domingo, 31 de julho de 2016

PAS647. A ansiosa espera pelo Cavaleiro da Noite

Velozmente, rompendo o silêncio com o golpear dos seus cascos, os sete cavalos atravessavam Silvered Valley (1).
Eram os «Cavaleiros da Noite», negros na escuridão sem lua, sinistros como a própria noite, portadores da ignomínia, quando não da morte.
Desciam dos contrafortes da montanha que fechava como uma cadeia purpúrea, o vale.
Sombras de uma realidade horrenda, demónios à solta, ávidos de sangue e de extermínio.
A sua passagem, nos ranchos e no povoado que atravessaram como centelhas, semeando uma chuva de chispas no sol endurecido, ficava marcada uma senda de terror.
Só quando caia a noite saiam da sua guarida ignorada, mas eles eram a Lei, uma Lei caprichosa e maldita, imposta à força de sangue e de fogo.
Silvered Valiey tinha lutado de início denodadamente contra a onda de crimes perpetrados pelos malfeitores, mas pouco a pouco, caldos os seus melhores homens, aterrados os outros, arruinados e saqueados os rancheiros, teve que dobrar-se à vontade dos misteriosos cavaleiros.
Nunca ninguém os tinha visto senão de noite, com os rostos cobertos por lenços até aos olhos, entre uma cortina de chumbo.
Os corcéis, esporeados sem piedade, deitando espuma pelas bocas, húmidos de sangue os flancos incessantemente feridos pelas esporas de aço, corriam separados, formando um círculo.

sábado, 30 de julho de 2016

POL120. O cavaleiro da noite

(Coleção Pólvora, nº 120)


Um homem é maltratado por uma série de rufiões que o deixam à beira da morte, mas, escapando por milagre, resolve voltar ao local da agressão e vingar-se. Trata-se de Jimmy, «o zaragateiro», designação que diz bem da força do indivíduo.
Jimmy entra em contato com uma jovem cuja habitação foi vandalizada e saqueada pelo mesmo grupo de indivíduos, apelidados de «Cavaleiros da Noite». Ao ver seu pai morrer às mãos deles a rapariga fugiu não sem antes o pai lhe confiar a identidade do chefe do bando. Conhecendo a sua história, Jimmy resolve ajudá-la. E tudo chega a bom porto, embora o nosso herói acabe por ser confundido com o Cavaleiro da Noite e pago por isso mais uma vez recebendo balas que procuravam matá-lo.

quarta-feira, 27 de julho de 2016

PAS646. A última missão do cavaleiro ferido (4)

Bastaram uns segundos para que o tenente Olson se encontrasse junto da sentinela e de Macleed. Encontrou o homem de vigia bastante agitado, apontando com o braço estendido para a planície que se abria, interminável, diante do pequeno forte.
— Um cavalo e um cavaleiro, senhor! — anunciou. — E repare em todos esses abutres.
O oficial compreendeu num abrir e fechar de olhos a situação difícil daquele desgraçado, a quem apenas a força da montada aproximava do forte. Voltando-se ao mesmo tempo que empunhava o apito que trazia sempre num dos bolsos, Mith levou-o aos lábios e emitiu um silvo prolongado que, momentos depois, o corneteiro repetia junto dos barracões que havia ao lado da cozinha.
Abriram-se as portas e os homens saíram em tropel. Segundos depois, corriam para as cavalariças, de onde não tardaram a surgir já a cavalo, enquanto a sentinela da outra torre havia descido para abrir a dupla porta que havia entre os postos de observação.
Macleed, entretanto, abandonara o alto da torre mal soara o apito de Olson e segurava sua montada e a do seu superior pela brida.
De um salto, Olson montou e esporeou o animal, que saiu lançado como uma flecha em direção àquele ponto que se destacava sobre a planície e cuja situação se podia ver perfeitamente graças aos abutres que, decididos agora a tudo, o rodeavam.
Efetivamente, um dos abutres havia-se lançado por fim sobre a cabeça do animal, desferindo-lhe uma furiosa bicada. O animal encabritara-se e, como consequência, o corpo do cavaleiro deslizava da sela para o solo, onde jazia agora estendido com os braços em cruz, olhando para um sol que já não podia ver.
Lançando grasnidos selvagens, o resto dos abutres preparou-se para se precipitar sobre o corpo do homem, já que o animal, ferido na cabeça, abanando o pescoço e escoiceando o ar, se afastava espantado, correndo a toda a velocidade para o forte, onde, segundo a sua intuição lhe dizia, se encontrava a única salvação possível naquele caso.
Dando-se conta do que estava a suceder, Olson, sem deixar de galopar, voltou-se para os seus homens e ergueu o braço direito.
Seis carabinas dispararam ao mesmo tempo.
Três dos abutres tombaram pesadamente no solo, movendo as imensas asas como se se despedissem da vida. Os outros, assustados, afastaram-se do corpo do homem, a quem já estavam dispostos a dar as definitivas e fulgurantes bicadas que lhe teriam desfeito a cabeça num abrir e fechar de olhos.
Felizmente, o tenente e os seus homens acabavam de chegar.
Disparando raivosamente contra o resto dos abutres os batedores, sob as ordens do oficial, encarregaram-se de recolher o corpo inanimado do homem e colocaram-no com sumo cuidado sobre um dos cavalos. Segundos depois, voltavam a toda a velocidade para o forte, onde o doutor Walter poderia prestar-lhe assistência imediata.
Donald recuperou o cavalo ferido na cabeça e levou-o para a cavalariça, onde o tratou com carinho, limpando--lhe o suor e preparando-lhe uma ração de feno após ter feito dessedentar-se numa tina repleta de água transparente.
Entretanto, na enfermaria, o doutor Walter, pertencendo também ao Corpo de batedores do Texas, encontrava-se a limpar as feridas do corpo desnudado do homem. A seu lado, o tenente Olson e o sargento Macleed observavam espantados aqueles enormes e graves ferimentos que, a seus olhos, tal como aos do médico, não ofereciam possibilidade alguma de se recuperar aquela vida humana.
O ferido gemeu debilmente.
— Doutor...
Walter moveu a cabeça para o oficial.
— Que deseja, senhor?
— Este homem não viverá muito. Por que não damos um pouco de uísque? Ele tem de falar, doutor!
— Compreendo-o.
Foi o sargento quem aproximou o cantil dos lábios do ferido, cuja cabeça havia sido soerguida pelo médico. Os lábios estavam gretados, trémulos, quase arroxeados. Mas aquele infeliz bebeu um par de golos de uísque, tossindo ao princípio, cuspindo depois quando a primeira reação à violenta bebida se produziu e, finalmente, engolindo com tranquilidade e vagar. E não tardou a surgir-lhe na face um tom levemente rosado.
Abriu os olhos.
Durante uns instantes o seu olhar pareceu concentrar-se num ponto infinito, em algo que nenhum dos presentes podia compreender. Depois, pouco a pouco, à medida que os seus olhos adquiriam um brilho mais vivo, moveu a cabeça e, ao ver o rosto do tenente, do médico e do sargento, esboçou um ténue e triste sorriso que mais pareceu uma careta que outra coisa.
Foi só nessa altura que Olson o identificou.
— Você é o senhor Samuelson, não é verdade? — inquiriu, aproximando o rosto do ferido.
— Sim... — respondeu o outro com um fio de voz.
— Que aconteceu?
Um estremecimento percorreu o corpo do moribundo. Por um momento o tenente receou que aquele fosse o sinal evidente da morte que se apoderava a pouco e pouco do corpo do ancião. Mas dominando o terror que devia ainda intimidá-lo, o ferido lançou um novo e profundo suspiro, dizendo depois com voz débil, dificilmente audível:
— Foi... horrível... senhor...
— Acalme-se — interveio o médico, que tinha a mão direita apoiada no lado esquerdo do peito do ferido, percebendo assim melhor do que os outros a irregularidade das pulsações daquele coração que estava quase a parar para sempre.
— Foi horrível... — repetiu o velho. — Atacaram-nos... tenente...
— Quem?
— Os índios...
Mith franziu o sobrolho.
— Que índios? — insistiu, olhando o ferido com fi-xidez.
— Não sei... Eu não os conheço...
O sargento interveio, aproximando-se por sua vez do moribundo.
— Por favor, senhor Samuelson. Não responda por agora. Escute-me. Bastará mover a cabeça afirmativa ou negativa. Compreende?
Samuelson fez um gesto afirmativo.
— Eram índios?
A cabeça do ancião moveu-se em sinal afirmativo.
— Usavam um lenço amarrado à volta da cabeça?
O moribundo voltou a dizer que sim, mas cada vez com maior dificuldade.
— De que cor?
Os lábios do velho moveram-se, mas nenhum som lhe saiu da boca. Finalmente, compreendendo que havia formulado uma pergunta de maneira equívoca, o sargento apressou-se a inquirir:
— Vermelho?
Samuelson negou com a cabeça.
— Amarelo?
Uma nova negativa.
— Azul?
Samuelson, desta vez, disse que sim com a cabeça.
O sargento lançou um rugido, voltando-se depois para o oficial.
— São os «chiricaguas» de Jimeno, senhor. Não há a menor dúvida. Sempre usaram um lenço azul na cabeça.
Para se distinguirem dos «apaches chiricaguas» de Jerónimo, os índios de Jimeno, os mesmos que tantos problemas lhes haviam levantado no Inverno anterior, amarravam a testa com um lenço de intensa cor azul; já não havia qualquer dúvida quanto à identidade dos atacantes de New Ville.
Foi a vez do tenente interrogar o ferido:
— Há mais sobreviventes?
Por momentos o moribundo deu a impressão de que não responderia. Mas fazendo um supremo esforço, o último, moveu a cabeça, tristemente, de um lado para o outro. Depois, lançando um grito rouco, que lhe saiu do mais fundo do seu peito, tentou erguer-se, apoiando os braços na cama onde jazia. Abriu os olhos desmesuradamente, ao mesmo tempo que estes adquiriam uma cor vítrea que não deixava margem para quaisquer esperanças. Depois, com a boca aberta, como se quisesse respirar todo o ar que já não podia entrar nos seus pulmões, permaneceu um par de segundos naquela estranha e trágica posição. Caiu finalmente para trás e, inclinando a cabeça para o lado direito, ficou imóvel para sempre.
A mão do médico continuava pousada sobre o tórax do ancião.
— Morreu — anunciou.
Olson olhou o pobre velho com simpatia. O seu corpo desnudado mostrava bem que apesar de a idade continuava a ser um homem forte, que viveria muitos anos se a morte não o atingisse de modo tão violento. Uma vida ceifada sem proveito algum... Como outras que, tal como dissera antes de morrer, haviam sido destruídas para sempre naquela terra onde a erva, inclusive sob um sol de fogo, era alta e se movia como o dorso imenso de um animal gigantesco.
— Maldito Jimeno; — resmungou o sargento.

terça-feira, 26 de julho de 2016

PAS645. A última missão do cavaleiro ferido (3)

Vinte e cinco quilómetros a Norte de Rio Frio o cavaleiro voltou a perder os sentidos.
Mas, desta vez, o cavalo estava demasiado assustado para ter em conta o estado de saúde do homem que o montava. Os abutres, irritados de seguirem a sua presa durante tanto tempo, começaram a lançar-se em voo picado sobre o animal, assustando-o com o adejar das gigantescas asas e com grasnidos ferozes, como se esperassem que ao encabritar-se o cavalo a carga humana escorregasse para o solo e lhes ficasse à mercê das garras e dos afiados bicos.
Milagrosamente, porém, o cavaleiro manteve-se na sela como se a ela estivesse grudado. Os seus braços continuavam a rodear o pescoço do nobre bruto, como se o subconsciente o avisasse de que a sua salvação dependeria disso.
A planície à sua volta oferecia algumas manchas de erva, cuja cor amarelecida indicava claramente a impossibilidade de vida para qualquer vegetal que se encontrasse sujeito durante o dia à incidência dos raios ardentes daquela espécie de globo imenso e cegador que parecia flutuar no espaço, fazendo brilhar a terra e pondo nas arestas das pedras reflexos tão vivos como os que emitiria a lâmina afiada de uma faca exposta à sua luz.
Durante muito tempo, enquanto o cavalo seguia matraqueando a terra, inóspita e plana como a palma da mão, o homem permaneceu desmaiado; entretanto, as sinistras aves voavam cada vez mais perto do animal, cruzando defronte dele como visões fantasmagóricas que punham nos olhos do nobre bruto reflexos de loucura, de indecisão e de espanto.
Por fim, na linha do horizonte, pareceu surgir algo do meio da própria terra. Ao princípio não passava de uma pequena silhueta com dois pontos negros. Ao aproximarem-se, porém, esses dois pontos negros converteram--se nas torres do minúsculo forte dos batedores do Texas. E cinco quilómetros após a primeira visão, surgiu o conjunto completo, com a sua paliçada de toros, a porta e a sombra que toda a construção projetava sobre a terra calcinada onde se erguia.
O cavaleiro gemeu.
Além da flecha que tinha cravada nas costas e que havia conseguido partir para evitar que o balanço do cavalo a fizesse penetrar ainda mais na carne, tinha uma ferida no ventre e a perna esquerda atravessada por dois projéteis. Quanto sangue havia perdido?
Muito.
Apenas lhe restava no corpo a quantidade suficiente para continuar a fazer palpitar, cada vez com maior debilidade, o coração que parecia gemer a cada esforço, a cada circuito sanguíneo que o fazia contrair ou dilatar. A pele do homem havia tomado uma cor cerúlea, prova indubitável da grande sangria que sofrera.
Entre as brumas que lhe invadiam a mente, havia imagens de horror que, apesar do seu estado, continuavam a fazê-lo estremecer como se se desenrolassem uma vez mais ante os seus olhos espantados.
Sabia que ia morrer.
No fundo da sua alma torturada, tinha a certeza de que aquela era a sua derradeira viagem. Mas desejava fazê-la. Tinha de a fazer. Porque era necessário, ou antes, absolutamente imperioso, que contasse a alguém o que tinha visto, para que aqueles infelizes seres, entre cujos cadáveres havia vagueado como um morto mais, fossem devidamente vingados.
Haviam-se-lhe apagado da mente todas as demais recordações. Era um homem velho, de mais de sessenta anos; mas tinha uma constituição física tão excelente que deixava muitos jovens envergonhados. E era precisamente essa constituição física que lhe estava a permitir levar a cabo tal façanha.
Morria sem remorsos de espécie alguma, pois portara-se como um homem até ao fim, defendendo os fracos e os oprimidos de armas na mão. Mas fora inútil. E agora, no meio da escuridão que a pouco e pouco lhe ia invadindo o cérebro, tentava procurar qualquer coisa, agarrar--se a algo invisível que lhe permitisse, pelo menos, chegar ao acampamento dos batedores.
E estava a consegui-lo.
Sobre o couro da sela, o sangue havia deixado manchas que, a pouco e pouco, tinham ido enegrecendo. E no ar, talvez vendo-o ou cheirando-o, saboreando a essência viva que brotava das feridas do homem, os abutres prosseguiam na sua louca corrida, descrevendo círculos concêntricos cada vez mais perto do cavalo, já tão desesperados que se mostravam dispostos a lançar-se em qualquer momento sobre o animal, cravando-lhe as garras na carne para o obrigarem a soltar a presa que continuava a transportar sobre o dorso.

segunda-feira, 25 de julho de 2016

PAS644. A última missão do cavaleiro ferido (2)

Entre o curso do rio Nueces e o do rio Frio, do qual se aproximava a grande velocidade, o cavaleiro teve o primeiro desmaio. Por muito paradoxal que parecesse, o nobre animal que aquele homem ensanguentado montava sentiu que os braços do cavaleiro perdiam o contacto com ele. Homem e cavalo haviam estado unidos durante muitíssimo tempo, nessa amizade que só pode existir entre um ser humano e um animal. Companheiros inseparáveis tinham passado momentos difíceis, percorrido enormes extensões de terreno de toda a espécie e convivido dia e noite. Umas vezes, sós; outras, acompanhados.
Por isso, ao sentir que o corpo do cavaleiro caía pesadamente sobre ele, sem forças, o nobre animal parou e manteve-se ereto, quieto, sem ousar mover-se. Entretanto, os abutres atreviam-se cada vez mais, descendo para adejar ao redor da montada ou pousando por vezes diante dela. Ao verem o animal imóvel, as aves de rapina bateram as asas com frenesim, cravando os olhos vorazes nas apetecidas vítimas, naquele montão de carnes que não tardariam a desfazer à bicada.
Apesar de a sua valentia, o cavalo sentia-se inquieto, tremendo dos pés à cabeça e fazendo os impossíveis por manter em equilíbrio o corpo agora lasso do cavaleiro desacordado.
Manteve-se assim durante muito tempo, sem perder de vista os abutres que, em número cada vez maior, se haviam imobilizado no solo, formando um sinistro círculo em torno de si e do seu dono.
Depois, com um suspiro, o homem recuperou os sentidos e moveu a cabeça de um lado para o outro, como se quisesse afastar a bruma que lhe inundava o cérebro. E por fim, com um supremo esforço, voltou a abraçar-se ao cavalo e os seus pés deram dois pequenos golpes nos flancos do nobre bruto que, compreendendo perfeitamente os desejos do cavaleiro, começou a mover-se. Primeiro, a passo; depois, num trote que espantou as negras aves, que empreenderam um voo rápido, voltando uma vez mais a descrever círculos concêntricos à volta das fugidias presas.

domingo, 24 de julho de 2016

PAS643. A última missão do cavaleiro ferido (1)

O cavaleiro fez um novo esforço.
A dor ia generalizando-se-lhe no corpo e apenas se mantinha na sela por puro milagre. Sob o homem, o cavalo continuava a galopar sobre a terra plana coberta de erva rala, martelando-a com os cascos que arrancavam de quando em quando, torrões que voltavam a cair, um pouco depois, deixando um traço visível que os abutres seguiam, planando sobre o cavaleiro como se já pudessem contar com a apetecida presa.
Inclinado sobre o pescoço da montada e abraçado a ela, tendo abandonado as rédeas havia já muito tempo, o homem fazia prodígios de equilíbrio para não tombar da sela. Talvez o nobre bruto, como se houvesse intuído o que acontecia ao homem que o montava, fizesse também o possível por manter o pescoço direito, sabendo que aquela parte do seu corpo era, na realidade, o único apoio com que contava o maltratado cavaleiro.
Cada vez mais próximos, mais decididos, os abutres lançavam-se em voo picado, emitindo surdos grasnidos, planando perto do cavaleiro, cheirando sem dúvida a sangue que lhe jorrava dos numerosos e graves ferimentos.
Não tardou a surgir o curso tranquilo do rio Nueces. E o cavalo deteve-se apenas por instantes, inclinando o pescoço, com cuidado, para saciar a sede que lhe abrasava o corpo poderoso.
Foi então que o cavaleiro esteve a ponto de cair; mas como se não desejasse aquilo, o cavalo levantou a cabeça com energia e atravessou o rio a vau com todo o cuidado. Momentos depois, encontrava-se na outra margem, empapado em água, após deixar sobre o curso do Nueces algumas manchas vermelhas, que não eram mais do que o sangue do cavaleiro que se aproximava lentamente da morte.

sábado, 23 de julho de 2016

POL117. O segredo da índia

 
(Coleção Pólvora, nº 117)
 
 
Aproveitando a ausência dos homens que tinham ido vender gado para o Novo México, um grupo de índios rebeldes atacou uma povoação florescente no Texas cuja população foi massacrada. Mulheres e crianças mortas e escalpadas...
Um grupo de batedores avançou sobre um acampamento de índios pacíficos e dizimou todos os possíveis guerreiros. Escrúpulos de última hora levaram-nos a poupar mulheres e crianças.
Foi então que se aperceberam que aquelas pessoas nada tinham a ver com os que dizimaram a povoação de brancos.
O segredo da índia mostrou-lhes que havia dois brancos malvados a arquitetarem tudo aquilo... brancos que lhe souberam desenhar uma serpente nas costas para que uma maldição nunca mais lhe permitisse cavalgar nas pradarias de Manitu.
A época dos bons livros do Oeste parecia já ter passado, mas este livro de E. L. Retamosa é notável: os conflitos, as intrigas, os mal-entendidos, os preconceitos... tudo aqui tem um lugar e mostra como um período de desenvolvimento pode ser destruído de um momento para o outro.


quarta-feira, 20 de julho de 2016

POL114. Em luta com abutres

(Coleção Pólvora, nº 114)



Este livro traz-nos o conflito entre um aventureiro, Al Brewer, e um xerife numa povoação indefinida que tinha o estranho hábito de se livrar dos prisioneiros de uma forma esquisita. Al foi sujeito a várias maus tratos e, após ter sido dado como morto, recuperou e voltou aos domínios do representante da lei com dois amigos que se divertiam criando conflitos e pancadaria por todo o lado.

Está dado o tom do livro, a que falta acrescentar que um dos salvadores de Al foi a própria filha do xerife que, em determinado momento, não hesitou em o salvar das garras do pai.

Trata-se de um livro de Jan Hutton que começa com alguma graça, mas em breve se torna pouco interessante.

terça-feira, 19 de julho de 2016

POL113. A terra encharca-se de sangue

(Coleção Pólvora, nº 113)
 
 
Um grupo de malfeitores ataca uma caravana que se dirige a Topeka com um carregamento de ouro, abate os seus elementos e apodera-se do mesmo.
Satisfeitos da vida afastam-se e, ao acamparem, são vistos por um trabalhador solitário que estranha a sua presença. Na cidade, este homem sabe do assalto e não tarda a relacionar os indivíduos com um pedido de captura que visualizou no bar. Resolveu por isso voltar ao local de encontro e, num momento em que alguns dos indivíduos estavam fora, abateu os restantes e apoderou-se do ouro. Num esforço final um dos bandidos moribundos desfechou-lhe um tiro que o feriu gravemente. Conseguiu esconder o ouro, mas faleceu nas proximidades do mesmo, local onde foi encontrado por um viajante que transportou o seu cadáver à cidade, vindo a saber de tudo o que tinha gerado aquela morte.
Owen Curtis, o viajante solitário, acabou por se relacionar com a irmã do morto, mas os facínoras vivos procuraram-no admitindo que ele conheceria a localização do esconderijo do ouro. Começa aí formidável matança que só termina com o fim dos bandidos e a restituição do ouro aos seus legítimos proprietários.
Eis um livro com uma narrativa simples, escorreita, uma história credível e uma capa bastante engraçada.

domingo, 17 de julho de 2016

Uma vista dinâmica sobre as coleções do Oeste

Ao longo destes anos temos vindo a proporcionar sistematicamente informação acerca das coleções do Oeste da APR e IBIS publicadas em Portugal a partir da década de 50.
Extraímos passagens, proporcionámos informação de autor, procurámos conhecer alguns ilustradores, criámos instrumentos de pesquisa...
Encontre a partir destes links uma vista dinâmica destas coleções:
Arizona
Bisonte
Búfalo
Califórnia
Colorado
Colt
Cow-boy
Kansas
Pólvora

POL111. Morte e amor em Utah

 
(Coleção Pólvora, nº 111)

Bertran Grey, um homem procurado pela justiça, foge com a esposa, Vivien, para uma bela região do estado de Utah, procurando iniciar nova vida. Ao atravessar o deserto depararam com um homem em estado desesperado a quem salvaram e que lhes indicou o melhor caminho para Greenville, uma povoação dominada por uma índia que odiava todos os brancos e procurava apoderar-se das suas terras. Esse homem tinha apaixonado pela filha de Aztar, resultando do seu matrimónio com um branco, mas a bela mulher opunha-se à sua união e queria desfazer-se do pretendente.

Bertran e VIvien resolveram ajudar o seu novo amigo e dirigiram-se a Greenville onde conseguiram virar os medrosos rancheiros e vaqueiros contra a poderosa e bela Aztar.

Um bom livro de Edward Goodman com o senão de estar redigido numa espécie de estilo relatório o que o faz perder alguma graça.
 

sábado, 16 de julho de 2016

BUF120. O pistoleiro e a corda

(Coleção Búfalo, nº 120)


Um homem, Edgar Randall, é condenado à forca pela morte de uma mulher, dona de um rancho e esposa de McCoy, um pistoleiro e jogador. O filho do condenado, Young Randal, chega a povoação na pele de um famoso pistoleiro, Seth Coolidge, com o objetivo de averiguar as razões da morte do pai e fazer justiça pelas suas mãos.
McCoy também pretende saber a verdade acerca da morte da mulher. Uma estranha aliança estabelece-se entre os dois homens e todas as investigações os conduzem ao rancheiro Cornish Ellington a quem o juiz Wingrade pretende ver morto por saber algo de negativo sobre a sua pessoa.
Esta confusão de interesses desemboca numa séria batalha entre estes homens que acaba com o necessário esclarecimento e o abraço fraternal entre McCoy e Young Randall.
A nota que acompanha a capa deste livro nada tem a ver com o seu conteúdo...

quinta-feira, 14 de julho de 2016

BUF118. CAP XI

A chuva era muito ligeira. Roland mandou acender vários candeeiros de petróleo e colocá-los no alpendre, para iluminarem a esplanada.
Num extremo desta, Um velho carvalho estendia uma das suas pernadas, despida de folhas, fúnebre. Nos tempos her6icos do rancho, mais de uma execução se realizara nela.
A trágica procissão pôs-se em marcha. Alguns homens levaram para o local três ou quatro candeeiros e estabeleceu-se um circulo amarelento, viscoso, no meio do qual deixaram Castile, com Overton ao lado e dois criado do «saloon», encarregados de puxar a corda.
Alguém trouxe um cavalo e um laço. Vários relâmpagos seguidos iluminaram por sua conta a cena. Os irmãos Boyce, com Ted, que levaram para junto deles, colocaram-se à frente.
— Isto acontecerá a todos os que traírem os Boyce! — gritou Roland. E. levantou o braço, para que se cumprisse o castigo. Mas, de súbito, deteve-se.
A fila de homens abrira-se e surgiu diante deles a figura de Walter, com a espingarda nas mãos.
Teve a satisfação de verificar que continuava a ser a principal personagem. Apesar de ser apenas, um velho e de se encontrar sozinho contra todos, ninguém procurou detê-lo.
— Pensavam que já me tinham enterrado, nao? — perguntou com voz potente, que contrastava com o seu corpo franzino. Adiantou-se para onde se encontravam os filhos. — Pois ainda terão de obedecer as minhas ordens.
O encarregado da luminotécnica no teatro da natureza acendeu uma luz azulada, quase roxa. O velho, meio encolhido pela arteriosclerose, dominava a situação, e Roland, que parecia tao seguro momentos antes, estava agora atemorizado.
— Pai — procurou desculpar-se — nos julgávamos que...
— Julgavam o quê? Roland, és mais parvo do que os macacos. Vou dizer-te uma coisa e espero que isto encerre a questão. Vais soltar essa mulher, que será a esposa do teu irmão Ted. E vou distribuir a minha herança pelos «zunhis». Tens alguma coisa a opor?
Roland tornara-se branco. Deu uns passos para o pai e fechou os punhos.
— Não podes... não podes...
— Por que nao? Já o fiz. E eles sabem-no. Tenta despoja-los do que lhes pertence!
Elevou-se um murmúrio entre os habitantes de Sulphur Valley. Até mesmo os trabalhadores do rancho tomaram parte no protesto. Walter deitou a rir, com um riso que revelava que, no fundo, se divertia com a situação.
De repente, um homem afastou-se do grupo e correu para o velho. Era Dany Roberts, o capataz. Outra coincidência conturbada naquela noite infernal.
— Patrão, não podes fazer isso. Não consentiremos!
— O quê? Como vais impedir-me? Louco!
— Mas estas terras são nossas!
— Vossas? Desde quando? Conquistei-as! Fui eu quem as tomou aos que eram seus donos, gente simples que se deixou enganar, porque acreditou nas promessas que lhe fiz! E não voltarei a enganá-los. Compreendem? As terras do meu rancho voltarão para eles. Tenho a certeza de que saberão aproveitar a oportunidade.
Vários homens mais se adiantaram. Ted deu um passo em frente, disposto a defender o velho, a quem admirava como sempre acontecera. E notou que os irmãos o imitavam, decerto impelidos pelo mesmo sentimento.
Então sucedeu qualquer coisa que decididamente elevou ao rubro as paixões. Overton, o mestiço, o homem que imaginara aproveitar-se da situação para satisfazer o seu velho anseio de apoderar-se dos tesouros dos seus meios-irmãos de raça, decidiu tomar o comando do movimento de protesto contra o velho.
— Acabemos de uma vez! — gritou. — Enforquemos esta maldita bruxa e depois trataremos do assunto da herança do velho, que está louco.
Acolheu as suas palavras uma espécie de trovão humano, que coincidiu com outro do céu. Os homens de Sulphur Valley agruparam-se à sua volta, e os criados do «saloon» passaram o laço sobre a cabega de Castile.
— Comigo os Boyce! — rugiu o velho, então, erguendo a espingarda.
Nenhum hesitou. Naquele transe desapareceram todos os antagonismos e desentendimentos. Já não se importavam com a herança ou com o que o velho pretendesse fazer da sua pessoa. O grito do clã, com que sempre tinham enfrentado qualquer perigo, galvanizou-os.
Ate Hubo, o aleije ado, arrastando a sua disforme perna, se aproximou do pai. E todos formaram uma espécie de parede firme, imbatível. —
 — Soltem-na! — Gritou Walter. — Soltem-na e saiam daqui. O mais que poderão exigir no futuro é conviver com os índios e que eles lhes permitam continuar nesta terra.
— Nunca! — Berrou Everton. — Vamos enforca-la!
Fez o gesto de bater na garupa do cavalo sobre o qual tinham montado Cas tile. Hub correu para eles, arrastando-se quase na lama.
— Não, não! — reclamou com voz aguda. Isso não! Não quero que a enforquem.
— Afasta-te, Hub, não sejas doido! — avisou-o Ted, que compreendera o que ia acontecer e quis impedi-lo.
Mas o mestiço já premira o gatilho do revólver. Três vezes. Hub foi projectado para trás várias jardas e caiu de costas, com o peito perfurado. Ted deu um salto para a frente, possuido de uma raiva tensa.
— Besta, besta! — rugiu. — És pior do que a pior das feras.
E sem pensar mais, atirou-se a Overton. Transpôs a distancia que os separava. Estava certo de que o mestiço dono do «saloon» acabava de cometer, um erro trágico. O repugnante assassínio que praticara não podia ser aprovado pelos demais homens, que nada tinham de comum com ele.
Novos trovões sacudiram a atmosfera, e um vaqueiro gritou:
— Os índios! Vem para aqui!
Corn efeito, eram os miseraveis «zunhis», com Panka a cabega, trazendo nas maos o único «tesouro» que lhes restava: velhas carabinas, espingardas primitivas, arcos e flechas. Mas eram centenas.
A sua presenca perturbou os habitantes de Sulphur Valley. O mais certo é que estivessem desorientados com a série de situações que se sucediam, todas contraditórias. Tinham seguido os Boyce e agora estavam contra eles; lutavam para impedir que o velho Walter repartisse as suas terras pelos «zunhis» e os indios apareciam, dispostos a sustentar o seu direito. O velho soubera intrujá-los bem; mas não estavam tao desprovidos de energias e de combatividade como muitos calculavam.
Ted, entretanto, sem ligar importância aos acontecimentos, avançara para o mestiço. E sem aviso saltou sobre ele. Qualquer coisa lhe dizia que ninguém tentaria separá-los. Que a questão seria dirimida entre os dois, exclusivamente.
— Porco! — gritou, batendo no pescoço de Overton com o punho direito.
O dono do «saloon» entrou em ação. Todo o medo que sentia, a raiva de lhe terem estragado o piano e, sobretudo, a consciência de que chegara ao fim o seu papel de verdugo, revolveram-se dentro de si.
Cambaleou, mas não caiu, e esperou que Ted lhe saltasse em cima. Recebeu-o com um tremendo direto ao flanco e com um gancho ao queixo, e Ted replicou-lhe com um direto ao diafragma.
— Abutre nojento! — gritou Ted.
Novo murro. Overton caiu na lama. Um raio abateu-se naquele momento sobre os carvalhos, dos quais partiu uma labareda, ao mesmo tempo que o espago estremecia com o formidável trovão seguinte.
Ted atirou-se ao mestiço, que procurava levantar-se, e bateu-lhe na cara, no peito, na cintura. Overton retorceu-se e levou as suas grandes mãos ao pescoço do jovem Boyce. Apertou com toda a forca de que era capaz e Ted experimentou a sensação de que o mergulhavam num poço negro e vermelho.
Para defender-se daquela tenaz, meteu o joelho na barriga do adversário. Rolaram no chão, encharcando-se, sem deixarem de bater, cegos a qualquer outra coisa que não fosse ferirem-se, conseguir a anulação de um deles.
Entretanto, os «zunhis» invadiam todos os lugares e por fim detiveram-se em círculo, rodeando os brancos, com as armas preparadas, a observar os dois homens que lutavam.
Estes já quase não podiam mover os braços. Ted conseguiu colocar-se por cima de Overton e deixou-lhe cair os punhos, repetidas vezes, na cara, embora o mestiço procurasse esquivá-la a custo, respirando com dificuldade. Conseguiu separar-se de Ted e quis levantar-se.
O jovem atirou-se-lhe as pernas e voltaram a cair. Já não eram mais do que dois corpos cobertos de lama, irreconhecíveis. Overton levantou a perna direita para repelir um ataque de Ted, mas perdeu o equilíbrio e tombou com o adversário em cima.
Atingira o limite da sua resistência. E Ted também, apesar de ainda conseguir levantar o braço e abater o punho sobre o rosto do dono do «saloon».
Isso coincidiu com o ultimo esforço do céu para triturar a terra. Um trovão imenso, com o qual se despediu a tormenta. O horizonte começava a clarear e as nuvens negras tomavam uma cor leitosa.
Ted esteve Um bocado estendido, sem se aperceber do que se passava a sua volta. Despertou-o um grito. E procurou levantar-se, embora só o conseguisse depois de falhar um par de vezes.
Por ultimo, logrou suster-se ern pe e olhou para onde soara a voz. O que viu fê-lo compreender que, fosse como fosse, a justiça não se extinguira totalmente na terra.
Nem a maldade dos homens nem a fúria dos elementos podiam apagar o sentimento pelo qual se forjaram as civilizações, o sentimento que, em última analise, acaba sempre por impor-se.
Do tronco do carvalho das execuções pendia, oscilando grotescamente, o corpo de Eagle Overton, o homem que procurara o exterminio dos da sua raça e contra o qual acabava de lutar.
A chuva cessara; e rompendo o cerco de nuvens acasteladas no horizonte, penetrou um raio de sol que iluminou o macabro quadro do enforcado.
Ted dirigiu-se aos baldões para junto de Castile. A índia, libertada no último segundo, correra para o corpo de Hub, cuja cabeça tomara no colo.
Virou-se e fitou Ted ansiosamente.
— Mataram-no! Porquê? Nunca fez mal a ninguém — soluçou. — Sonhava ser o protagonista de algum facto heroico, que todos soubessem como se sacrificara por eles.
— Bom, pois conseguiu-o.
Ted ajoelhou-se e com grande esforço ergueu nos braços o corpo do irmão. Depois dirigiu-se para junto do pai e dos outros irmãos.
O velho olhava em frente, desorientado. Houve um momento de suspensao. Depois, Walter deixou escapar um rouco gemido e precipitou-se para o cadaver de Hub. Apertou-o nos braços e beijou-o.
— Fui eu, eu, quem te matou! — increpava-se. — Eu sou o teu assassino.
Ted pôs-lhe uma das mãos no ombro. E o velho fitou-o como se o visse pela primeira vez.
— Vou-me embora, pai — disse a custo, mas com firmeza. — Bem sabes que devo ir. Mas agora tenho a certeza de que os outros te acompanharão. Pensa neles... pensa em Hub... e não te sentirás tao só.
E sem olhar mais o que deixava para trás, pegou no braço de Castile e afastaram-se daquele sítio. Um esplendoroso dia anunciava-se no deserto.
F I M
 

quarta-feira, 13 de julho de 2016

BUF118. CAP X

A luz vinha do escritório e deixava na penumbra a maior parte do salão principal.
— Vamos ao escritório, Ted — disse Walter.
Mas o jovem segurou-o por um braço.
— Não há tempo para isso — declarou. — Dentro de poucos minutos, meus irmãos estarão aqui, a frente de muitos homens da povoação. Vem impedir que se realize o casamento e afastar Castile do caminho.
— Que estas a dizer?
Ted notou que o velho ficara preocupado e ouviu o suspiro entrecortado de Castile.
— O que ouviste. Desta vez a tua argúcia não te servirá de nada.
— Não sei a que te referes.
— Poise bem claro. Já sabem do caso da herança e expulsaram da povoação todos os «zunhis».
Desta vez o dono do rancho tremeu, mas de cólera.
— Quem lhes disse? Foste tu?
— Nao. Embora, de qualquer modo, fosse essa a minha intenção. Mas Hub antecipou-se-me, depois de escutar arras da porta o que propuseste a Castile. E teve a coragem de atravessar a pé, debaixo da tormenta, toda a distância que vai daqui a povoação, para avisá-los.
— Maldito seja esse verme miserável!
Ted estava cansado. Nas poucas horas que tinham transcorrido desde o seu regresso de Kansas, onde fora levar o gado, vivera mais intensamente do que nos vinte e dois anos anteriores. Tão depressa que era possível que estivesse j a perto do fim.
— É estúpido que recrimines quem quer que seja — interrompeu com dureza, com um acento metálico que a si próprio impressionou. — A única coisa que ha a fazer organizar a defesa o melhor possivel e prepararmo-nos para vender caro a pele.
— Quebrarei os ossos a esse maldito! — continuou Walter, dando largas ao seu furor. — Atraiçoou-me duas vezes esta noite.
— Já lhe quebraste um osso — declarou Ted, com a mesma gelada intenção. — E talvez não tenha feito mais do que cobrar-se dessa divida. Ser pai não consiste em dispor dos ossos dos filhos.
— Ted!
— Ouve bem isto, velho: tudo o que acontece é por tua culpa. Atá ao fim quiseste brincar com as outras pessoas, utiliza-las em teu proveito. E a única coisa que conseguiste foi que esses pobres índios fossem corridos das suas cabanas onde, mal ou bem, iam vivendo. Se dentro de pouco tempo isto arder por todos os cantos...
— Não deves falar-me assim!
— Por que nao? Sempre contaste com a minha adesão para todos os teus pianos. Esta noite, quando vim aqui pela primeira vez, quase lograste convencer-me. Mas agora sei o que escondias na manga. Sabes o que aconteceu a Tagus, o teu emissário junto dos «zunhis»?
Pressentiu, mais do que viu, dilatarem-se os olhos de Castile.
— Enviaste-o com a astuta intenção de que mobilizasse a teu favor esses miseráveis, para opô-los a Roland e aos outros. Depois, ser-te-ia fácil enganar os sobreviventes da luta. Mas de momento conseguirias que se batessem com os homens brancos de Sulphur Valley, entusiasmando-os com a ideia de que voltariam a ser donos das suas velhas terras.
— Não o fiz por isso, Ted, mas sim para...
— Mentira! A ela também querias enganá-la com essa promessa. Mas sabias que assim que a gente da povoação soubesse de semelhante contrato procuraria impedi-lo. E tu tinhas-lhes preparado os peles-vermelhas, para que se matassem mutuamente.
— Não é verdade.
Castile agarrou Ted por uma manga, que se virou para ela.
— Que aconteceu ao meu irmão, Ted? — perguntou com a voz alterada.
Ted sentiu um baque no coração. Queria suavizar a revelação, mas verificou que já estava a proferir palavras duras como o aço.
— Sovaram-no, Castile, sovaram-no como a um cão, até partirem-lhe todos os ossos. Não pararam enquanto não o converteram num monte de came triturada.
Ela retrocedeu com um estranho gemido, como se se lhe tivesse quebrado qualquer coisa dentro do peito.
— Não! não é possivel.
— É, sim. Presenciei tudo. É tao verdade como o teu povo morrer no deserto e os seus corpos serem devorados pelos chacais e pelos abutres. E a tua obra, pai.
E apontou acusador e desapiedado para o velho.
— Não é verdade, Ted, não é verdade — defendeu-se Walter, que parecia ter envelhecido terrivelmente. — Tudo quanto dizes é mentira. Pactuaste com os teus irmãos, viraste-te contra mim, também. Tu, o único em quem confiava!
Um trovão fez estremecer as paredes. Walter correu para o escritório.
— Tu não deves atraiçoar-me, Ted; tu nao! — gritava. E largou a rir de repente; como se tivesse endoidecido. — O velho Walter Boyce ainda é o mais forte!
— Está louco — murmurou Ted.
E aproximou-se de Castile, que soluçava sem lágrimas, com uma angústia seca, destruidora.
— Vamos, Castile — disse. — Se permanecermos aqui não haverá salvação para ninguém.
Ela contemplava-o, desvairada, apertando o peito com as mãos.
— Voltou a enganar-nos — ouviu-a dizer Ted. — Vendeu-nos outra vez. E eu que julgava...
— Castile, esquece-te disso. Está tudo podre. Uma nova vida se nos oferece fora daqui. Por que...?
A sua voz foi abafada por um trovão mais forte. O aposento iluminou-se com um clarão alaranjado, azul e branco. As janelas abriram-se, empurradas pelo vento. Ted atraiu a «zunhi» ao peito e abraçou-a.
— Vamos, Castile, vamos — rogou com ardor. — Não devemos misturar-nos nesta suja história. Eu sei por que acedeste aos desejos do velho, de casar com ele. Mas os outros não consentirão, nunca consentirão que os teus se apoderem de novo desta terra...
Um novo clarão tornou a envolve-los, e o fragor celestial ensurdeceu-os por completo. Ted foi o primeiro a ver o pai, que empunhava uma espingarda de dois canos, uma velha «Henry» que utilizara contra os ursos. Irnpressionou-o o ar desvairado do velho.
Aproximou-se deles, caminhando quase em bicos de pés, e fitou-os como se na realidade fossem outras pessoas.
— Traidores! — exclamou em voz baixa, mas sem cólera.— Traidores. Era isso que tramavam, hem? Tu, o único filho em quem confiava, e tu, Castile, que...
— Estás enganado, velho — replicou-lhe Ted com intensidade, e pôs-se diante dele. — Não houve nenhuma traição. Castile e eu amávamo-nos, muito antes de se te meter na cabeça essa estúpida ideia de casares com ela.
Walter contemplou-os com o mesmo ar de doloroso alheamento. E quando menos Ted esperava, desatou a chorar, num lamerito infantil, absurdo. A espingarda escapou-se-lhe das mãos e rolou pelo chão.
— Agora já não tenho nada, nada... — repetia Walter, por entre terríveis soluços. — Deus do céu, todos me abandonam!
Ted comoveu-se. Apercebeu-se da grande tragedia do, pai, do que representava para ele aquela descoberta. A verdade era que a velhice e a solidão se haviam infiltrado no seu forte temperamento e que agiam como Um insidioso e lento veneno que lhe deixava, dentro do corpo decrépito, um cérebro que não se resignava a perder o seu papel preponderante.
O jovem observou Castile e compreendeu que ela pensava o mesmo. Não podia ser verdade que Walter tivesse planeado a intriga de oferecer as suas terras aos índios para opô-los aos brancos da povoação. Provavelmente, fora Um desesperado recurso para reter Castile junto de si.
— Pai — disse, comovido, aproximando-se dele.
A tormenta abafou-lhe a voz. Um estampido pavoroso, brutal, que sacudiu os alicerces, que deu a impressão de rachar as paredes e de estalar o solo, envolveu-os.
Ted viu o pai cair contra a parede e depois por terra, onde ficou imóvel e rígido. Castile também tombou no solo. O aposento encheu-se de um acre cheiro a queimado; e, por segundos, um espectro azulado bailou na retina de quantos se encontravam ali dentro.
— Foi na torre! — gritou o chinês, que se agachara junto da porta.
Ted correu para o velho e inclinou-se sobre ele. Estava desmaiado. Com grande esforço conseguiu pôr-se em pé e virou-se para Castile. Mas imobilizou-se.
Uma voz dura, sarcástica, estalou-lhe aos ouvidos. Acabou de virar-se lentamente, a fim de olhar quem falava, embora já soubesse de quem se tratava.
— Pelo que vejo, irmão, não conseguiram chegar a acordo.
Roland, o primogénito, com a sua alta estatura e o seu rosto magro, retangular, onde brilhavam, carregados de cólera, os olhos muito juntos do nariz. Nenhuma compreensão se podia esperar dele.
Atrás, espreitavam Sil e Waco. E mais ao fundo Hub, com um brilho demente, apavorado, nos olhos claros. E Dany. E Overton. Os abutres tinham andado bem e com rapidez, e haviam-nos apanhado em plena discussão.
O mais velho dos Boyce deu vários passos e parou a observar o pai. Depois, encarou o irmão.
— És um porco, Ted — sibilou. — Nós, ao menos, viemos reclamar qualquer coisa que julgarnos nossa e justa. Mas nunca... nunca... E tudo por causa dessa perdida.
— Estás enganado, Roland! — exclamou Ted, com ira. — Não é o que pensas. Ele é que...
Mas Roland já não o ouvia. Afastara-se dele e avançava para o grupo de homens de Sulphur Valley. Esteve a falar com eles durante um momento e em seguida voltou a pôr-se em marcha, encabeçando o grupo. Cravaram os olhos em Castile.
— Bom, rapariga — disse Roland, com voz gelada. Naquela ocasiao não se deixava arrastar pelo furor, o que tornava a sua atitude ainda mais sinistra. — Este negócio está terminado. Não nos agrada enforcar uma preciosidade como tu, mas não temos outro remédio. Vamos!
Várias maos se estenderam para Castile, que soltou um grito rouco e quis afastar-se. Ted mexeu-se também e colocou-se diante dela.
— Não sejas louco, Ted! — preveniu-o Roland. — Não tentes impedir-nos.
— Deixa-a, Roland! — exclamou com ardor o irmão. — Estás a praticar um monstruoso erro, e arrepender-te-ás se levares a cabo o que pretendes.
— Qual erro? Acaso não está tudo perfeitamente claro? Esta maldita enlouqueceu-os, ao velho e a ti. Mas eu estava disposto, nota bem, a respeitar a tua atitude. Até mesmo permiti que partisses e viesses aqui prevenir o velho, mas não esperava que fizesses uma coisa dessas. Agora acho que também é possível que tenham sido os dois que urdiram todo este enredo. Não julgo o nosso pai tao louco que fosse capaz de fazer de sua própria vontade essa partilha...
As palavras saíram em torrente pelos lábios do primogénito. Ted quis em várias ocasiões interrompe-lo, mas não o conseguiu.
— Juro-te, Roland — conseguiu dizer, por fim — que o velho nada sabia das nossas relações. Foi tudo uma maldita confusão. E quanto ao que se passou...
— Vamos, deixa-te de inventar histórias! — Interrompeu-o com ferocidade o outro. — E evidente o que sucedeu. Deve ter compreendido que o enganavam e revoltou--se contra ti. E não hesitaste em... Quase sinto vontade de matar-te. Ao teu pai…
Aquilo seria cómico noutras circunstâncias; mas extraordinário era que Ted sabia que Roland falava com sinceridade. Julgava estar no direito de vir à frente de um grupo de homens armados impedir o que imaginava ser uma loucura do pai. Mas afigurava-se-lhe monstruoso que outro membro do clã tivesse feito frente ao velho.
Fez um sinal e vários homens rodearam o jovem e separaram-no da «zunhi». E outros agarraram, por fim, esta, que ficara de súbito paralisada, e empurraram-na para a saída.
A tormenta interrompeu-se também, como se o céu contivesse a respiração e se preparasse para um ataque final, definitivo.
Houve uns segundos de angústia. Ted fechou os olhos. Seria inútil tentar impedir a execução. Da porta, ao abrir os olhos de novo, recebeu o olhar suplicante, carregado de censuras, que lhe dirigiu Castile.
— Vamos! — Insistiu Roland, de quem parecia ter-se apoderado uma grande pressa.
A tormenta reiniciou o seu concerto. E as pessoas igualmente entraram em louca atividade. Faltava, no entanto, o último pormenor que encheria Ted Boyce de angústia. Roland virou-se para observá-lo e decretou:
— Tragam-no também. Servir-lhe-á de exemplo presenciar o espetáculo.
Obedecendo as suas ordens, obrigaram Ted a caminhar na sua frente. Ninguém se ocupou do velho, que continuava inconsciente, como se estivesse morto, como talvez pensassem os filhos e os habitantes de Sulphur Valley que se tinham reunido no rancho.

terça-feira, 12 de julho de 2016

BUF118. CAP IX

— Não se mexam, piolhosos filhos de cadela! — ordenou Roland Boyce, que se colocara à frente do grupo da porta. — Estão cercados por todos os lados e ao menor gesto dispararemos.
Depois, apontou para Tagus, que parecia convertido numa estátua, e disse:
— Agarrem-no. Esse é o irmão da bruxa que enlouqueceu o nosso pai.
Dois homens adiantaram-se. Eram Overton e um dos seus criados. O mestiço trazia um sorriso de imundo prazer na carantonha. Tagus não se mexeu enquanto não chegaram a poucos passos de si.
Então deu um magnifico salto e caiu no meio deles. A sua mão direita abateu-se sobre o pescoço do dono do «saloon» e obrigou-o a girar. E o companheiro despachou-o com um feroz pontapé no meio da barriga, que o obrigou a retroceder, encolhido e gritando.
— A ele! — bramiu Roland, e vários homens mais correram para o irmão de Castile.
Ted esteve tentado a descobrir-se e a sair em sua defesa; mas dominou-se a custo, compreendendo que seria loucura e que para nada serviria senão para anular a menor possibilidade de salvação do índio.
O pior seria se quisessem eliminar também os demais peles-vermelhas reunidos; mas imaginava que Roland se contentaria com despojá-los de quanto possuíssem e escorraçá-los da povoação, no meio da tormenta, o que equivaleria a converter a natureza em verdugo e livrar-se assim de responsabilidades.
Os cidadãos de Sulphur Valley caíram sobre Tagus, que se revolveu e iniciou uma luta extraordinária, a nobre luta do selvagem contra a fera domesticada e com os dentes aguçados pelo Odio e pela servidão.
Mas depois de sacudir os seus atacantes e de faze-los cair duas ou três vezes, acabou por ser dominado. Overton, a despeito de ter a cabeça a banda, metera-se na refrega e desferia pancadas as cegas, cruéis, procurando as partes mais sensíveis do pele-vermelha para feri-lo.
Entre dois sujeitaram-no pelos braços, enquanto outro o agarrava pelos negros cabelos e lhe dobrava o pescoço para trás ate ao ponto de rotura.
Roland aproximou-se deles. Esteve uns segundos a admirar a figura vencida do «zunhi» e, a seguir, atirou-se a ele e esbofeteou-o com brutalidade. Ted rangeu os dentes e cravou as unhas da mão direita na palma da esquerda, para dominar-se.
— Ouvimos o que disseste — declarou o primogénito dos Boyce, e não havia o menor tom de piedade na sua voz. — Vais repeti-lo, maldito, em linguagem de gente, ou esquartejar-te-emos aqui mesmo. Vieste incitar os teus para que lutem a favor de meu pai. Mas não te quiseram seguir, o que talvez sirva aos teus irmãos... de raça para salvarem a pele, embora a sua existência nesta terra tenha acabado esta mesma noite.
Virou-se e percorreu a sala com olhar frio.
— Terão de sair agora mesmo da povoação — declarou. — O que for encontrado nela dentro de uma hora, será abatido sem contemplações. Entenderam?
Não esperou pela reação que pudessem provocar as suas palavras. Virou-se de novo para Tagus.
— Ouvimos tamBem a acusação que te fizeram de que a tua irmã esta noiva de meu irmão Ted. Vamos, responde! E verdade ou nao?
Tagus fez um brusco movimento com a cabeça e cuspiu no rosto de Roland. Este limpou-se com impressionante serenidade, e mergulhou o punho direito no diaframa do Indio. Uma, duas vezes. Tagus expeliu todo o ar dos pulmões e o seu rosto acetinado pôs-se verde de todo.
Roland parou de bater.
— Responde, filho de uma cadela — insistiu. — E verdade que a tua irmã está noiva de meu irmão Ted? Fala e limitar-nos-emos a enforcar-te. De contrário, morreras empalado.
Sil aproximou-se do local onde se cometia o iniquo castigo.
— Roland, por favor. É preciso que...?
Roland fitou-o com desprezo.
— Se a tua alminha de sacerdote não suporta estas cenas, podes ir para o teu rancho e esperar que passe tudo. No teu Lugar, creio que a tua mulher nao, se mostraria tao agoniada.
— Mas, Roland...
Roland não lhe ligou importância. E voltou a carga com Tagus. Um trovão formidável impediu que se ouvisse a sua seguinte pergunta. O «zunhi» fez novo esforço e quase conseguiu desprender-se das mãos que o garrotavam. Ao mesmo tempo, atingiu o seu verdugo com uma joelhada, que no entanto não teve força suficiente para causar-lhe grande mal.
Roland, resfolegando como um urso ferido, atirou-se ao prisioneiro e descarregou os seus enormes punhos em todos os pontos vulneráveis.
— Roland, Roland! — gemeu Sil, que tinha o rosto branco, descomposto.
Waco também correra para eles e procurava conter o furioso primogénito. Ted mordeu uma das mãos até sentir correr o sangue. E naquele momento resolveu acabar com tudo aquilo. Já não lhe interessava a consanguinidade nem qualquer outro laço familiar.
Assistiu ao fim da terrível cena. Tagus caiu por terra, desfeito, partido, jorrando sangue por todos os lados.
Os seus assassinos recompuseram-se lentamente. Eram efigies sinistras, com as mãos ainda crispadas e manchadas do sangue da sua vítima. Um grito agudo, lancinante, fendeu o ar naquele momento e galvanizou-os, fê-los regressar a sua abjeta condição.
Ted adivinhou quem gritara e sentiu pena. Era seu irmão Hub, que correra para ali, morbidamente atraído pelo drama, mas que não conseguira resistir ao espetáculo canibalesco, desonroso para a espécie humana.
— Vamos! — Roland recompusera-se; já não hesitava. — Façamos sair todos estes cães daqui e que comecem a correr para fora da povoação.
— Isso, isso! — exultou Overton. — Que vão para o deserto, que e onde devem viver!
Ted acalmara-se; e como estava junto da porta foi dos primeiros a sair. Não pôde evitar a coronhada que um dos vaqueiros, aliado aquele bando de fanáticos, lhe dedicou, embora sem saber a quem era dirigida na realidade.
Quase já não chovia, mas os trovões e os relâmpagos continuavam em todo o seu esplendor. Alguém disse de dentro ainda da escola:
— Destruamos as cabanas!
E o alude de espoliadores precipitou-se pela travessa, a caminho das miseráveis habitações. Ted viu a alta figura de Overton, que corria a frente, talvez convencido de que seria realidade o tesouro de que tanto falara e que, segundo ele, os «zunhis» tinham escondido debaixo da terra das cabanas.
Roland e os irmãos saíram também. O mais velho dos Boyce não gostou que fossem os homens do seu grupo os primeiros a começar o saque. E procurou contê-los.
— Teremos tempo! — gritou, pondo-se diante dos últimos. — Agora o mais importante é ir ao rancho e acabar de uma vez com a bruxa.
Ted envolveu-se mais na manta e afastou-se em direção do celeiro onde deixara o cavalo. Não queria esperar mais. Agora sim, convinha chegar ao rancho antes dos irmãos e dos loucos de Sulphur Valley, dispostos a cometer ali novos crimes.
Não gostava dos índios, exceto no tocante a Castile, mas o tratamento infligido a Tagus revolvera-lhe as entranhas. Era demoníaco, desumano. Nem os lobos devoram o membro da alcateia ferido de modo tao bestial, porque ao fim e ao cabo eles cumprem uma lei inexorável da natureza, que não tolera inúteis para a caça. E, alem disso, tem a grande desculpa da fome.
Não teve dificuldade em chegar ao refúgio em que deixara o alazão. Este resfolegou, contente com o seu regresso. Ainda estava molhado, assim como a sela, mas descansara, e isso era muito importante. Também comera da palha amontoada.
O jovem saltou-lhe para cima, assim que chegou ao ar livre e dirigiu-o para a saída da povoação. Obrigou-o a um rodeio, a fim de não se encontrar com os saqueadores. Mas quando chegou ao limite das cabanas, distinguiu, à lívida claridade dos relâmpagos, a multidão de índios que empreendiam o êxodo.
Homens, mulheres e crianças, sem bagagens, porque os brancos não lhe permitiram levar nada das suas míseras vivendas, fugiam das carabinas que lhes apontavam, dirigindo-lhes insultos e empurrando-os.
De repente, produziu-se um remoinho: um homem acabava de reter uma rapariga e apertava-a nos bragos.
— Tu nao, pequena! — gritava. — Eu te protegerei...
A donzela «zunhi» debatia-se e gemia, procurando escapar das garras que a seguravam. Nenhum dos seus irmãos, nem novos nem velhos, intercedeu por ela. E o sujeito que a agarrara arrastou-a consigo, por entre as graçolas dos restantes.
Conduziu-a precisamente para a ponto onde se colocara Ted.
O jovem viu que o homem lhe batia com brutalidade, a fim de dominá-la. Então, fincou os calcanhares nos flancos da montada e atirou-se sobre o par.
Agarrou o porco sujeito pelo pescoço e atirou-o para diante dos cascos. A rapariga «zunhi» caiu para um lado, com um grito. O alazão espezinhou o tipo e Ted fê-lo voltar atrás várias vezes, sem fazer caso dos gritos que se escapavam da garganta do patife.
Também se sentia cruel, desprovido da menor parcela de sensibilidade. Agora queria matar, incendiar e matar como os outros, embora do lado oposto.
Assim que teve a certeza de que esmagara diversas costelas ao miserável, além de partir-lhe outros ossos, afastou o cavalo e meteu-o a galope em direção ao «Sulphur Ranch». E aquele ato de alta justiça foi iluminado pela fúria do céu, que o acompanhou também de música de fundo.
À medida que percorria o encharcado caminho, Ted ouvia vozes atrás de si que o elucidaram da situação, em parte provocada pela natureza, e em parte pelos homens.
— O Sulphur transbordou!
— O gado! E preciso leva-lo para os desfiladeiros do Este!
Era certo. Se não o fizessem, as águas arrastariam as reses para o Sul e morreriam todas, ou pelo menos a maior parte. Mas se as empurrassem para as colinas de Thoka, haveria o perigo de se espantarem e de se precipitarem nos desfiladeiros, morrendo esmagadas.
Ted sabia qual seria a atitude dos irmãos, em especial de Roland. O primogénito não se importaria absolutamente nada de perder uns milhares de cabeças. O que ele desejava era assegurar-se da propriedade dos Boyce, do rancho do pai, com uns centos de milhar de acres, dos vastos e belos campos do norte e de todo o dinheiro que o velho guardava no banco.
Quem perderia seriam os rancheiros pobres, os que unicamente contavam com o gado que ia ser vítima da tormenta. Mas talvez Roland lhes prometesse indemnizá-los da perda se o acompanhassem ao assalto da fortaleza do temível velho que lhes dera o sangue.
Depois de transpor as terras baixas e de começar a subir, galopou com mais rapidez, porque o solo encontrava-se mais duro e a água seguia cursos naturais, pela encosta, ate perder-se na concha do Sulphur Creek.
No entanto, era ali que as temíveis faíscas se tornavam mais perigosas. Ted notou alguns carvalhos derrubados, abertos pelos raios.
E perto já do velho rancho, uma daquelas descargas destroçou o seu centenário olmo, que se abateu como um gigante decapitado. O alazão encabritou-se e o jovem teve de utilizar toda a sua perícia para sossegá-lo.
Um novo som alertou o cavaleiro. Deteve a montada e estendeu o pescoço, procurando identifica-lo. Depressa soube de que se tratava. Eram os homens de Sulphur Valley.
— Vamos, amigo, vamos! — incitou o alazão, e meteu-o a galope.
Como um furacão penetrou na esplanada. Ao passar diante do barracão, gritou:
— Venham todos a casa! Sou Ted Boyce e os homens de Sulphur Valley seguem-me. Depressa!
De Um salto desmontou do cavalo e correu para o alpendre. A porta abriu-se e um clarão amarelado saiu por ela. O velho estava ali a sua espera.
E atras dele o chinês, com a carabina pronta a disparar. E também Castile, cujos grandes olhos se salientavam como duas manchas de tinta, imprecisos, mas carregados de intensidade.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

BUF118. CAP VIII

Ted levantou-se cambaleante. Doíam-lhe todos os músculos e sentia a cara inchada. Mas o que mais o incomodava era a maldita chuva que o cegava e asfixiava. Sentia-se empapado, como se estivesse mergulhado num tanque.
Os relâmpagos pareciam diluídos naquela húmida cortina, apesar de retumbarem por cima da sua cabeça. Viu a ziguezagueante coluna elétrica do raio que atacou o depósito.
A muito custo, pois a lama tornava-lhe a roupa pesada, apesar de dissolvida pela água, dirigiu-se para o sítio onde deixara o cavalo. Era preciso chegar ao rancho e prevenir o pai de que os irmãos tencionavam ir ali, e não com bons propositos.
Ted estava convencido de que nada de bom aconteceria se Roland conseguisse apanhar Castile. O singular código moral daquele Boyce, com espirito de negreiro, não previa que se tivesse misericórdia de quem atentasse contra o que julgava seu direito indiscutível... ainda que fosse Um roubo.
Claro que Ted reconhecia que se comportara como um néscio ao meter-se, de modo tão inocente, no meio deles e desafiá-los. Devia ter previsto que o tratariam daquela maneira. E podia considerar-se com sorte por o terem deixado com vida, o que, por outro lado, demonstrava, sem sombra de dúvida, que estavam certos de levar a sua avante sem dificuldade.
O jovem, cambaleando debaixo do espesso manto de chuva, com os ouvidos surdos pelo retumbar dos trovões, conseguiu arrastar-se ate junto do cavalo. O pobre animal tiritava, com as orelhas encolhidas, escorrendo por todos os lados. No momento em que Ted deitou as mãos à sela, caiu-lhe em cima um alude.
Por três vezes escorregou e caiu na lama. Por fim Id conseguiu trepar para o lombo do alazão, mas teve de apertar os joelhos contra a sela, e mesmo assim o seu equilíbrio era instável. Contudo, o vigor regressava-lhe pouco a pouco e já lhe foi relativamente fácil desprender as rédeas e esporear a montada em direção ao cimo da rua.
A terra erguia-se em borbotões debaixo dos cascos e verdadeiros arroios corriam ji pelas valetas, engrossados pela água que tombava a jorros dos telhados dos alpendres.
As descargas iluminavam por breves segundos aquela massa aquosa, por entre a qual apareciam desenhadas, a traços incertos, as silhuetas das casas. Ao chegar o alazão perto das cabanas dos «zunhis», foi quando se incendiou o celeiro.
Ted colocou o lenço no nariz, de forma a ficar um espago entre ele e a boca que lhe permitisse respirar, e incitou a montada a acelerar o passo. A casa atingida pelo raio desmoronou-se quando passava por ela.
No caminho que conduzia ao «Sulphur Ranch», a desolação provocada pela tormenta causava calafrios. Ted esforcou-se por divisar o Estacado e surpreendeu-o o muro negro e tempestuoso que fechava todo o Oeste e o Norte da planície.
Diversas árvores surgiram na sua frente, arrastadas pelos arroios que corriam pelos desníveis e pelos sulcos do terreno. A pouca distancia, distinguiu as corridas de uns porcos, que grunhiam com desespero. E um pouco mais adiante, o cavalo quase tropeçou no corpo agachado e trémulo de um veado, perdido, sem dúvida, da manada.
Talvez a tormenta — pensou o jovem — detivesse os irmãos, embora não lhe parecesse provável. Roland estava assustado com as intenções do velho e temia que, se perdesse aquelas horas, já nada pudesse fazer ou a situação fosse muito pior.
No entanto, seria quase impossível transpor a distância que o separava do rancho. Ted notava que estava exposto a desviar-se da rota e a cair em qualquer buraco oculto pela água. E se o cavalo quebrasse as pernas, ele seria como um náufrago naquele mar de lama.
A vasta extensão do céu brilhou de repente, rasgando--se como uma peça de seda negra diante de uma fulgurante tesoura. Os olhos deslumbrados do cavaleiro viram o raio penetrar nas entranhas de uma azinheira, que se acendeu como um archote e tombou com majestosa lentidão.
Mas viram mais qualquer coisa, ou seja que o inusitado e violento fogacho descobria a figura de um cavaleiro que corria a galope para a povoação. Ted reconheceu-o e renunciou ao seu propósito de dirigir-se ao rancho. Aquele audacioso era Tagus, o irmão de Castile. O jovem lembrou-se da luta que tivera com ele e decidiu segui-lo, pois inquietava-o o que pudesse tramar. Qual seria a sua intencao ao dirigir-se para Sulphur Valley? Obrigou o alazão a voltar-se e esporeou-o na peugada do índio.
Ao entrarem na rua principal pelo lado das cabanas, um novo raio pegou fogo a uma delas. O cavalo montado por Tagus ergueu as patas dianteiras e o índio recorreu a toda a espécie de habilidades para domina-lo, mas acabou por escorregar-lhe do lombo e por cair na lama.
Levantou-se de um salto. Ted viu o «zunhi» cerrar os punhos, dar meia volta e sumir-se numa travessa. Seguiu-o, apesar de escuridão.
Mas em seguida novas descargas elétricas revelaram a sua presença, colado as paredes das cabanas, inclinado e deslizando com rapidez. Ate que chegou junto da escola, construída de troncos de cipreste e coberta de telhas.
Tagus atirou-se contra a porta, uma e outra vez. Ted deteve o cavalo e apeou-se. Estava intrigado. Não compreendia por que motivo o índio procedia assim. Encostou o alazão a parede da casa e afagou-lhe o pescoço encharcado para tranquilizá-lo.
Por fim, o «zunhi» derrubou o obstáculo que se lhe interpunha e entrou no edifício. Ted sabia que estava desabitado, porque o professor vivia no extremo oposto da povoação e ninguém ficava ali de vigilância, a não ser que tivessem mudado os hábitos desde os seus tempos de estudante.
Ia a entrar também quando reapareceu Tagus, que com as mesmas precauções e celeridade se dirigiu para o fundo da travessa. Ted seguiu-o.
Uma parte do solo cedeu, de saito, debaixo dos seus pés e enterrou-se ate aos joelhos. Saiu do buraco praguejando. Tagus desaparecera e as nuvens acinzentadas não lhe permitiram vê-lo. Recriminando-se pelo seu pouco cuidada, Ted fez marcha atrás e aproximou-se do cavalo. Onde se teria metido o maldito pele-vermelha e por que motivo derrubara a porta da escola?
Esperou, certo de que em breve obteria resposta. Com efeito, ainda não teriam decorrido dois minutos quando luz de Um relâmpago mais forte viu Um grupo de homens que entravam no edifício devassado por Tagus. Bom, não era necessário ser lince para descobrir o que pretendia o irmão de Castile. Qualquer coisa bastante logica, naturalmente.
Aqueles indivíduos não entravam na escola para receber as lições do velho Simpson, mas sim para escutarem alguma incendiária peroração do seu irmão de raça, a respeito, claro estava, do maldito testamento que pensava fazer Walter Boyce.
Prometia ser uma conferência interessante. Ted obrigou o cavalo a recuar e a sair da travessa. A chuva diminuiu de intensidade e, embora continuasse a flagelar aquele recanto do mundo, não o fazia com a fúria de momentos antes.
O jovem meteu o alazão nas minas do celeiro. Uma parte do teto conservava-se de 'pé e, como tinha um palheiro por cima, o armazém mantinha-se relativamente seco.
— Descansa aqui, amigo — sussurrou ao cavalo, dando-lhe palmadinhas nas ancas.
De boa vontade teria ficado ali também, deitado fogo a palha e posto a roupa a secar, mas tomou o caminho da escola e aproximou-se de uma das janelas. Não se enganara nas suas suspeitas. Acendera-se um candeeiro de querosene e o recinto estava ocupado por uns cinquenta membros da tribo «zunhi», enrolados nas suas mantas pintalgadas, com os rostos atentos virados para o estrado da secretaria do professor.
No lugar deste colocara-se Tagus, que lhes falava. Ted notou que continuavam a entrar pessoas, que se sentavam nos bancos e iam enchendo a aula. Tomou imediatamente uma resolução e encaminhou-se para a porta.
Um índio passou pelo sítio onde ficara, de costas apoiadas a parede. Deu Um passo para ele descarregou-lhe o punho fechado na testa. O «zunhi», que era velho e magro, caiu como Um fardo.
Ted tirou-lhe a manta e envolveu-se nela, entrou na escola e foi sentar-se num canto onde as sombras eram mais densas.
— ...temos de apressar-nos. Deixa-nos as terras, os campos que foram sempre nossos. Compreendem? Pensem nisto, pensem nisto...
Tagus falava-lhes em dialeto e fazia-o com a veemência de um candidato democrático do Sul. Mas a sua recomendação de que pensassem na tentadora dádiva de Walter Boyce parecia não ter surtido efeito, porque os índios continuavam estoicamente sentados, como se não o tivessem ouvido.
Ted conhecia-os bem, assim como a sua língua, para não saber que tudo aquilo era fachada. Com certeza estavam às voltas com as palavras do seu irmão de raça e estudando as possibilidades de se produzir Um aumento das rac5es de uisque ou dinheiro para comprar mantas e contas de vidro.
O jovem não pôde evita-lo, mas desconfiava que aqueles seres, mergulhados numa quietude estúpida, seriam incapazes de um movimento de rebelião ou sequer de defesa. Fosse pelo que fosse, decerto por culpa dos brancos, tinham degenerado e careciam de energias e de força. Bastaria uma rajada de vento para levá-los todos adiante.
Um dos presentes levantou-se e ergueu o braço. A sua cara poderia perfeitamente ser pendurada numa parede como a mascara do vício. Mas a sua voz era clara e serena.
— As tuas palavras são interessantes, irmão — disse. — Sem dúvida que são. Mas, por que motivo o velho Boyce deseja fazer uma coisa dessas? Acaso lhe tocaram o coração os sofrimentos do nosso povo? Parece-me pouco provável. Não será por querer-nos utilizar contra os filhos ou por ter pensado que uns herdeiros mortos são muito bons?
O jovem não teve outro remedio senão aplaudir no seu íntimo o astuto pele-vermelha. Indiscutivelmente, não eram os bons sentimentos que impeliam o velho a restituir-lhes as propriedades, das quais os despojara sem contemplac5es quarenta anos antes, mas sim porque eram a cartada que podia jogar contra os homens da povoação, visto não ter força suficiente para enfrentá-los e defender o seu capricho.
Era estúpido que não tivesse compreendido isso mais cedo. Essa era a cartada de Walter Boyce. E possivelmente fora ideia sua mandar Tagus realizar aquela reuniao.
— Os motivos não contam — disse Tagus, que tinha o aspeto de um autêntico caudilho do seu povo, direito, de tórax saliente, compridos braços musculosos e cabeça arrogante. — É possível que tenham razão; mas, fazendo o seu jogo, poderemos ganhar, de verdade, o que nos prometeu. Não podemos perder esta oportunidade. De contrário, não existirá esperança para nós, que depressa deixaremos de existir.
— Não temos armas — salientou a oponente.
— A única coisa que precisamos de fazer é ir ao rancho — explicou Tagus. — O velho nos dará as carabinas e as munições necessárias.
— De todos os modos, irmão, ainda não nos disseste por que motivo o velho Boyce quer fazer isso. Ouvimos dizer que tenciona casar-se com tua irmã Castile. É verdade?
— Sim. E ela está disposta a esse sacrificio desde que nos disponhamos a lutar para consolidar essa heranca. Reparem: tudo o que temos de fazer é montar guarda ao rancho e esperar os filhos do velho que irão para impedir o casamento. Quando nos virem lá, armados, compreenderão que perderam a partida e ir-se-ão embora.
O «zunhi» que replicara sentou-se e então levantou--se outro, mais novo e de melhor aspeto.
— Não nos agrada, Tagus — declarou sem mais delongas. — Podem retirar-se ou não. Por que lutaremos nos, realmente? Tu dizes-nos que o velho já assinou esse testamento e que ele entrará em vigor assim que se realizar o casamento, mas a tua irmã não está noiva de Ted Boyce? Não será tudo uma armadilha para que vocês Bois e esse maldito branco se apoderem do rancho e de quanto contem?
Era uma acusação feroz e Tagus acusou-a na brusca mudança do seu semblante, que não conseguiu dominar, a despeito da sua educação de pele-vermelha. Estendeu os braços e crispou os dedos.
— Amaldiçoado sejas, Panka! — bramiu por entre os dentes agudos. — O que disseste é...
Mas Panka abanou a cabeça e fez Um gesto com a mão, rejeitando o protesto.
— Todos sabemos isso, Tagus, e não nos deixamos convencer pela tua história. Já nos enganaram muitas vezes e não seremos tao estúpidos que nos prestemos a servir de isca para que outros levem a presa. Talvez seja verdade o que dizes, mas não nos cheira bem...
Tagus parecia disposto a atirar-se a ele. Vibrava de furor. E quando o raio caiu a umas cinquenta jardas da escola e o seu clarão encheu a aula, a sua figura adquiriu relevo dramático e aterrador.
Mas não teve tempo de fazer nenhum gesto. Coincidindo com a descarga que fez estremecer o edifício e quebrou os vidros das janelas, por estas surgiram os canos de varias carabinas e perto de meia dezena de habitantes brancos da povoação entraram pela porta, empunhando «Winchesters» e «Colts».

domingo, 10 de julho de 2016

BUF118. CAP VII

Na sala reservada encontrava-se toda a família reunida. As mulheres tinham decidido tomar parte nos acontecimentos ou haviam sido chamadas pelos maridos, para contarem com a sua aprovação a respeito do que resolvessem.
O aposento tinha cortinas verdes que cobriam as paredes numa das quais se encontrava uma janela que deitava para um estreito pátio, varias mesas de jogo, assim como sofás e poltronas, e Um par de espelhos nos espaços livres das paredes.
Bertha e Nan estavam sentadas num sofá. Kitty de pé, defronte de Um dos espelhos. Silvestre também se encontrava de Pe. Waco estava sentado diante de uma das mesas e tamborilava sobre o tapete verde com os seus grossos dedos. Havia outra personagem mais, e Ted coçpreendeu sem demora quem fornecera a informação sobre as intenções do velho a respeito da herança.
Hub estava deitado noutro sofá, debaixo de Um cobertor, com o rosto afilado descomposto, tremendo de febre, e com o ruivo e encaracolado cabelo ainda húmido. Procurou levantar-se ao ver o irmão que acabava de chegar, mas faltaram-lhe as forcas. Ted dirigiu-se para o seu lado e inclinou-se sobre ele.
— Olá, Hub. Como estás, rapaz?
Afagou-lhe a cabeça. A verdade era que simpatizava com o aleijado e que estava disposto a desculpar-lhe qualquer coisa que fizesse. Não levava vida fácil, não, aquele infeliz, com o seu enorme medo ao pai que o colocara naquela situação de isolado, sem amigos, sem ninguém a quem confiar-se.
Obrigou-o a entrar no conflito a pergunta colérica de Roland:
— Falaste com o nosso pai, Ted? Que te disse?
Era pueril que pretendesse ocultar-lho. Por outro lado, não estava disposto a faze-lo. Eles tinham o direito de lutar pelo que imaginavam seu.
— Lamento, Roland. O nosso pai decidiu, efetivamente, casar com Castile, a «zunhi», e deixar herdeiros da sua fortuna todos os índios da povoação.
Sentiu a onda emocional que o envolveu.
— Maldita seja! — berrou o mais velho, que se tornara pálido. — Que lhe disseste tu? Fizeste-lhe ver como procederíamos num caso desses?
— Procurei convencê-lo de que não era um ato muito sensato, Roland. Mas o velho possui também as suas razões.
Preparou-se para a batalha. Os olhares que se cravavam em si feriam como navalhadas.
— E, claro está, tu aceita-las. O nosso pai deve ter-te recompensado pela tua fidelidade.
— Fecha essa porca boca, Roland! — ameaçou-o Ted. — Bem sabes que não obtenho nenhuma recompensa por isso, exceto talvez a de ver-te rabiar. Mas ouçam o que vou dizer-lhes e procedam em conformidade. Não tenciono combater o velho. Se quer casar com uma India é lá com ele. E quanto ao destino que der à sua fortuna, não me interessa absolutamente nada. Ele acha que deve remediar assim o mal que fez aos autênticos donos destas terras, quando há quarenta anos apareceu por aqui e os enganou e atraiçoou até conseguir apoderar-se de tudo. Pois tem perfeito direito a isso!
O longo discurso fora seguido com atenção por todos; com uma atenção carregada de furor.
— O rancho é nosso! Pertence-nos! — gritou Sil.
— Não permitiremos que faça uma dessas! — apoiou Waco. — Iremos para os tribunals, iremos...
Roland deu um passo e aproximou-se do irmão mais novo, com o rosto convulso.
— Nada de tribunals! — Opôs-se, com os dentes cerrados. — Nada de tribunais. Iremos Iá esta mesma noite e correremos essa índia de casa... seja como for. E escorraçaremos, se for preciso, todos os índios da povoação. O nosso pai terá de reconsiderar. Que tencionas fazer, Ted?
Ted sabia o que se ocultava atrás das palavras brutais do primogénito dos Boyce. Aquele «seja como for» não encobria senão uma fria decisão de morte.
— Tenciono impedir-te de fazeres o que estás a tramar, Roland. Terás de passar sobre o meu cadáver e bem sabes como isso será difícil.
Esperou a reação de Roland; mas o irmão mais velho, que cada vez estava mais amarelento, ficara como que petrificado por aquela declaração. Ted observou os demais e descobriu que as suas expressões eram semelhantes. Quem parecia mais afetado era Hub, que conseguira soerguer-se e se apoiava num cotovelo, fitando-o com angústia.
— Bem — declarou — vou-me embora.
Foi Kitty quem pôs os irmãos em movimento com o seu acento claro, cristalino, e o seu aspeto angelical, disse:
— Se o deixarem sair, correrá a prevenir o velho e essa pele-vermelha de que tencionamos ir lá.
Roland estoirou a seguir:
— Maldito sejas, porco traidor! — gritou, e atirou-se a ele.
Ted preparou-se para recebe-lo.
Roland era forte e capaz de dobrar uma Barra de ferro entre os dedos; mas Ted possuía o ímpeto, a combatividade de um búfalo novo. A sua força causava assombro aos que haviam tido ocasião de comprová-la. E a contundência dos seus punhos era suficiente para derrubar uma parede de um pé de espessura.
— Não, Roland, não! — gemeu o aleijado.
A luta que se travou entre os irmãos revestiu-se de características de uma violência incrível. A nenhum ocorreu servir-se das armas. Ted foi o primeiro a bater e a despachar o irmão como se este recebesse o coice de uma mula.
A alta e ossuda figura do primogénito abateu-se contra o canto onde estava Hub, que assistia, aterrorizado, contenda. Por momentos, o aleijado julgou que iriam esmaga-lo.
Contudo, Roland virou-se no ar e atingiu o irmão com o seu enorme punho direito. Ted manteve-se firme e contra-atacou com uma serie de golpes rápidos aos flancos, demolidores e brutais.
A luta teria ficado por ali, porque apanhado em semelhante círculo, o mais velho dos Boyce foi-se tornando roxo, com um princípio de asfixia.
— A mim, irmãos! — conseguiu gritar.
— Ajudem-no! — animou-os Kitty e deu o exemplo, atirando-se ao cunhado.
Por Um momento, Ted vacilou ante o inesperado ataque. Sil foi o segundo a acudir ao apelo da mulher. E depois Waco e Nan.
Tratava-se de uma libertação do ressentimento que sempre haviam experimentado pelo preferido do pai. Naquela ocasião desforraram-se, bateram-lhe com sanha. Não saíram indemnes, porque Ted os recebeu com uma chuva de murros de todos os estilos, que nem sequer perdoaram as mulheres. Antes, pelo contrário, teve uma singular satisfação em descarregar a mais soberba bofetada que a hist6ria do Oeste podia registar na sua esquisita e adorável cunhada Kitty.
Remeteu-a para um canto, onde ficou sentada no chão, com as pernas afastadas e ar atordoado. Mas a verdade foi que as damas acabaram com Ted. Bertha, ao mesmo tempo que murmurava frases incoerentes que se referiam a Guerra de Secessão, pegou num jarro de cerveja com o qual o atacou.
E Nan agarrou-se-lhe a uma perna, impedindo-o de andar e de fugir aos ataques dos homens. Em breve o dominaram e perdeu os sentidos. E como se quisesse orquestrar aquela vingança, lá fora generalizou-se a tormenta.
Raios e trov5es e a água que caia com maior forca do que nunca. Hub contemplava, com um nó na garganta, a forma como maceravam o rosto e o corpo de Ted. E eram elas, em especial Bertha e Kitty, que se tinham recomposto, as que de modo mais cruel dirigiam as pancadas.
Suspenderam o castigo por esgotamento e ficaram arquejantes, suados, com os rostos convertidos em máscaras de estultícia e estupor. Ted permanecia estendido no solo, inconsciente.
Por fim, Roland inspirou com força e inclinou-se sobre ele. Verificou que unicamente perdera os sentidos e ergueu-o nos braços.
— Que vais fazer? — alarmou-se Sil.
— Vou... vou deitá-lo na lama, para que refresque... — tartamudeou o mais velho. — Espero que isto lhe sirva de lição e que veja claro o que lhe convém.
— Fazes mal — preveniu-o a fria voz de Kitty. — Não desistirá do seu empenho de estorvar o que vamos fazer.
As suas palavras seguiu-se um silêncio, que a obrigou a agitar-se inquieta. Roland quebrou-o. Fitava a cunhada com dureza e impressionava com o corpo de Ted suspenso nos braços.
— Mulher, não esqueças que este sangue que goteja no chão é o de nós todos — declarou. — Não me parece que possa incomodar-nos. Mas mesmo que assim fosse, não faria... isso que tu pensas.
Kitty voltou a sorrir. Mas virou a cabeça sobressaltada, ao escutar outra voz. Era Dany, o capataz, que se encontrava a porta da sala e os observava investigadoramente.
— Que aconteceu? Que tem Ted?
Roland girou sobre as pernas para ficar de frente para ele, sem largar o corpo de Ted.
— Não houve outro remédio senão bater-lhe, Dany — disse. — E bem sabes porque não podemos permitir que este louco se ponha do lado do velho e o ajude a cometer um crime contra nós.
— Está... está...?
— Não. Apenas desmaiado. É forte como um touro e resiste a tudo. Vou levá-lo para a rua e deixá-lo à chuva, para que esperte.
Começou a caminhar após proferir estas palavras. A sua passagem pelo «saloon» surpreendeu os clientes e emudeceu-os. Overton correu para junto dos Boyce que tinham chegado a porta da sala reservada.
— Demónios! — exclamou. — Mataram-no?
Dany fulminou-o com os seus olhos cinzentos.
— Não tenhas pressa, maldito mestiço — grunhiu. — Ainda falta muito para teres essa satisfação.
Pouco depois regressou Roland, que sacudia as mãos como se se tivesse libertado de um fardo incomodo.
— Dei-lhe um bom banho de lama — comunicou, com um sorriso de satisfação.
Os irmãos também sorriram. A verdade era que, depois de o terem sovado, vingando-se da sua arrogância e da posição que ocupava junto do pai, se sentiam orgulhosos dele e da fortaleza que demonstrara. Ate Hub, do sofá onde continuava estendido, fez uma careta de prazer.
— Esta bem — interveio Kitty, que não participava de tal contentamento. — Mas quando iremos correr com a pele-vermelha?
A pergunta levou todos a encolherem-se. O próprio Roland fitou com desagrado a cunhada, que nem lhes dava tempo de respirarem.
— Vamos para dentro — propôs. — Discutiremos o nosso piano. Vem connosco, Dany.
— Nao. Não me agrada que Ted fique la fora, Roland. A água cai as toneladas e pode acontecer-lhe qualquer coisa.
— Vamos, não sejas estúpido! Quando o depositei no chão já tinha os olhos abertos.
Kitty interveio.
— Com certeza ire prevenir o velho.
— Queres fechar a boca de uma vez?! — exasperou-se o primogénito. — Se o fizer, pior para ele. Ninguém se colocará a seu lado. Mete isto na cabeça. Vamos, Dany.
Precedeu-os e, já dentro da sala, ocupou uma cadeira. Dany foi o último a entrar e ficou próximo da porta, com as pernas ligeiramente abertas, as mãos junto dos coldres, observando os Boyce com ar de desagrado. Notava-se que estava do lado deles, mas que não apreciava o que faziam.
— A minha ideia — expos Roland, enrugando a testa num esforço de concentrarão — é que nos apresentemos no rancho esta mesma noite, juntamente com os habitantes da terra que nos possam acompanhar, e que o cerquemos. Eu irei então informar o velho do que pretendemos. Depois...
— Não percamos a cabeça — Waco deixou a ponta do sofá que ocupava. — Não é conveniente impor condições ao velho. Bastará que saiba que nos opomos aos seus desejos de...
— Uma figa! — berrou Roland. — Tu não conheces o nosso pai, cunhado. É dos que, se têm de morrer enforcados, aproveitam o último segundo de vida para partir os dentes ao verdugo e arrancar-lhe um olho. Temos não só isso. Enquanto ela estiver viva nao...
Por fim revelara o seu pensamento, a ideia que o obcecava. Roland considerava os índios uns miseráveis que deviam ser por completo exterminados. Nesse pormenor estava de acordo com Overton, o dono do «saloon», se bem que por diferentes motivos.
— Se fizermos isso, Roland — declarou Waco com ardor, e a sua cara esverdeada tornou-se mais escura — converter-nos-emos nuns criminosos vulgares. E não haverá tribunal que nos absolva. O velho não pararia enquanto não metesse todos na cadeia.
— És parvo, Waco — replicou o mais velho, dando claramente a entender que quem mandava era ele. — Não daremos ocasião a nosso pai para que faça nada disso. Não tornaremos a cometer a estupidez de abandoná-lo, como fizemos ate aqui. Desta vez, ter-nos-á a seu lado... permanentemente.
Observou uma a uma as faces dos presentes.
— De acordo? — perguntou.
Ninguém levantou objeções. Nem mesmo Dany, embora se lhe acentuasse o ar de desagrado, abriu a boca para protestar.
Ao calar-se, cresceu o fragor dos elementos desordenados da natureza. A tormenta precipitava-se sobre a terra num formidável intento de pulverize-la, de apagar da sua superfície todos os vestígios de vida.
Uma faísca destruiu o depósito de água situado a entrada sul da povoação. Outra caiu num celeiro, do qual se ergueram chamas rapidamente. Mas a chuva era tao espessa e cala com tamanha violência que imediatamente dominou o fogo.
A tormenta também começava a desenvolver-se entre os homens.