tão estranha.
Wanda procurou serenar rapidamente, encarando de frente a situação. Não havia a menor dúvida sobre a veracidade de tão estranha proposta. O rosto de Kendall aparecia completamente sério, coisa bastante rara num homem como ele, déspota e orgulhoso, mimado pela fortuna. — Devo acreditar que o senhor falou seriamente, senhor Kendall — disse ela, por fim.
— E a minha resposta não pode ser mais rápida. Não posso casar-me consigo, nem com nenhum homem a quem não ame, embora possua todas as riquezas do mundo. Tão-pouco o senhor me quer a mim, pelo que a sua proposta me admirou duplamente. Quer ter a bondade de explicar-se melhor? Porque me elegeu a mim, havendo em Valley Smoky centos de mulheres jovens que se considerariam ditosas unindo-se a si pelo matrimónio?
Sem perder o seu aprumo, embora ligeiramente contrariado pela rotunda negativa da rapariga, brilhando-lhe nos olhos uma luzinha estranha, respondeu:
— Eu considero o amor como uma coisa secundária. É algo que vem com o tempo, sabe? Você está só, sem ninguém que a proteja, e eu necessito de uma mulher, pois vou a caminho dos quarenta e tenho de me decidir por alguma coisa concreta. Depois de fazer um, cálculo mental, concluí comigo mesmo que você é a mulher mais adequada para um homem com as minhas atividades. É forte, animosa, valente e nada a intimidará. Com um ponto de compreensão de ambas as partes, poderíamos chegar a um acordo. Além disso, como já me disse ao expor-me o objeto da sua visita, a situação que atravessa é francamente lamentável. Pois bem, você soluciona o seu assunto, visto que ao casar-se comigo toda a dívida fica anulada, e eu poderei viver muito mais tranquilo, sem ter de pensar no futuro num tema tão espinhoso como o do matrimónio.
Wanda estava indignada. Jamais passara pela sua imaginação, nem remotamente, a ideia de que o matrimónio se poderia tratar com tanta simplicidade, como se fosse uma partida de reses que houvessem de comprar ou vender.
— A sua proposta, senhor Kendall, e a forma de a expor, são do mais absurdo que se pode imaginar. Eu não gosto do senhor nem o senhor de mim. Acaso julga que o coração de uma mulher se pode comprar como se se tratasse de um objeto qualquer? Engana-se redondamente. Se não posso pagar-lhe, saberei conformar-me com a minha desgraça, mas não sonhe em fazer-me sua esposa valendo-se de tão pouco cavalheiresco procedimento.
O rosto frio e inexpressivo de Edmund Kendall recobrou a sua habitual expressão de cinismo.
— Você é a criatura mais orgulhosa que conheci — disse, dando à sua voz um tom acutilante e depreciativo. — Acabo de lhe propor a melhor solução para o seu difícil problema e recusa-a. Por quem se toma? Acaso julga que a sua pessoa vale esses vinte mil dólares que me deve? Além disso, se o que teme é perder a sua liberdade ao ver-se ligada a um homem por laços matrimoniais, posso oferecer-lhe algo melhor... — Ao chegar a este ponto os olhos do rancheiro brilharam malevolamente. — Se depuser essa atitude de rainha ofendida, talvez cheguemos a um acordo... Para começar, só lhe peço um pouco de amabilidade, que depois se pode ir convertendo em alguma coisa muito mais íntima entre os dois. Desta forma, você ficaria ganhando e eu teria... Bem, não sei se me compreende ou se é necessário que lhe fale com mais clareza...
A indignação não deixava respirar Wanda Kollings. Tinha compreendido perfeitamente a infame e canalha insinuação do fazendeiro.
— Você é... um cobarde... um miserável!...
Não pôde continuar. Mulher apesar de tudo, rompeu a chorar, sentindo-se só e desamparada, impotente para rebater os execráveis argumentos do malvado rancheiro. Kendall, impassível, apontou a porta com o dedo.
— Faça o favor de sair imediatamente. E tenha em conta que foi você que veio à minha casa para... seja o que for, entende bem? Eu não tenho a culpa de que você seja tão escrupulosa e afetada.
Na porta do escritório soou uma voz brincalhona, mas de acento ameaçador:
— Olá, olá. Chego a tempo de ver e ouvir um novo sistema de urbanidade para tratar com as meninas. Como uma só pessoa, Kendall e Wanda voltaram-se na direção em que devia encontrar-se quem falava.
A surpresa de ambos foi indescritível ao contemplarem a elevada silhueta de Hugh Hallowan desenhada na porta. O rosto do «vagabundo» aparecia iluminado por um risinho estranho, embora os seus olhos brilhassem perigosamente.
—Então!... Ficaram mudos de repente?
—Hugh! — exclamou Wanda com um tom de voz indefinido.
Era agora a vez de o rancheiro falar, cuja admiração ante a presença da singular personagem ultrapassava em muito a de Wanda. Avançando alguns passos, perguntou autoritariamente:
— Quem diabo é você? Como pôde chegar até ao meu escritório?
O interpelado deu um passo em frente, puxando a porta com o tacão da sua bota esquerda. Em seguida, contemplando o rancheiro com a mesma atenção como quem vai comprar um cavalo e quer convencer-se das suas excelentes qualidades, respondeu:
— Eu não sou nenhum diabo, mas sim um anjinho sem asas... e com um revólver no cinto. Respondida a sua primeira pergunta. Cheguei até aqui pelo simplicíssimo processo de subir a escada e guiar-me pelo ruído da conversa que sustentavam havia uns segundos. Liquidada a segunda pergunta.
— Mas...
—Ah! Sim...! Já sei o que me vai perguntar agora. Como é que me deixaram subir, não é verdade? Pois com a maior amabilidade do mundo, homem! O tipo que se encarrega de receber as visitas, foi muito simpático. O pobre queixava-se de uma insónia crónica, e eu, que sou um mar de complacência, receitei-lhe um soporífero maravilhoso. No entanto ainda tenho algumas doses — e ao dizer isto, Hugh mostrou ao rancheiro o seu enorme punho fechado.
A situação era digna de ver-se. Por um lado, Kendall, que não sabia o que responder nem que partido tomar ante a extraordinária chocarrice do intruso, parecia ter perdido o uso das suas faculdades autoritárias, ao passo que Wanda, não menos assombrada pela presença do forasteiro, contemplava a sua alta e atlética figura com os olhos esbugalhados.
Hugh Hallowan, entretanto, demonstrando uma serenidade e um domínio de nervos dignos do maior encómio, parecia dominar com a sua guerreira personalidade aquela situação anómala e instável. Dava a impressão de se achar perfeitamente à vontade no meio daquele ambiente, que pressagiava sem dúvida alguma a iminência de uma grande tormenta.
Fazendo um poderosíssimo chamamento à sua vontade, Edmund Kendall pareceu serenar um pouco, recobrando parte da sua equanimidade. Ergueu-se em toda a sua estatura e apontou a porta com o dedo.
— Você vai sair imediatamente da minha casa, entende? Ninguém o chamou aqui. Vamos, rápido, antes que me obrigue a corrê-lo a pontapés!
Hugh não se moveu, nem pouco nem muito. Mas, isso sim, o seu rosto zombeteiro sofreu urna rápida metamorfose. Os seus músculos faciais revestiram-se de uma insuspeita tensão e as palavras saíram dos seus lábios como dardos acerados:
— Tem você razão. Vou-me imediatamente daqui, pois sufoca-me o ar que se respira neste antro asqueroso. Mas antes vou-lhe pedir um favor. Acontece que, sem que o desejasse, ouvi tudo quanto disse a esta menina. Intentou manchar a sua honra com essa baba pestilenta que se escapa da sua boca. Bem, como única solução para o caso, torna-se necessário que você peça perdão das suas grosserias, e vai fazê-lo agora mesmo... Suponho que obedecerá ao meu «pedido», não é verdade? De contrário... Bem, de contrário, você mesmo verá o que se vai passar.
Enquanto o intruso falava, Kendall tinha-se ido serenando pouco a pouco, chegando a recobrar a sua total capacidade de homem duro e enérgico. Simulando levar a coisa para a brincadeira, recostou-se contra a mesa e olhou o intruso com olhos que pretendiam ser zombeteiros, mas que na verdade destilavam veneno a jorros.
— Assim pois, você converteu-se num esforçado paladino desta dama ultrajada? Vamos, a coisa não merece que a levemos a extremos melodramáticos... Antes de mais nada gostaria de saber exatamente a que veio você à minha fazenda e o que...
— Cale-se! — atalhou Hugh, avançando um passo para o seu interlocutor. -- Não ouviu o que lhe disse antes? Peça perdão à menina Wanda e não intente desviar a questão para outros pontos. Não ganhará nada com isso.
Interveio Wanda.
— Por Deus, Hugh! Não procure litígios com este indivíduo. É melhor que nos vamos quanto antes daqui... Este homem é capaz de tudo...
— E eu também, patroa. Por isso, quando esta manhã me disseram que viera aqui e a classe de tipo que é este bom senhor, não quis deixá-la só. Em qualquer caso, Cornell deu-me licença que viesse. — Voltou-se de novo para Kendall. — O quê? Não se decide? Então ver-me-ei obrigado a sacar a murros as palavras que lhe pedi.
Ao escutar as últimas palavras, Kendall deu rédea solta à cólera que tinha lá dentro. Não era cobarde, apesar dos seus defeitos, e tinha-se por forte. Se conseguisse vencer o seu inimigo ou contê-lo até que chegassem os seus «cowboys», coisa que não tardaria a acontecer, ia ter o prazer de o enforcar no meio das pastagens, alegando depois perante o xerife que o tinham apanhado a assaltar o escritório. Avançando até chegar a um passo do adversário. apertou os punhos furiosamente.
— Você vai engolir essas palavras imediatamente. A mim ninguém ameaça. Será você quem me pedirá perdão pelas suas bravatas.
Hugh sorriu, deitando o chapéu para trás.
— Bem, homem, bem. Isso agrada-me.
Interrompeu-se afastando-se para um lado e esquivando o tremendo murro que o rancheiro lhe dirigiu. Este inclinou-se para a frente ao encontrar o seu punho o vazio, mas imediatamente recobrou a posição vertical. Ajudou-o a isso um potente gancho da esquerda que se incrustou no seu queixo com surpreendente exatidão. Kendall encaixou o golpe sem grande prejuízo e dispôs-se a atacar de novo.
Wanda Kollings, vendo o caminho que as coisas levavam, julgou oportuno afastar-se para um lado, para evitar receber algum golpe perdido. Com a alma nos lábios, esperou o desenlace da peleja, pedindo a Deus que fosse Kendall o vencido, já que o vagabundo estava jogando uma vaza perigosíssima para a defender.
Os dois contendores lançaram-se numa furiosa troca de golpes. Kendall era mais alto, se possível, do que o seu inimigo e possuía uma fortaleza admirável. Notava-se à simples vista que não era aquela a primeira vez que lutava a punhos limpos. Mas a enorme capacidade combativa de Hugh não tardou a impor-se, anulando os esforços do rancheiro.
Ao cabo de três minutos, Kendall respirava com fadiga. Tinha um olho completamente negro e os lábios rachados, dos quais emanava sangue em abundância ao passo que Hugh, pela sua parte, apresentava um pómulo arroxeado e um pequeno volume sobre o sobrolho esquerdo.
Vendo que a coisa se prolongava mais do que a conta, o jovem acelerou o movimento dos seus braços. O esforço deu fruto. Kendall encaixou sete ou oito golpes em rápida sucessão, um dos quais o alcançou na mandíbula e o enviou contra a mesa, para dali resvalar para o solo.
O contacto da cintura de Kendall contra o bordo do móvel foi eficaz e doloroso em extremo, o que em conjunto com o terrível golpe que acabava de receber em pleno rosto permitiu que ficasse prostrado numa espécie de semi-inconsciência.
Hugh não perdeu tempo. Sem dar mostras de se ter fatigado, inclinou-se sobre o derrubado e a sua mão de ferro agarrou-o pela gola da jaqueta. Fazendo um violento esforço, colocou novamente o corpo do rancheiro em posição quase vertical. Kendall abriu os olhos e sacudiu a cabeça como um cão recém-saído da água. O jovem, sem que em nada decrescesse a sua atitude belicosa, abanou-o como se se tratasse de um boneco enquanto dizia com voz dura:
— Vamos! Peça perdão a esta menina ou desfaço-o a murros!
— Já está bem, Hugh! — exclamou Wanda, aproximando-se. — Deixe-o! Não vê que é meio-dia e os vaqueiros devem estar a regressar? Vamo-nos quanto antes.
Mas Hugh não fez o menor caso. Levantando quase no ar a alta figura do rancheiro, disse-lhe junto à cara:
— Obedeça, miserável, ou defenda-se como um homem!
Kendall intentou seguir o último conselho e fez um movimento lasso para golpear o jovem. Não chegou a lograr o seu propósito, recebendo em troca um soberbo «uppercut», que teria dado com o seu corpo em terra outra vez se não o sustivesse a mão do flagelador.
—Não me ouviu, javali asqueroso? Peça perdão a «miss» Kollings ou por Lucifer que o desfaço em pó! Kendall considerou-se incapaz de persistir na sua atitude. O castigo que aquele energúmeno lhe estava infligindo era demasiado severo para ser suportado. Abriu os tumefactos lábios com a clara intenção de falar, e Hugh soltou-o.
—Peço-lhe... menina. Kollings, que...
Não pôde continuar. Dobraram-se-lhe os joelhos e caiu de bruços, rodando em seguida pelo solo como carecendo de vida própria.
— Por Deus, Hugh — voltou a intervir a rapariga agarrando o forasteiro por um braço. — Vamo-nos, imediatamente! Esse homem não está em condições de falar...
O jovem não fez repetir a indicação. Olhou afetuosamente a sua patroa e moveu a cabeça, deposta por completo a sua atitude colérica.
— Tem razão. Vamo-nos. Se continuar mais um minuto nesta casa, acabarei por esborrachar a cabeça desse nojento.

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